Não queria ser mais um cidadão ou profissional de cultura a externar indignação sobre a tragédia do Museu Nacional, uma vez que muitos colegas já o fizeram adequadamente. Mas resolvi escrever como forma de compartilhar parte da culpa e da estranheza que continuo a carregar. Inicialmente, tocar fogo no museu mais importante do país no ano de seu bicentenário (sim, nós o fizemos) pode parecer incompreensível, até brutalmente surreal. No entanto, o choque inicial acaba por dar lugar a aceitação de algo anunciado, óbvio, esperado.
Na cidade ou país – o Rio continua sendo a mais maravilhosa das nossas metáforas pátrias – em que se gastam fortunas em novos museus e projetos culturais mirabolantes, enquanto instituições com acervos preciosos permanecem soterradas no descaso e esquecimento, a relação causa e efeito começa a encadear-se em uma lógica perversa e incontornável.Os próprios conceitos colocados na ordem do dia nos parecem confusos e obscuros. Museu é quase qualquer coisa, entidade, espaço ou conceito (perdão pela indiscrição tautológica) que tenha uma programação cultural ou algo que com isso se pareça. Para criá-lo, basta batizá-lo. Acervo é um elemento ultrapassado, custoso, quase desnecessário na nova, revolucionária e sustentável equação museológica cunhada em terras tupiniquins. Para quê conhecer e interpretar o passado se podemos pular o presente e visitar um amanhã cheio de traquitanas e luzes coloridas?Mais interessante e groundbreaking ainda é inventar os não-museus do amanhã só com um pouquinho de dinheiro público, passar o resultado para os cuidados do Estado corrupto/falido e finalizar colocando a galera global para tomar conta do novo equipamento. Apesar do choramingo eterno pela falta de recursos, dinheiro não foi problema, foi solução. Quem disse que não vemos progresso cultural por essas bandas? Qual a Disneylândia, com uma boa propaganda na telinha e uma ampla fila na entrada, tudo se paga e se justifica. Então, se não conseguimos distinguir o fogo do Museu Nacional do fogo do Museu da Língua Portuguesa ou acervo de cenografia, qual é o problema afinal? Por que tamanha comoção? Não bastaria juntar um troco, mesmo que com certo atraso, para reconstruir a coleção e o museu? Infelizmente, não.
Como bradou nosso distinto Ulpiano Bezerra de Meneses, museu sem acervo é igual mula sem cabeça. Apesar de bonitinho, não passa de folklore. Sim, acervos podem e devem ser digitais se objetivamos documentar a experiência humana recente. Basta reconhecer que cópia digital não é acervo, backup não é política de preservação e atividade museológica não se encerra em umsite ou em uma galeria bem montada com os gadgets do momento. Apesar das inúmeras
iniciativas que continuam a pipocar (mesmo com a ausência de recursos) a mera digitalização aliada à pirotecnia tecnológica jamais substituirá a materialidade dos acervos. Já vociferei antes contra a digitalização selvagem e seus problemas para as instituições de memória, mas reconheço que se ao menos isso tivesse sido feito no Museu Nacional hoje nos restaria mais do que apenas cinzas.
Até podemos chamar um arquiteto famoso e refazer o edifício com ares internacionais pós- modernos a beira mar (a generosa oferta do BNDES daria para rabiscar o desenho), mas recheá- lo a contento seria deveras complicado. Tudo isso para dizer que no país do vale tudo, da fachada e do engodo, museu é curinga, vai de mausoléu a parque de diversões com caça níqueis/público, e conservação é aquela de jardim e condomínio, que vale terceirizar porque é mais em conta.
Dito isto, a tragédia anunciada passaria a fazer sentido, seria até um desdobramento lógico. Só que não…, como diria a geração XYZ, pois as consequências são muito grandes e devastadoras para serem reduzidas a uma cadeia de mera causalidade. Com o incêndio de domingo queimamos não só o resquício material de inúmeros passados, mas a possibilidade de construção de futuras memórias coletivas e individuais. Mutilamos também uma ciência já fragilizada, cuja pesquisa se destacava pela diversidade e preciosidade das coleções do museu. Culturas e espécies já extintas foram dizimadas mais uma vez, talvez definitivamente, agora pelo desaparecimento de seus únicos ou poucos vestígios materiais. Se juntarmos a esse quadro de devastação a situação atual das duas instituições máximas de memória remanescentes (Arquivo Nacional e Biblioteca Nacional) e da vasta maioria dos nossos outros museus, nossa perspectiva enquanto sociedade organizada e Estado de direito torna-se ainda mais débil e duvidosa do que aquela apontada pela eleição que se aproxima.
A violência inicial do ocorrido nos levou a apontar dedos em busca de culpados para dar vazão à nossa justa indignação, mas o abandono das nossas instituições não é de hoje ou de anos, mas sim de décadas ou talvez séculos. O descaso e a incompetência apontam facilmente para o governo, para a universidade e órgãos públicos envolvidos na confusa e burocrática gestão do patrimônio cultural brasileiro. Se o objetivo da reflexão acerca desse imenso trauma é sua superação, essa identificação fácil e imediata, apesar de óbvia e necessária, não nos ajuda a distinguir com clareza a complexidade do problema. Nós, enquanto sociedade, devemos assumir a responsabilidade pela destruição do Museu Nacional em todas as suas instâncias. Enquanto representantes políticos corruptos e gestores incapazes ou incoerentes. Enquanto pesquisadores e profissionais egoístas, incompetentes e passivos. Enquanto cidadãos e eleitores ignorantes e suscetíveis.
Retornando ao objetivo inicial de compartilhar minha culpa e estranhamento, gostaria de desenvolver mais profundamente a questão da responsabilidade enquanto gestor, pesquisador e profissional de museu. Falamos pouco. Gritamos pouco. E fizemos menos ainda. Nosso simbólico abraço foi post mortem. Fomos incapazes de entender a especificidade do museu e priorizar suas demandas mais essenciais. Cometemos inúmeros erros e ignoramos premissas básicas do trabalho museológico. Não existe pesquisa ou exposição se o acervo não estiver documentado ou deixar de existir. Uma ação de difusão nunca pode ter prioridade de recursos se questões cruciais de infraestrutura, conservação, segurança e documentação não estiverem superadas. A difusão pode ser postergada em detrimento da salvaguarda das coleções, jamais o contrário.
Conhecer e documentar aquilo que temos é uma obrigação. A preservação física e a permanência de sentido devem ser reconhecidas como obrigações básicas e elementares. Devemos nos lembrar sempre de que temos um compromisso com as gerações futuras e não respondemos somente a demandas e pressões imediatas. A pesquisa ou a curadoria que fazemos (infelizmente conceitos muito apartados hoje) são apenas algumas das interpretações possíveis, não são as únicas ou as derradeiras. Nosso maior desafio é garantir acesso qualificado para que a sociedade possa construir conhecimento e narrativas a partir do que preservamos e não se dedicar a elaboração de um discurso único ou definitivo a respeito de nossas coleções.
O acervo não pertence a um pesquisador ou funcionário específico, mas sim à instituição que tem por obrigação garantir seu acesso à sociedade. A exposição não deve ser mais a única forma ou a estratégia prioritária de difusão de acervos. A desproporção, via de regra, entre a capacidade e alcance expositivo e o tamanho dos acervos aponta, obrigatoriamente, para a priorização de instrumentos digitais de acesso e pesquisa. No entanto, é fundamental também reconhecer o papel central e preponderante da conservação preventiva e do profissional de conservação nas instituições de memória. Costumamos brincar, não sem um gigantesco fundo de verdade, que se a palavra final não é do conservador, a instituição não pode ser séria.
O jeitinho, o improviso e o personalismo devem dar lugar ao trabalho embasado em conhecimentos e procedimentos técnicos consolidados e validados pelas comunidades profissionais especializadas. A nossa ética enquanto profissionais de memória/preservação deve ser mais forte do que os interesses, relações e rixas pessoais, do que a insatisfação com o trabalho ou com o salário, ou a ausência de condições que consideramos básicas. Devemos nos manifestar sempre, e relatar tudo que julgamos inadequado ou fora do lugar. Não devemos nos calar. Nossa postura precisa ser menos reativa e imensamente mais proativa. Temos o direito de conhecer as condições e obter informações a respeito do nosso patrimônio cultural. A ausência de recursos materiais não pode ser uma justificativa para a inação e a acomodação. Esperar não é mais saber.
Só vemos comentários de reitores e professores. Onde estão os conservadores, museólogos, arquivistas e bibliotecários do museu? É preciso reconhecer que o trabalho no museu é técnico e especializado. Sua gestão não é atividade secundária ou hobby de docente, pesquisador ou curador. Muito infelizmente, o curador no sentido clássico enquanto “cuidador” de acervos quase que inexiste hoje. Já a prioridade do docente é sua produção científica e a formação de seus alunos e orientandos. E se não for isso, algo está muito errado na universidade brasileira. O quão revelador e triste é a dependência da contribuição de pesquisadores e visitantes para tentar reconstituir qualquer representação do acervo que se foi. Onde estão os sistemas de documentação das coleções do museu? Será que o Museu Nacional já foi algo mais do que um mero repositório de fontes e espécimes para a pesquisa científica realizada na universidade? Quanto desse antes massivo e inesgotável acervo (nacional e não meramente universitário ou da UFRJ) mereceu atenção dos pesquisadores da universidade? O que foi feito do restante? Museu não é feudo e curador não deveria ser senhor de nenhuma coleção. Acervos públicos pertencem a sociedade e os funcionários das instituições que os preservam têm por obrigação não só garantir sua conservação, mas também seu acesso e transparência em relação a sua gestão e situação patrimonial.
As associações profissionais devem trabalhar pelos interesses de seus campos profissionais e de suas instituições e não pela suposta garantia medíocre de emprego vislumbrado pela carteirinha de profissional reconhecido por uma legislação torta e antiquada, mas continuamente ignorado e maltratado pelo mercado de trabalho e pelas próprias instituições as quais dedica sua vida. Já nos perguntamos quanto ganha (ou deveria ganhar) um museólogo, bibliotecário, arquivista ou conservador no Brasil? Precisamos de mais profissionais e menos de empregados. Trabalhar em um museu precisa ser mais do que fazer exposições para os nossos pares juntando obras em torno de textos herméticos e insípidos, que ao final dizem mais sobre o curador e a disfuncionalidade das instituições do que sobre as obras. Precisamos de diagnósticos, indicadores e metas próprios para avaliar o que está acontecendo em nossas instituições de memória. O valor de um museu é muito mais amplo do que a quantidade de público que ele supostamente recebe e maior ainda do que a cobertura de uma imprensa supostamente especializada, que jamais se deu ao trabalho de entender o objeto de sua nota antes de definir, avaliar, julgar ou corroborar. O evento, a notícia e a visibilidade são, quase sempre, vazios e fugazes.Restou algo dos milhões e milhões investidos nas exposições blockbusters com sobras de acervos de museus gringos? Mas é fundamental para a formação do olhar culto dos brasileiros, diriam uns. Mas e quanto ao nosso British Museum e Natural History Museum, que se foi da noite para o dia, sem ao menos sabermos o que guardava? Nem os inventários e catálogos das coleções que se foram conseguimos acessar? Será que existem? Queremos ser MoMA, Louvre e Metropolitan, mas sequer conseguimos dizer o que temos e para onde estamos indo. Reconhecemos facilmente as obras primas dos outros, mas as nossas merecem pouca atenção, se formos capazes de identificá-las. Nossos milionários, nossa magnânima elite ilustrada gosta de investir em museus estadunidenses, mas tem receio das nossas instituições. A síndrome do vira-latismo tropical continua a nos assombrar.
Precisamos rever e reposicionar o lugar de nossos museus e acervos. A resposta não é criar novos museus, seja do zero ou a partir de escombros e ruínas. Vamos cuidar do que sobrou, daquilo que já (ainda) existe e continuamos a desconhecer. Vamos dar nome aos bois. Devemos reconhecer o que é museu e qual é o seu negócio, ou core business, como insistem outros. Precisamos seguir os códigos de ética que nós mesmo inventamos. Museu é coisa séria. Se a intenção é brincar de qualquer outra coisa, que ao menos tenhamos a coragem de nomear a contento. Palavra também é coisa séria.
Assim quem sabe concentramos melhor o quase nada em algum lugar digno de investimento. A opção, como diriam alguns colegas, seria arrendar tudo para algum país sério de clima temperado ou para um canal televisivo qualquer, e singrar de vento em popa a transformação (já em andamento) do Rio-Brasil na nação cenográfica que tanto estimamos. Futebol, carnaval, copas, olimpíadas, caipirinhas, favelas, fio dental e belas paisagens. O turismo, a indústria cultural e os companheiros que podem se mudar para Miami ou Portugal agradecem.
10 de setembro de 2018. (Oito dias após a hecatombe da memória cultural e científica brasileira)
Gabriel Moore Forell Bevilacqua
Cidadão e profissional de museus e arquivos envergonhado
Bom texto, Gabriel, mas achei a avaliação genérica. Não analisa a degeneração cultural, que valoriza mais museus pirotécnicos citados do que a memória clássica (que, já li por aí, tem que ser destruída, pois vi setores da esquerda celebrando o incêndio), degeneração essa, que é, por sinal, claramente ideológica, ligada a esquerda relativista pós moderna. Nem vi uma clara crítica a gestão do museu, que gastou esse ano milhões com passagens, por exemplo, além de ser completamente responsável pelo orçamento da universidade, e na qual sequer houve uma demissão. Gestão essa inteiramente alinhada com partidos comprometidos ideológicamente e militantes, aliás. Em qualquer país civilizado o reitor teria renunciado durante o incêndio ainda. No Japão, teria cometido hara-kiri. Mas eu não espero realmente que um reitor associado ao PSOL tenha a menor ideia do que seja “responsabilidade”. Não adianta culpar abstratos genéricos se temos algo bem objetivo a nossa frente.