Faço sempre isto com as bases de dados que consulto pela primeira vez: procuro uma coisa que conheço bem, que sei que lá está ou tenho a expectativa que esteja. Testo as funcionalidades de pesquisa e exploro a partir daí.

História das Exposições de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian. Vamos a isto.

Insiro os termos na caixa de pesquisa que aparece na página de entrada: as mãos vêem.

“Não encontramos resultados para a sua pesquisa.…” [assim mesmo, com quatro pontos]. Siga então para a pesquisa avançada. Não é muito linear, essa opção não me aparece na página onde estou e me dizem do insucesso da minha pesquisa. Mas eu tenho anos disto.

Separador “Explore” [se eu não tivesse anos disto, seria fácil perceber que é aqui que encontro a pesquisa avançada?]. Quero encontrar uma exposição, é isso que escolho. Cá está ela, a pesquisa avançada por atributos e logo a primeira caixa  tem preenchido por defeito que o campo a pesquisar será “título”. É isto mesmo:  as mãos vêem.

1 registos

As Mãos Vêem

1980 / Itinerância Portugal

Primeiro choque, antes mesmo de seguir a ligação: 1980?!

Não há dúvida na página seguinte:

3 mar 1980 – mar 1980

Fundação Calouste Gulbenkian / Museu Calouste Gulbenkian – Galeria de Exposições Temporárias

Lisboa, Portugal

Em Abril já estava no Porto.

Em Março de 1980 eu ainda não tinha feito 10 anos. Como é que eu me lembro tão bem desta exposição?!

Lembro-me muito bem desta exposição.

Lembro-me que era uma exposição para cegos. Dizíamos assim, claro, a minha mãe tinha alunos cegos no Passos Manuel, a antiga casa do reitor era onde funcionava o gabinete de apoio aos cegos. Lembro-me de ajudar a minha mãe a preparar as aulas de geometria para esses alunos. Alguém lhe dever ter dito que era uma boa ideia, talvez as pessoas que trabalhavam na casa do reitor, e ela reproduzia: umas placas de cortiça onde se espetavam alfinetes onde se queriam os vértices das figuras e depois esticavam-se fios para as desenhar. Assim os alunos cegos podiam ver com as mãos, tacteando os fios, e fazer os mesmos exercícios que os outros que viam com os olhos. Eu gostava de esticar os fios, escolhia cores diferentes por figura. Imagino que hoje se ensine geometria a crianças invisuais de outra forma e que os professores tenham formação específica mas, muito provavelmente, continuam a trabalhar em casa com as suas próprias crianças a ajudar na preparação de (outros) materiais didáticos.

Não sei se a minha mãe nos levou a ver esta exposição porque tinha essa experiência de ensino ou se nos levou porque nos levava a todas as exposições que havia em Lisboa. Não eram muitas por essa altura.

Fomos e eu lembro-me muito bem. Vendavam-nos à entrada, nós seguíamos pela mão dos monitores (monitoras?) e íamos a muitos sítios diferentes. Lembro-me de estar numa quinta, sentir grãos de feijão num saco, o cheiro do rosmaninho.

Lembro-me, sobretudo, que no fim nos tiravam a venda e nós íamos de olhos abertos aos mesmos sítios onde tínhamos estado. Lembro-me que eram uns caixotes muito feios, os cheiros eram essências nuns frascos pequeninos.

Confrontando a minha memória com a descrição que está nesta base de dados, não consigo de todo fazê-la bater certo com as sete secções que a compunham: para mim se havia alguma compartimentação era por tipologia de espaço. Segundo o arquivo havia uma “Cidade” mas não havia nenhuma “Quinta”. A memória do saco de feijão (ou grão?) seria na secção “Enterrar”? Já os cheiros… podem ter sido em qualquer uma. Também não me lembro de ser conduzida por uma corda, mas sim por pessoas, e muito menos do “tabuleiro-carrilhão musical de oito notas que se tocava com os pés, marcando a passagem sonora de cada pessoa”. As imagens que são disponibilizadas da exposição mostram-me que os caixotes não eram assim tão feios.

Se a Fundação Gulbenkian não tivesse decidido disponibilizar publicamente este arquivo ficava só com as minhas memórias, que não são nem certas nem erradas. Mas poder confrontá-las com este sistema de informação deu contexto à minha memória. A começar pela data de realização. Saber que tive esta experiência quando tinha apenas 9 anos é importante para mim. É importante também saber que não foi só a mim que esta exposição impressionou, porque aqui se fala do impacto social que provocou num país tão diferente do que é hoje. Mas, acima de tudo, é importante que aqueles que não têm nenhuma memória desta exposição possam vê-la sem a ter visto.

E isso está diretamente ligado com a minha memória mais forte e significativa. O momento em que vi com os olhos o que tinha visto com as mãos foi de espanto e revelação: podemos estar em sítios sem estar.

Quarenta anos depois, percebo que se calhar esta exposição é mais definidora da minha ideia de museu do que todos as outras que visitei, em cujas equipas trabalhei ou que concebi. Definitivamente muito mais do que tudo o li ou ouvi sobre museus.

Passo a vida a dizer isto: o que me interessa é a informação, a história que se conta, a memória que se constrói, não há um valor absoluto na materialidade das coisas. O que é isto senão a exposição que vi, em março de 1980, na Fundação Calouste Gulbenkian?

 Maria José de Almeida

Maria José de Almeida é Doutora em Arqueologia pela Universidade de Lisboa.

Até 2016 trabalhou nos municípios de Santarém e Cascais, desenvolvendo ações de arqueologia preventiva e gestão de coleções de bens arqueológicos. Foi responsável pela implementação do Sistema de Informação dos Museus de Cascais e coordenou a integração do mesmo na plataforma de Sistema de Informação Geográfica da autarquia. Fez parte dos corpos gerentes da Associação Profissional de Arqueólogos (APA) desde 2002, tendo sendo presidente da direção no triénio 2007-2009. É membro do Grupo de Trabalho Sistemas de Informação em Museus da Associação Portuguesa de Bibliotecários, Arquivistas e Documentalistas (BAD).

Atualmente integra a equipa da Direção de Serviços de Inovação e Administração Eletrónica da Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB).

Curriculum detalhado aqui.