Em resposta ao repto lançado por Alexandre Matos para participar neste Speaker’s Corner a partir do mote lançado no seu recente post, “Queremos novos museus?” optou-se por relacionar o post com o artigo “We Built Way Too Many Cultural Institutions During the Good Years” da autoria de Emily Badger, publicado em Julho passado no site The Atlantic Cities – Place matters, com base num estudo efectuado pela Universidade de Chicago. (http://www.theatlanticcities.com/arts-and-lifestyle/2012/07/we-built-way-too-many-cultural-institutions-during-good-years/2456/#.UN8wtEY0HsA.facebook)
O estudo Americano incidiu sobre o recente boom de criação de entidades culturais (museus e outras), o estado do panorama actual e de como a procura se relaciona, ou não, com a oferta. Foram efectuados inquéritos a 725 instituições culturais que foram criadas nos EUA entre 1994 e 2008. Dizem os autores do estudo que o número de instituições criadas ultrapassou em muito a capacidade da procura, causando agora demasiadas situações de escassez financeira e de espaços muito pouco frequentados. Ainda segundo o mesmo relatório é evidente a ausência do factor “procura” em muitos dos projectos iniciados nesse período de mais vastos recursos, que quase sempre incluíram a construção de novos edifícios. “What we concluded is that there’s a lot of short-term thinking going on. A lot of institutions felt very successful, however they weren’t really thinking down the line.” A principal recomendação daquele estudo é o incentivo à racionalidade e à identificação atempada da procura, enfim, ao planeamento a longo prazo que limite decisões irracionais e apaixonadas.
Sabemos que a realidade americana terá pouco em comum com a portuguesa e cremos que uma boa dose de paixão será sempre tão bem vinda quanto necessária à criação e à gestão de projectos culturais e museológicos. No entanto, e no que toca ao universo dos museus públicos, os temas do fervor construtivo de entidades culturais, da falta de planeamento a longo prazo, ou dos projectos de investimento em novos museus que aparentam não ter em conta o panorama museológico pré-existente, talvez não nos sejam assim tão estranhos.
Em tempos em que quase todos os dias se leem notícias sobre diminuição de recursos financeiros e humanos, e mesmo sobre o fecho de museus, como explicar a manutenção da energia propositiva para a criação de novas entidades?
Pergunta o Alexandre Matos – e tantos de nós – para que queremos sempre mais museus? Mas será que os museus são criados porque “nós” queremos?
Como tão bem explicou Stephen Weil, a procura que motiva a criação, ou mesmo a existência de museus, foi sendo deslocada de o museu dever ser “sobre algo”, para dever ser “para alguém”. A razão de ser dos museus está cada vez mais nos públicos e utilizadores (a procura), e menos na imagem espelhada dos seus promotores, coleccionadores ou políticos (criadores da oferta).
Sabe-se que se criam museus para conservar e divulgar colecções consideradas importantes para os seus públicos potenciais e comunidades próximas, e/ ou para os seus promotores; para investigar e melhor representar um território; como também para honrar compromissos políticos de vária ordem.
Também se percebe que se criam museus para evitar males maiores: para “ocupar” edifícios tornados devolutos; para salvar a memória de empresas, fábricas ou sectores económicos em falência e risco de esquecimento, transformando conjunturas deprimidas em oportunidades potencialmente fantásticas de estudo e divulgação de patrimónios.
Criam-se museus, ainda, por interesse financeiro. Para tornar mais atractiva e rentável uma região ou cidade, não só ou não tanto através das receitas de bilheteiras, lojas e concessões, mas sobretudo por meio das externalidades indirectas que os museus podem gerar pelos sectores do alojamento, restauração e outro comércio.
Num cenário ideal, e aparte questões de ordenamento do território museológico que não nos cabe desenvolver, todas as ideias de museu fariam sempre sentido e teriam o seu justo lugar, independentemente da tipologia, dimensão ou tutela, desde que cumpridoras das funções museológicas, tendo em conta que se tratam de exercícios democráticos de expressão, potenciais catalisadores de riqueza cultural.
O problema está apenas no detalhe dos recursos que, perante a importância e o valor das colecções e dos propósitos educativos e sociais dos museus, deveria mesmo ser só um detalhe. E esse detalhe era suposto ser resolvido pelas instâncias públicas que reconhecem a importância dos museus, ou pelas entidades privadas que têm, felizmente, a ousadia de os criar. E assim foi durante muito tempo, em que os museus eram muito menos, e os recursos pareciam não faltar.
Actualmente, as entidades públicas (portuguesas, europeias, até americanas) têm evidentes dificuldades em manter os museus existentes, e os privados deparam-se com limitações semelhantes, não raras vezes solicitando ajuda das instituições públicas para colmatar a deficiência das suas capacidades de financiamento.
Mais do que numa recessão, parece que estamos num “reinício” económico, social e cultural (McGonagle, 2012, “A Resetting. Not just a recession”). Sabendo que a elasticidade dos recursos financeiros ultrapassou os seus limites e que os modos de viver em sociedade estão mesmo em fase de profunda alteração, resta-nos o planeamento responsável e lúcido.
Deveria, então, depreender-se que a evidência da escassez de recursos teria directas implicações sobre os projectos de criação de novos museus. Essa evidência exigiria, também, atento planeamento a longo prazo incluindo o cálculo da capacidade da procura, não só para poder prever o grau de retorno do investimento (em termos directos ou indirectos não financeiros) que permitisse o funcionamento dinâmico do museu a longo prazo, como também para antecipar a correspondência entre os objectivos dos futuros museus e os seus efeitos junto dos públicos ou comunidades próximas.
É preocupante a ameaça, por vezes concretizada, de extinção e de “fusão” de museus. Não obstante, e quando já se pensava impossível, assiste-se também, com surpresa, a projectos de criação de museus novos, de âmbito central, regional e local. Sinais de esperança e de optimismo, sem dúvida. Mas nem sempre tem sido evidente o respectivo planeamento sobre o detalhe dos recursos, ou sobre o impacto no contexto museológico pré-existente.
É curiosa a força da tentação por criar novos museus. Não tanto de renovar os existentes, de melhorar ou de mudar as suas instalações, de incorporar novas colecções em museus bem geridos, de alterar os seus modos de funcionamento e os seus modelos de gestão, mas sim de criar novos, com tudo novo. De preferência “museus vivos”.
Se ainda houver recursos que sobrem ou que se possam criar para lá da imprescindível orçamentação suficiente para o funcionamento dinâmico dos museus existentes, dê-se prioridade à modernização, remodelação ou ampliação de tantos museus que são, por vezes, menos lembrados e que não deixam de conservar e documentar patrimónios significativos.
Remodelar museus, não só pela óbvia razão do aproveitamento, ainda que parcial, de colecções, espaços e serviços existentes; também pela razão do reconhecimento do valor do trabalho feito, do espírito dos lugares e dos objectos, da investigação e documentação tantas vezes existente mas esquecida ou julgada não aproveitável para uma instituição que se quer moderna e portanto nova, diferente. Exemplos recentes, de Norte a Sul do País, demonstram que é possível remodelar criando a sensação de novidade, tão importante para a atracção de financiamentos e de incorporações.
Nem contra novos museus, nem pela teoria “do ajuste de contas” aritmético, em que por cada museu encerrado ou “fundido” se poderia então criar um novo. Mas mais, no tempo presente, pelo planeamento atento e pelo investimento na renovação e modernização possível dos museus existentes.
Se temos mesmo que escolher, então preferimos a qualidade à quantidade. Museus melhores; e não necessariamente novos museus, talvez seja o que mais queremos, Alexandre.
Pós-graduada em Museologia e em Gestão Cultural. Desde 2010 membro do Gabinete da Vereadora da Cultura da Câmara Municipal de Lisboa, Catarina Vaz Pinto, com a coordenação do Grupo de Trabalho para a Criação da Rede de Museus Municipais de Lisboa, entre outras funções. Foi Coordenadora-adjunta da Rede Portuguesa de Museus (Instituto Português de Museus) de 2000 a 2010.
Bravo. Belissima leitura.
Tenho pensado tanto nesta temática, sobretudo nos últimos tempos, encontrando aqui resposta a algumas das questões que me coloco. Mas permanecem algumas: Os museus têm de ser conjunturalmente atraentes ou identitários? Os museus devem ser economicamente sustentáveis ou economicamente equilibrados? A maior criação de riqueza de um museu não será a valorização (económica e cultural) das suas colecções?
Meu caro Miguel,
Eu respondo também com algumas questões: Se os museus não forem identitários, serão ou conseguirão ser algum dia atraentes? A sustentabilidade dos museus implica ou não um equilíbrio financeiro e económico do museu enquanto instituição? Ser sustentável pode ser demonstrado pela mais valia cultural/educativa/turística, etc. de uma instituição, mas será que se pode pôr de parte a questão financeira?
Para a última pergunta eu respondo diretamente: o maior “tesouro” do museu é a sua coleção, com ela poderá/deverá criar riqueza (económica e cultural) que permita a sua sustentabilidade a longo prazo, mas para o fazer há um longo e árduo caminho (documentação, preservação, acessibilidade, etc.).
Abraço amigo!