Recentemente, enquanto bolseira do Deutsches Archäologisches Institut, vivi quatro semanas em Madrid. A escolha do verbo é propositada. Já tinha estado em Madrid várias vezes, mas nunca tinha vivido na cidade. E, no caso de Madrid, isso fez toda a diferença.
As vezes em que estive em Madrid deixaram-me a sensação de que não gostava da cidade. É fácil, como turista, não gostar de Madrid. Temos que convir que o centro histórico não tem muito interesse comparado com o de (tantas) outras cidades espanholas. A própria noção de centro histórico é difusa, sobretudo se pensarmos que o núcleo histórico de Madrid é… Toledo. A catedral de Almudena é provavelmente a catedral mais feia da Europa, coisa que só não afirmo com certeza porque não conheço todas. E, a juntar a isto, há um óbvio problema de escala: Madrid é muito grande. Se o turista não se afasta do núcleo Plaza Mayor-Sol-Cibeles, é como tentar ver um Rambrandt a 20 cm de distância da tela. Não se percebe nada.
E depois há os museus. Que também são uns se os vemos como turistas e outros se lá vamos como quem vive na cidade. O privilégio de ter vivido em Madrid durante um mês (também) foi esse.
Fui aos museus como qualquer madrileño vai: à tarde, no fim de um dia de trabalho, ao fim de semana com a família. Podemos então começar por aqui. Os museus estão cheios de gente que vive na cidade.
Claro que isto é uma afirmação completamente empírica. Não me estou a basear em estatísticas de visitantes, em perfis de públicos, nem em qualquer instrumento de análise digno desse nome. E, provavelmente, estou a meter neste saco muito turismo interno espanhol: o meu ouvido não distingue o castelhano de Madrid daquele que se fala em Valência ou Saragoça, por exemplo.
Mas não é apenas por quase só ter ouvido falar espanhol à minha volta nos museus que digo isto. Sobretudo ao fim de tarde, sobretudo nas exposições temporárias, os visitantes pareciam gente que terminou o dia de trabalho e, com um compañero ou compañera, antes de ir para casa, passou pelo museu. Como um dia depois, se calhar, passaram pelo bar de tapas ou, no dia anterior, tinham ido às compras. Fragmentos de conversas ouvidas aqui e a ali ajudaram a compor esta impressão. As visitas guiadas também. No museu Thyssen, no Reina Sofia, integrei-me em animados grupos castelhano-falantes que, se não eram maioritariamente constituídos por madrileños, disfarçavam bem. Ainda que alguns pudessem ser, como eu e outros estudantes estrangeiros, madrileños temporários. A procura deste tipo de actividades é, aparentemente, grande: em quatro semanas não consegui lugar nas “visitas fora do horário” do museu Lazaro Galdiano.
Muitas vezes, noutras cidades e até na minha, os museus sentem-se como um corpo separado do quotidiano dos que nela habitam. E, atenção, não digo isto com um sentido negativo: pode ser muito interessante que os museus se assumam na cidade com um carácter excepcional e único, algo que se procura e valoriza por isso mesmo. Em Madrid, contudo, a sensação que tive foi outra: os museus fazem parte do quotidiano da cidade e isso é, igualmente, muito interessante.
Regressada a Lisboa, fiz o mesmo: no fim de um dia de trabalho, passei pelo museu. Fui ver a exposição As idades do mar na Fundação Gulbenkian. Diferenças em relação aos museus de Madrid? Só(?) as pessoas que lá estavam dentro.
É verdade que há uma grande evolução no público dos museus portugueses nas últimas décadas. Lembro-me, nos idos de 70 e 80, de ir a museus com a minha mãe e os meus irmãos e sermos os únicos portugueses no meio de turistas. Neste fim de tarde de dia de semana na Gulbenkian já não foi assim. Havia mais portugueses e, sem grande margem de erro, todos lisboetas (turismo interno, como dizia o outro… não temos). Mas eram os “suspeitos do costume”: gente ligada ao ensino nos seus vários graus (alunos e professores universitários, professores do básico e secundário), gente com profissões ligadas, se não às artes e espectáculos, pelo menos, às humanidades. Como os portugueses falam (muito) menos que os espanhóis, isto é uma impressão, literalmente, a olho. Além disso, todos pareciam ter ido ao museu com a consciência da singularidade, e seriedade, do acto.
Haverá certamente muitas razões culturais, sociais e económicas que explicam isto.
Ficando só pelas últimas, em Madrid, tipicamente a entrada em museus custou-me 6€ por visita. A entrada na exposição na Gulbenkian custou 5€. Mais caro em Lisboa, portanto. Porque 5€ são cerca de 41% do valor médio da hora de trabalho em Portugal e 6€ representam 29% do mesmo valor em Espanha, se os senhores do Eurostat não se enganaram nas contas. Por outro lado, o leque de descontos e isenções nos museus de Madrid é bastante mais abrangente do que os de Lisboa. Por ser aluna universitária, por exemplo, tive entrada gratuita no museu Reina Sofia e o mesmo acontece com os desempregados em todos os museus que visitei. Por cá, os descontos para estudantes são cada vez mais restritos e a entrada gratuita dos desempregados só se faz desde Março de 2012 nos museus, monumentos e palácios tutelados pela SEC. Curiosamente nas páginas oficiais dos museus tutelados pela SEC (não fui sistemática, por isso posso estar enganada) não encontrei referência a esta isenção, tendo apenas encontrado menção a descontos para desempregados na Cinemateca e nos teatros nacionais D. Maria II e S. Carlos.
Mas não será só o custo do acesso aos museus que contribui para haver menos lisboetas nos museus de Lisboa que madrileños nos museus de Madrid. E certamente não é isso que justifica a diferença de atitude daqueles que vão aos museus nas duas cidades. Pode argumentar-se que o facto dos museus não fazerem parte do quotidiano das cidades portuguesas é só mais um sintoma dos fracos índices de frequência de todos os equipamentos culturais. Talvez. Ou talvez não… conheço muitas cidades portuguesas em que a biblioteca da rede de leitura pública é presença integrante da vida dos seus habitantes. Já a diferença de atitudes… bom, essa dava pano para mangas e eu não serei a pessoa mais habilitada para a explicar. Limito-me a constatar.
Os museus de Madrid são sem dúvida extraordinários nas colecções, na museografia, na programação. Mas não me parece ser isso que os faz uma referência no panorama museológico europeu. Tendo vivido lá durante um mês, eu arriscava dizer que, mais do que uma cidade de museus, Madrid é uma cidade de pessoas que vão a museus.
As pessoas são as cidades que são as pessoas que são as cidades. Nada como uma grande cidade, como Madrid, para perceber isto. Os museus serem parte desta equação é meio caminho andado para nos entusiasmarmos com eles. Mesmo com os fechados. Como o Museo Arqueologico Nacional, que não visitei, e me deixou entusiasmadíssima com a próxima visita. Já estou a salivar, à espera do anúncio da data de reabertura, sabendo que assim que possa ponho-me a caminho de Madrid para ir ao museu. Entusiasmo. Haverá melhor que se possa esperar de um museu? Haverá melhor que se possa esperar de uma cidade?
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(não deixem de ouvir com som, se possível bem alto)
Maria José de Almeida é licenciada História, variante Arqueologia, pela Universidade de Lisboa, tendo obtido o grau de mestre em Arqueologia Romana na Universidade de Coimbra. Actualmente integra o programa de Doutoramento em Arqueologia e Pré-história da Universidade de Lisboa, na especialidade de Arqueologia. É autora de vários artigos publicados sobre a temática da ocupação romana no território de Augusta Emerita. Entre 1996 e 2002 trabalhou no município de Santarém, desenvolvendo acções de arqueologia urbana em núcleos históricos. Foi responsável pela primeira fase da Carta Arqueológica de Santarém e pela organização da Reserva Municipal de Bens Arqueológicos. Foi comissária da exposição temporária De Scallabis a Santarém (MNA, 2002). Desde 2003 exerce funções na Câmara Municipal de Cascais, onde implementou o Sistema de Informação dos Museus de Cascais e coordenou a elaboração do respectivo Manual de Procedimentos. Ainda em Cascais, dirigiu o Gabinete de Arqueologia e, actualmente, desempenha funções na Divisão de Ordenamento do Território, tendo coordenado a integração do referido sistema de informação com a plataforma SIG da autarquia. Integra os corpos gerentes da Associação Profissional de Arqueólogos (APA) desde 2002, tendo sendo presidente da direcção no triénio 2007-2009.
Curriculum detalhado aqui.
© Imagem: Ministerio de Educación, Cultura y Deporte | Museo Arqueológico Nacional
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Muito interessante esta reflexão de Maria José de Almeida que, embora com uma base também “impressionista”, partilho nas suas grandes linhas. Creio que há um conjunto muito diversificado de razões, algumas bem profundas, que justificam esta diferente atitude entre os públicos dos dois países em relação aos seus museus e espaços patrimoniais. Mas, naturalmente, compete a todos os que têm responsabilidades e/ou trabalham nestes espaços desenvolver todos os esforços para aumentar a atractividade dos seus museus, monumentos e sítios, e para estabelecer relações de identificação e partilha com os seus públicos.
Contudo, não posso deixar também de enfatizar que os museus portugueses, mesmo com a tradicional carência de meios, estão bem vivos e, para dar 2 exemplos que melhor conheço, ainda há poucas semanas, depois de importantes obras, foi aberto na sua totalidade o Museu Nacional Machado Castro, em Coimbra, e que, na próxima quinta-feira, dia 31, abre a público a exposição permanente do Museu Nacional de Etnologia, em Lisboa.
O problema dos preços dos ingressos está na ordem do dia, impulsionados por uma ideia dominante de procura incessante de receitas que, sobretudo no actual quadro, pode revelar-se contraproducente, aconselhando portanto a alguma prudência – e a bem sustentados estudos comparativos com os congéneres europeus – nesta matéria.
Finalmente, uma nota sobre a falta de referência, nos sites da Direção-Geral do Património Cultural (que integrou a DRCLVT, IMC e IGESPAR), sobre as entradas gratuitas para desempregados. É correcta a chamada de atenção, embora esta medida tenha estado vários meses em destaque no site do ex-IMC. Assim, vai ser reposta a informação.
Eu também achei interessante este ponto de vista da Maria José, principalmente por ter sido resultado de uma estadia maior em Madrid, algo que nos dá uma perspectiva diferente da situação.
Eu também acho que o problema não é da exclusiva responsabilidade dos museus. É algo maior e, infelizmente, mais estrutural. Tem a ver com a forma como vivemos as cidades, a desertificação dos centros urbanos (de Lisboa e Porto, principalmente), com os hábitos culturais que criamos ao longo de muitos anos, etc. No entanto, é de saudar o enorme esforço que os museus têm feito nas últimas décadas para contrariar esta situação.
Em breve, espero poder visitar os dois museus que refere, caro Rui Ferreira da Silva, mas ainda não tiver oportunidade de ir a Coimbra com tempo e assim que for a Lisboa arranjarei o tempo necessário para o fazer.
Cumprimentos
ambém achei muito interessante o artigo de Maria José e lembrei-me de que há uns anos me encantou uma turma de crianças muito pequenas, para aí uns três ou qutro anos, que numa visita guiada pela sua professora (educadora) seguiam com muita atenção e animação as cenas de um quadro de um pintor flamengo do seculo XVI. Era tão interessante a história e a sua motivação que me prendi também ao grupo seguindo-os. Talvez esse facto associado a outros incentive os espanhóis a sentirem-se bem nos museus.
A sopa da vizinha é melhor que a minha.
É pois! Já lá foi provar? Olhe que vale a pena…
(e por sopa entenda-se Madrid, que este texto é – ao contrário do que muitos leram – mais sobre a cidade do que sobre os seus museus. E, também sinto a necessidade de explicitar depois de alguns comentários neste e noutros locais, eu não estou a fazer nenhuma crítica aos museus portugueses: estou a fazer um enorme elogio à cidade de Madrid e aos seus habitantes)
Excelente o texto de Maria José de Almeida, com o qual me identifiquei de imediato. Foi esta a sensação que tive quando estive apenas uns dias em madrid: a diferença de relação dos públicos dos museus de madrid e dos nossos públicos. E, na linha de pensamento do Alexandre, também acho que essa diferença advém, muito mais de uma qustão culural. Eu, que trabalho num museu há 12 anos, e que durante os primeiros anos “nos” considerava “culpados” pela ausência de visitantes, constato agora que, apesar de grandes mudanças na proximidade de relação e vivência do museu com a cidade, o número de visitantes não aumentou em proporção direta ao serviço prestado.É mesmo um problema de “cultura quotidiana”. Há também uma altura , pela Páscoa, em que são os espanhóis, penso que em grande maioria madrilenos, que abrilhantam de cores e de barulho a marginal e as esplanadas desta cidade, mas não tenho ideia nenhuma de os ver percorrer os corredores do nosso museu. De quem é a culpa agora? BOm, não tem mal…iremos sempre continuar a trabalhar como se fossemos um museu madrileno.