Durante o ano de 2018, o então Ministro da Cultura Luís Filipe Castro Mendes, comunicou que era vontade do Governo abrir um dossier importante: o tão esperado regime de autonomia dos museus, monumentos, palácios e sítios arqueológicos.
Autonomia, Gestão Central, Financiamento
O debate é sobre o futuro, mas convém recuar um pouco no tempo. Aquando da “intervenção externa” da Troika, o Governo de então sentiu-se duplamente legitimado para reduzir ao máximo o investimento público. As áreas mais afetadas são sempre as historicamente mais vulneráveis, como é o caso da Cultura. O modelo era simples e eficaz, do ponto de vista financeiro: estrangulava-se liberdade de gestão aos museus e centralizavam-se todos os serviços centrais do Estado na área do Património num organismo que se veio a provar ineficaz e burocrático: a Direção Geral de Património Cultural (DGPC). Impõe-se a pergunta: será isso que o país precisa para garantir a salvaguarda e a divulgação do seu património cultural e artístico? Há vida para além da contração orçamental? Tem de haver.
Uma coisa é certa: tanto o Governo como os vários responsáveis no terreno admitem que a DGPC não responde aos problemas. Uma simples autorização para resolver um problema de canalização demora semanas. Não há inundação que aguente. O problema é que o documento provisório do Governo não apresenta qualquer alteração de fundo na máquina administrativa central, limitando-se a criar um regime de delegação de competências entre a DGPC e as várias entidades que dela dependem.
Um dos flagelos que hoje este setor vive é claramente a falta de profissionais em cada um destes sítios. Todos conhecemos casos de diretores que fazem horas de bilheteira e técnicos de conservação que servem como vigilantes em horas de almoço dos seus colegas. O cenário é negro e este diploma não almeja alterar nada a esse aspeto. Fará ou não sentido que o diploma objetivasse um rácio de pessoal para cada um dos espaços? A resposta a essa pergunta deslinda um problema que se colocará mais à frente: afinal, de que tipo de autonomia estamos nós a falar? Autonomia total na contratação? Com que recursos? É elementar que o Governo responda ao que ainda não respondeu.
O último fator que deve merecer a nossa atenção é a ideia da criação das unidades compósitas. Parece que o Governo já desistiu da ideia, até porque se apresentou como absurda logo à partida. A ideia de descentralizar a gestão da DGPC para, no mesmo momento, fazer uma fusão entre instituições que têm um histórico de independência não faz sentido. Isto cria outro problema ainda pouco discutido: os sítios arqueológicos precisam urgentemente de uma figura jurídica que lhes dê corpo e alma e a solução das unidades compósitas atirá-los-ia, novamente, para a dependência de outra entidade e, subsequentemente, para o esquecimento.
Vendo de outro prisma, o Governo pretende alterar algumas matérias fundamentais para a transparência e para a democracia interna das instituições. A passagem de um sistema de concurso público internacional com um júri altamente qualificado para a escolha dos diretores é um avanço significativo. Outros dos aspetos a salientar prende-se com o facto da implementação de planos plurianuais de financiamento, que criam uma maior previsibilidade para as direções. Preciso de ser acompanhado com uma dotação digna, senão trata-se de um presente envenenado.
O processo legislativo
Até ao momento, o que existe é apenas uma intenção do Governo. Ainda que existam várias versões (pelo menos, duas) de um anteprojeto legislativo produzido pela tutela, formalmente nem o Conselho de Ministros nem a Assembleia da República discutiram nem votaram nenhum documento. Que passos pode o Governo e a Assembleia da República dar?
Em primeiro lugar, como disse, cabe ao Ministério da Cultura consensualizar um documento junto dos responsáveis do setor e aprovar, em Conselho de Ministros, uma de duas coisas: Decreto-Lei ou Proposta de Lei. Se o Governo optar por um Decreto-Lei, isso significa que o documento só poderá ser alterado na Assembleia da República se um ou mais grupos parlamentares derem entrada de uma apreciação parlamentar. Pessoalmente, parece-me que vários partidos políticos estão com vontade de o fazer, o que é normal em processos como estes. Se o Governo optar por uma Proposta de Lei, isso significa que o documento é, obrigatoriamente discutido na Assembleia da República e todos os grupos parlamentares terão um período regimental para apresentar propostas de alteração ou até mesmo apresentar um documento alternativo ao do Governo.
Em suma: as intenções do Governo são razoáveis mas curtas no seu âmbito de atuação. Pretende imprimir um novo regime de funcionamento gestionário dos museus sem fazer alterações na DGPC. Apresenta algumas soluções mais democráticas e transparentes na decisão das diretorias das entidades, mas não responde como garantirá que esta nova autonomia pode ser posta em prática num quadro de subfinanciamento crónico. Não existe Autonomia sem Financiamento. A par destas alterações, o Governo tem de se apresentar pronto para um compromisso político em nome do financiamento público da Cultura.
Mestre em Museologia
Deputado à Assembleia da República pelo Bloco de Esquerda
Acabou-se com o Instituto dos Museus e da Conservação, reduziu-se a Rede Portuguesa dos Museus aos serviços mínimos perdendo qualquer expressão junto dos museus, asfixiando a sua accao e retirando-lhe pessoas e meios técnicos e financeiros de apoio efectivo aos museus nos diferentes eixos que a lei define. Para além deste rude golpe politico e de gestão, concentraram-se ainda mais os serviços numa superestrutura opaca, pesada e obsoleta que obviamente não responde.
Aos museus foi retirada toda a capacidade de decisão, programação, gestão, subtraindo meios humanos, esvaziando funções, submetendo, desgastando e desvalorizando os profissionais até ao limite e financeiramente foram apagados da agenda anual todos os programas de apoio ( o Pro-museus é uma miragem ).
Neste quadro político e sem alterações profundas no modelo de gestão da DGPC , na tutela publica central, o futuro dos museus portugueses e dos seus profissionais está irremediavelmente condenado ao fracasso e alguns museus correm mesmo o risco de fechar.
Como tal andar a falar em “rankings” e “targets” de públicos e outras modernices pseudo, em tempos de total descrédito e desaceleração de investimento nos museus, “pendurados” de uma estrutura ultra pesada, caduca, que concentra tudo, que não dá resposta e que sofre de opacidade e burocracia crónica que é sempre a forma sobreviver destes elefantes brancos autofagicos que se criam no meio das tempestades.
É o património que está em risco e sobretudo e mais importante, as pessoas que estão em sofrimento.
Estamos a precisar de medidas urgentes que mudem este estado de coisas , nomeadamente medidas de descentralização efectiva da gestão , respeito pelos profissionais, respeito pelos seus direitos e carreiras, reforço urgente das equipas, financiamento dos museus e na política da cultura, na visão e estratégia para os museus que envolva as pessoas na solução e as considere de uma vez por todas, como o principal activo do património. Estamos longe de alcançar este desígnio mas é ele que designa o que somos e o que queremos vir a ser. Sem pessoas não há cultura!