
A distância que os separa – Maria Vlachou
O Rijksmuseum disponibiliza 125.000 imagens de alta resolução de obras da sua colecção no Rijksstudio, uma secção interactiva no seu website que permite a qualquer pessoa descarregar estas imagens de grande qualidade para os fins que entender. O objectivo do Museu é adicionar todos os anos 40 mil novas imagens até disponibilizar online a colecção inteira. Lê-se num artigo no New York Times que, consciente da cada vez maior dificuldade em controlar a circulação e uso de imagens na Internet, o Museu, em vez de se agarrar a práticas, exigências e controlos de uma era que passou, considera de maior importância adaptar-se à nova realidade e procurar garantir a qualidade das imagens em circulação. Considera ainda que esta é mais uma forma de relacionamento entre as pessoas e a colecção. O Rijksmuseum pede aos utilizadores para se absterem do uso comercial das imagens, disponibilizando para compra fotografias com uma resolução ainda melhor. Através do mesmo artigo no New York Times, ficamos a saber que a National Gallery e o Smithsonian Institution seguem o mesmo caminho do Rijksmuseum.
Em França, a total proibição da fotografia no Musée d´Orsay (por razões questionáveis, como se poderá ver aqui) levou à criação de um movimento cívico, chamado Orsay Commons, que, através de acções que contrariam as regras instituídas, procura afirmar a oposição dos cidadãos perante a posição de um museu público que impede o acesso à colecção e pretende “ensinar” ao visitante a forma “aceitável” de se olhar para uma obra de arte.
Neste ambiente de debate aceso, a nível internacional, sobre a prática da fotografia nos museus, um debate que é exigido pela emergência de uma nova realidade, em constante desenvolvimento, no ciberespaço, à qual é preciso (urgente mesmo) os museus adaptarem-se, o Secretário de Estado da Cultura português apresenta-nos o Despacho nº 6891/2013, de 28 de Maio, relativo ao Regulamento de Utilização de Imagens de Museus, Monumentos, e outros Imóveis afectos à Direcção-Geral do Património Cultural. E assim, lê-se no despacho que “O presente Regulamento aplica-se a toda e qualquer utilização de imagens relativas aos edifícios e acervos dos Museus, Monumentos e outros imóveis afectos á DGPC, independentemente dos respectivos objecto, suporte e correspondentes formatos, finalidades e contextos de utilização.” (1.1); que “Os pedidos de cedência de imagens, captação de imagens e de filmagens devem ser formulados com uma antecedência não inferior a 15 dias.” (2.1), o que inclui “Os pedidos de captação de imagens (fotografias e/ou filmagem) para fins estritos de divulgação, sem fins comerciais…” (2.1.2); somos ainda informados (‘avisados’, diria) que “Qualquer utilização de imagens diversa da prevista no presente Regulamento, configura desrespeito pela legislação de enquadramento, designadamente o Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos, sendo passível de acção cível por parte da DGPC.” (3.7).
Uma das primeiras dúvidas que se me levantou foi o que é que se entenderá por “divulgação” neste despacho. Estaremos todos nós, que em websites, blogs e redes sociais, escrevemos sobre museus, partilhamos notícias sobre actividades e iniciativas, falamos de experiências vividas em âmbito profissional ou privado, fazemos críticas e comentários, todos nós que damos formação a profissionais da área, a prejudicar o Estado? Estaremos a prejudicar o cumprimento da missão da DGPC em particular, ao fazermos o que estamos a fazer e ao usarmos as nossas próprias imagens ou outras amplamente disponíveis na Internet, como no Google Art Project, onde já se encontram dois museus portugueses, ou no Wikimedia Commons? Estaremos nós a cometer um acto ilícito de divulgação à luz deste despacho; e, ao promovermos “ideias, princípios, iniciativas ou instituições”, um acto ilícito de publicidade (14.1, nota 1)?
Uma dúvida maior ainda do que estas impõe-se: de que forma o actual debate a nível internacional sobre a prática da fotografia nos museus, e desenvolvimentos como os descritos no início deste texto, foram tomados em consideração na redacção do despacho assinado pelo Secretário de Estado da Cultura no passado dia 28 de Maio? Qual a visão que se tem para os museus portugueses no século XXI? Em que patamar é que a tutela os quer posicionar? Que relações se querem criar com as pessoas (os chamados “públicos”) e até que ponto foram considerados actuais hábitos e práticas na experiência de visitar um museu, literal e virtualmente? De que forma este despacho serve os museus e os cidadãos? Porque é que terei ficado com a sensação que nada disto foi tomado em consideração e que a distância que separa a tutela da realidade é mesmo muito grande?
Mais leituras
Carolina Miranda (2013), Why Can’t We Take Pictures in Art Museums?, in ARTnews.
Maria Vlachou (2013), Digam “Click!”, in blog Musing on Culture.
© imagem: Dean Mouhtaropoulos/Getty Images (via The New York Times)