Pare, escute e olhe – Maria José de Almeida

Pare, escute e olhe – Maria José de Almeida

Fui a Berlim à ópera. Fui também para conhecer a cidade, fui também para ver museus.

Vi uma exposição sobre Wagner “e o sentimento alemão” (seja lá como melhor se traduz Richard Wagner und das deutsche Gefühl). O amigo com quem vi a exposição, e cantou na ópera que ouvi nessa noite, explicou-me que foi com Wagner que começou esta coisa de apagar as luzes ao público e mandá-lo estar calado até que a obra chegue ao fim.

Não sabia disso. Sabia que a ópera, e o teatro também, quando começou e até ao séc. XVIII era uma badalhoquice: o pessoal comia, bebia, punha a conversa em dia e fazia negócios de vária índole. Não fazia ideia que tinha sido com Wagner que a coisa mudou. Mudou nos meios intelectuais e burgueses, claro, os espetáculos populares continuaram (continuam?) a ser assim: vai-se pela festa e de vez em quando presta-se atenção ao que se passa no palco.

Enquanto víamos a exposição, disse ao meu amigo que de alguma forma era mais honesto antes. Não ia ninguém ao engano nem ficava lá por obrigação. E punha os compositores (e encenadores e intérpretes) a esforçarem-se mais. Sabiam que tinham de captar a atenção do público. Se havia momentos no decurso do espetáculo em que diminuía o volume das vozes, em que mais cabeças se viravam para o palco, em que mais gente ficava atenta e depois até aplaudia… então era porque o trabalho deles era bom. Vamos ser honestos: se Wagner não tivesse imposto esse novo comportamento na ópera, quem aguentava as cinco horas dos Mestres Cantores de Nuremberga sem dar uns goles numa caneca de cerveja, comentar o assunto do dia ou ir lá fora verter águas?

Curiosamente a produção de Einstein on the Beach a que assisti no Festival de Berlim recuperou qualquer coisa dessas óperas festa. Sabia desde que comprei o bilhete que as quase quatro horas de espetáculo não iam ter intervalo mas que podíamos entrar e sair individualmente e mover-nos livremente em cena. Dois dias antes, recebi uma mensagem com instruções mais específicas, que falava do palco rotativo, que dizia que seria simpático mudar de lugar frequentemente para que todos pudessem usufruir de todas as perspetivas possíveis. E com pormenores muito práticos: por razões de segurança, por favor mantenham os sapatos calçados.

Tinha informação privilegiada, sabia quais as partes em que seria mais interessante estar perto dos cantores e atores em palco, que devia pelo menos uma vez sentar-me no centro da plateia. E também quando seriam os momentos melhores para sair, se fosse preciso. Não foi. Fiquei todo o tempo dentro da sala, mudei de lugar muitas vezes, fiquei agarrada à música e ao movimento, muitas vezes junto do fosso da orquestra com todos os sentidos a absorver a direção rigorosa e emotiva (ah, pois não, não são antónimos!) de André de Ridder. Estive 3:35 sempre atenta.

E porque falo eu de ópera num texto a divulgar num blog de museus? Porque me lembrei imenso disto quando visitei o Pergamonmuseum e o Neues Museum. Foi no último dia, já sozinha, confesso que fui com algum sentimento de obrigação. Visitei outros museus em Berlim que são muito mais o que procuro: sobre uma coisa e não sobre todas as coisas ao longo do tempo e com a escala certa para não ficar de rastos no primeiro terço da visita. Falo da Coleção Scharf-Gerstenberg e de Casa Waldsee, por exemplo. Mas sim, tenho que admitir que seria uma parvoíce não ver as portas de Ishtar e as do mercado de Mileto. E hei de voltar quando puder ver o altar de Pérgamo.

Mas vi estes museus da ilha como o pessoal ia à ópera no séc. XVII: muito mais interessada nos visitantes que lá estavam, nos guardas, nos pormenores da museografia, na vista das janelas, nos interiores dos edifícios… do que nas peças. Há peças emocionantes, sim, mas precisava de viver em Berlim ter um passe anual dos museus (sim, existe, e custa 25€, façam lá as contas à percentagem que isso representa em relação ao rendimento médio alemão) e ir lá todos os fins de semana e alguns fins de tarde. Mesmo o museu da fotografia, que é temático e é um tema dos meus, tem uma escala demasiado grande.

Assim, passei por algumas das coleções mais extraordinárias do mundo como cão sobre vinha vindimada. Parei algumas vezes. Como nas óperas quando havia uma área mais doce ou mais virtuosa ou um bailado mais exuberante que desviava a atenção da perna de frango e da toilette dos vizinhos. Parei numa exposição minúscula entalada entre salas com peças estrondosas. O título foi o chamariz: Nabodocudonozor sob o socialismo. Hã? Primeira campainha. Segunda campainha: o texto de entrada que acaba com um parágrafo com três perguntas.

E ali fiquei. A perceber o papel que o Vorderasiatisches Museum teve no contexto da Alemanha dividida. Como a RDA usou o museu para afirmar a importância da cultura na construção de uma sociedade socialista. E tudo isto contado com recurso a objetos nada estrondosos mas de enorme valor documental para contar essa história. Um desses objetos os vídeos feitos pela televisão estatal sobre as atividades do serviço educativo do museu. Que vi na íntegra.

O que nos faz parar e prestar atenção é certamente diferente para cada um de nós. Haverá quem seja sensível à beleza. Haverá quem seja sensível à singularidade. E uma peça de museu pode ser bela e singular e valer só por isso mesmo.

Não sou insensível à beleza nem à singularidade mas para que elas me emocionem numa peça de museu tenho que ter tempo ou espaço para apreciar essas características como valores absolutos. Uma peça de cada vez.

Ainda assim, o que me faz mesmo parar e prestar atenção é uma boa história. Se for contada com  recurso a objetos belos e singulares, tanto melhor. Mas não precisa. Precisa de ser bem contada, com um objetivo definido e uma estrutura que o sirva na transmissão da mensagem.

Nos museus, na ópera e em tantas outras formas de criação.

The day with its cares and perplexities is ended and the night is now upon us. The night should be a time of peace and tranquility, a time to relax and be calm. We have need of a soothing story to banish the disturbing thoughts of the day, to set at rest our troubled minds, and put at ease our ruffled spirits.

And what sort of story shall we hear? Ah, it will be a familiar story, a story that is so very, very old, and yet it is so new. It is the old, old story of love.

Einstein on the Beach

Knee Play 5: Bus Driver: Two Lovers (Text written by Mr. Samuel M. Johnson)
 Maria José de Almeida

Maria José de Almeida é Doutora em Arqueologia pela Universidade de Lisboa.

Até 2016 trabalhou nos municípios de Santarém e Cascais, desenvolvendo ações de arqueologia preventiva e gestão de coleções de bens arqueológicos. Foi responsável pela implementação do Sistema de Informação dos Museus de Cascais e coordenou a integração do mesmo na plataforma de Sistema de Informação Geográfica da autarquia. Fez parte dos corpos gerentes da Associação Profissional de Arqueólogos (APA) desde 2002, tendo sendo presidente da direção no triénio 2007-2009. É membro do Grupo de Trabalho Sistemas de Informação em Museus da Associação Portuguesa de Bibliotecários, Arquivistas e Documentalistas (BAD).

Atualmente integra a equipa da Direção de Serviços de Inovação e Administração Eletrónica da Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB).

Curriculum detalhado aqui.

Municipalização de museus e gestão pela desconfiança – Maria José Almeida

Municipalização de museus e gestão pela desconfiança – Maria José Almeida

escrevi neste cantinho sobre municipalização de museus. Aliás, escrevi noutro sítio, repeti aqui dez anos depois. Entretanto, já passam doze sobre o texto original. A questão não é nova, portanto.

Mas voltou a estar na ordem do dia porque o conselho de ministros acaba de aprovar uma proposta de lei que “estabelece o quadro de transferência de competências para as autarquias locais e para as entidades intermunicipais.” Embora os museus estejam neste barco há algum tempo, como também aqui já se disse, voltámos todos a falar nisso. E a falar como?

Com expressões deste género: “muitos temiam que o Museu de Évora passasse a ser gerido pelo município” ou, no mesmo contexto, a “promoção a museu nacional”. Esta ideia de elevação ou promoção tinha sido também usada para o Museu Grão Vasco em 2015, aquando da alteração da sua titularidade.

As palavras que usamos são importantes porque com elas vêm conceitos e, neste caso, juízos de valor: a gestão de um museu por uma autarquia é coisa que mete medo, os museus nacionais estão numa posição hierarquicamente superior aos regionais e municipais. É isto, não é?

Eu atrevo-me a dizer que não devia ser.

Não vou discutir vícios e virtudes da gestão que os municípios portugueses fazem dos museus, em particular, e do património cultural, em geral. Para isso serviu o referido texto que aqui escrevi e outros na defunta revista Praxis Archeologica[1]. Vou antes chamar a atenção para esta coisa de considerarmos sempre que de um lado estão “os bons” (a administração central) e do outro estão “os maus” (a administração regional e local). Esta distinção nunca contribuiu para o fortalecimento da administração pública portuguesa. A gestão pela desconfiança, legislar e restruturar assumindo que “os outros” são uns malandros à espera de rédea solta para libertar toda a sua maldade, é das coisas mais perniciosas que temos na função pública. Também existe na horizontal, entre diferentes organismos da administração central com competências ou ações complementares e entre municípios que partilham recursos ou têm territórios confinantes.

O principal problema dos museus portugueses não é a gestão municipal: é a má gestão. E insistir num discurso que deixa transparecer que os temos que “salvar” pela integração na administração central é contraproducente e autofágico.

Os diferentes níveis de administração não são concorrentes nem se definem hierarquicamente. Os executivos municipais não são uma espécie de réplica pequenina do governo central. Ou não deviam ser. Se calhar é mais por aí que devíamos ir na discussão: faz sentido descentralizar para apenas replicar funções do Estado à escala de 308 unidades municipais? Ou faz mais sentido descentralizar para distribuir competências diferentes que podem ser melhor geridas a nível local? E, já agora, isto de dividir o território em bocadinhos tão pequenos é mesmo útil?

A municipalização dos museus é uma questão que afeta o quotidiano de muitos profissionais nesta área e por isso é natural que muitos de nós estejam preocupados. No entanto, é apenas uma parte de um tema mais amplo que, enquanto cidadãos, devíamos exigir que se discutisse de uma forma consequente: a reforma da administração local e regional do nosso território, adequada à dinâmica socioeconómica e à demografia.

[1] Sim, o link não funciona, é propositado; também podíamos discutir vícios e virtudes do conhecimento produzido no âmbito de associações mas… não temos tempo

 Maria José de Almeida

Maria José de Almeida é licenciada História, variante Arqueologia, pela Universidade de Lisboa, estando a terminar o curso de doutoramento na mesma universidade.

Até 2016 trabalhou nos municípios de Santarém e Cascais, desenvolvendo ações de arqueologia preventiva e gestão de coleções de bens arqueológicos. Foi responsável pela implementação do Sistema de Informação dos Museus de Cascais e coordenou a integração do mesmo na plataforma de Sistema de Informação Geográfica da autarquia. Fez parte dos corpos gerentes da Associação Profissional de Arqueólogos (APA) desde 2002, tendo sendo presidente da direção no triénio 2007-2009. É membro do Grupo de Trabalho Sistemas de Informação em Museus da Associação Portuguesa de Bibliotecários, Arquivistas e Documentalistas (BAD).

Atualmente integra a equipa da Direção de Serviços de Inovação e Administração Eletrónica da Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB).

Curriculum detalhado aqui.