Isto é difícil. 

Para quem trabalha em museus por vocação, a ordem de fechar portas imediatamente por um período indeterminado, mesmo se antecipada, é um choque emocional. Para a maioria de nós esta é a primeira vez que uma emergência destas acontece. 

Não temos escolha senão recompormo-nos rapidamente porque o encerramento sine die de uma instituição que existe porque há objetos a cuidar para os poder mostrar aos outros da melhor maneira que sabemos requer um sem fim de ações para acautelar a segurança e conservação de bens, instalações e equipas.  (Bendito plano de emergência).

A mim, a ordem chegou na sexta-feira ao principio da tarde. Como o nosso museu/centro de investigação é fisicamente pequeno – e como temos um plano de emergência – foi relativamente rápido. Esvaziar vitrines. Guardar stock de loja. Certificar-nos que não ficam lixos orgânicos para trás. E os outros procedimentos que não devem ser detalhados aqui. 

O esvaziar de vitrine foi o mais difícil – o coração fica apertado porque é tão contra-natura, retirar os objetos, e as histórias, que mais representam aquilo que temos para contar. E que vão ficar guardados, sozinhos, longe do olhar, durante sabe Deus quanto tempo. Porque de algum modo os objetos, e as histórias, que contamos deixam de existir, ou pelo menos de ser relevantes, se as nossas portas encerram.

Estantes vazias

No meu caso particular, a rapidez de decisão e de execução, bem como a impermanência das decisões lembraram-me os dias a seguir ao 11 de setembro, quando as politicas públicas mudavam de hora a hora, de acordo com a informação mais atualizada. E é mesmo assim. Por mais emocionalmente destabilizante que seja este viver em fluxo, é mesmo assim, porque o que sabemos muda rapidamente. 

Vitrine vazia

E agora? Agora que as salas estão fechadas, que as luzes estão no ‘modo segurança’, que os alarmes estão ativados. O que fazemos? Qual é o nosso ‘novo normal’, para nós que trabalhamos nos museus por vocação?

Nas próximas semanas, uns vão estar em teletrabalho, outros de baixa parental a 66%, ou a 33% dos recibos verdes, ou nas instalações fechadas ao público. O tempo vai ter uma qualidade diferente – abrem-se as possibilidades enquanto simultaneamente um nó na garganta (no meu caso, uma vontade absurda de ir correr pelo meio da rua a gritar ‘vamos todos morrer!’, que controlo a escrever textos como este), um nó na garganta, dizia, nos vai minando a vontade de fazer qualquer coisa com significado com este tempo diferente que agora temos nas mãos.

CUIDAR

Cuidar as equipas. 

Enquanto técnica superior com funções de coordenação (a bom entendedor…) eu dou o exemplo. Por isso, contacto regular com a equipa, actualizando a informação que recebo. Seja por SMS (que prefiro) ou por grupo de whatsapp. Distribuir tarefas, projetos e/ou leituras para quem está em teletrabalho, adaptado às suas funções e aptidões.  Acima de tudo, estar presente, acompanhar e ouvir as equipas, as suas inquietações, transmitir-lhes esperança e uma atitude criativa e o mais positiva possível. 

E esperar pouco, porque as minhas prioridades não têm necessariamente que ser as deles. 

Cuidar a comunidade.

O museu tem visitantes regulares? Alguns mais velhos? Estão bem? Têm companhia? Precisam de alguma coisa?

No equipamento que coordeno temos a sorte – e o privilégio – de contar com um público regular, que, em muitos casos, conhecemos pelo primeiro nome. Por isso, um simples mail pessoal, a dar conta da nossa disponibilidade para ajudar com uma ida ao supermercado ou à farmácia, deixa-me mais tranquila e renova junto dos nossos visitantes que eles são importantes para nós. 

Aqui, ninguém fica para trás. A não ser que queira, claro. 

Cuidar-se a si. 

O isolamento social não é pêra doce. Desenvolve-se aquilo a que se chama ‘febre de cabine’. É fácil ficar obcecado com o museu, o cuidado, as coleções, os protocolos que funcionaram bem ou mal, os outros que fizeram ou não. Por isso, limite nas horas em frente ao computador, limite nos emails e grupos de whatsapp a discutir o que não interessa e só nos aumenta a ansiedade. 

Comer bem, ao longo do dia. Dançar o Father Figure de roupa interior ‘na privacidade do lar’. Estar gratos porque, bem vistas as coisas, somos uns sortudos na lotaria da vida. E DORMIR – à noite e, se possível, a sesta. 

Tenho sorte, porque tenho um petiz que não me deixa ficar a moer nada sozinha durante muito tempo. Há brincadeiras a ter, beijinhos a dar, cócegas a fazer (e birras a gerir). E como ele se levanta tempranillo, não tenho escolha senão deitar-me e dormir o mínimo para conseguir funcionar no dia seguinte. 

INVESTIGAR

Agora é que é! 

Sem as pequenas – ou grandes – interrupções do quotidiano de um museu, este é o momento para começar aquele projeto de investigação tão adiado – a história de um objeto, o estudo de visitantes, os possíveis mecenas, os planos de comunicação… 

Melhor ainda é fechar os artigos, livros, recensões pendurados desde sabe-se lá quando. Para quando voltarmos ao trabalho, virmos com o caderno de encargos um bocadinho mais leve. (A minha listinha é longa: guião de exposição, perfis biográficos, artigo para a Revista Museus, e fechar artigo sobre Karl Buchholz). 

APRENDER

Que se aproveite este tempo suspenso para aprender qualquer coisa (levante a mão quem sabe criar uma tabela dinâmica no Excel). Não faltam cursos online e gratuitos para ganhar aptidões desejadas – seja na prática museológica, ou nas competências de apoio que nunca nos apetece aprender. 

Os documentários e podcasts, também eles gratuitos e online,  debruçam-se sobre temas específicos da pratica museológica de hoje – o que nos move? De que é feito o futuro dos museus? Dos Museopunks ao Lugar da Mediação, são muitos os profissionais de museus que param para repensar o que fazem e como o fazem. 

PARTILHAR

museu fechado aviso

Estamos encerrados, não ausentes. Por isso, há que manter a existência do museu, da sua colecção, das suas histórias, da sua identidade, no quotidiano colectivo. A partilha online de conteúdos – imagens, vídeos, textos, sons – nas plataformas à nossa disposição é uma oportunidade. De mantermos o contacto com os públicos que já são nossos, mas também de os alargarmos e, no melhor dos cenários, diversificamos. 

Inspiremo-nos no que os nossos colegas das artes performativas já estão a fazer, e programemos online – conferências, cursos, testemunhos, apresentações. Conteúdos formais e informais. 

Para que os públicos tenham saudades do museu – das coleções e das pessoas – e regressem, quando este normal voltar à anormalidade, com expectativa, curiosidade, voltar de ver ao vivo aqueles e aquilo que ficaram a conhecer um pouco melhor durante o isolamento. 

GIZAR

No quotidiano da vida de museu, falta muitas vezes o tempo para avaliar, repensar, abandonar caminhos e construir estratégias. Pois que seja este esse tempo, de tudo reavaliar. O que é que eu posso fazer de significativo e útil? Que lixo – burocrático, procedimental, emocional – é que não quero continuar arrastar comigo quando regressar? Quais são os valores essenciais e não-negociáveis naquilo que fazemos?

E agora, claro, o disclaimer: nada disto é obrigatório. Nenhum profissional de museus tem que passar as próximas semanas a repensar tudo isto. E nada de mal virá ao mundo se não o fizer. 

Consigo já ouvir algumas vozes – ‘não sou pag@ para isso!’. Sim, sim, eu também não.  

Mas, como disse, este texto é para o pessoal da vocação. E entre andar pela rua em pânico e aos gritos ou fazer uma lista de boas intenções, concretizando apenas algumas, escolho a segunda hipótese. 

Há umas semanas li uma definição sobre o que é a vida, de que gostei muito. (não me lembro da fonte, para mal dos meus pecados). 

A vida é  saber quem somos, ajudarmos os outros, e não sermos parvalhões.

 Inês Fialho Brandão

Inês Fialho Brandão coordena um pequeno museu na área da Grande Lisboa. Investiga as biografias de refugiados em Portugal durante a Segunda Guerra Mundial, a proveniência de obras de arte durante a era Nazi, e as questões de ética que estão subjacentes a estes temas, sobre os quais é palestrante convidada em universidades e escolas secundárias. Trabalhou extensivamente enquanto profissional de museus e curadora. Os seus projetos relevantes incluem ‘Olhares Cruzados sobre Arte e Islão’ (2008); ‘Colecionar para a Res Publica’ (2011); e ‘O Legado Judaico em Portugal, exposição em Cascais’ (2018).

É licenciada em Historia e Historia de Arte pela Universidade de Edimburgo, mestre em Estudos Islâmicos e Museologia pela Universidade de Nova Iorque, e doutoranda em Historia pela Universidade Nacional da Irlanda. Foi bolseira da Fundação Calouste Gulbenkian, da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, e da Fundação para a Ciência e Tecnologia.