O meu pai usou sempre o mesmo porta-chaves. Daqueles de bolso, em cabedal, que se fecham com duas molas e lá dentro têm um suporte metálico para vários ganchos, dispostos lado a lado. Sabem a que me estou a referir, sobretudo se forem da minha ou da geração anterior.
Lembro-me muito bem dos gestos do meu pai associados a esse porta-chaves. Ao aproximar-se da porta, tirava-o do bolso, abria, escolhia a chave pretendida e puxava o respetivo gancho na vertical para a destacar das outras. Enfiava a chave na fechadura, rodava e, já do outro lado da porta, repetia os mesmos passos por ordem inversa. Mas com variantes nos gestos: para voltar a colocar a chave no sítio, o meu pai dava um pequeno golpe de pulso e a chave saltava para a posição original, batendo nas outras e nos ganchos metálicos com um som muito característico. Só depois pressionava as molas, com um pequeno estalido, para fechar e guardar novamente no bolso. Esta é uma memória visual mas também auditiva. O som do porta-chaves do meu pai era muito diferente do som do grande molho de chaves da minha mãe (presas todas à mesma argola) a ser atirado para cima da arca do hall de entrada. Não precisava de ver, bastava ouvir o som das chaves para saber quem tinha chegado a casa.
Quando os meus pais morreram, no doloroso processo de “desmanchar a casa”, dei com o porta-chaves do meu pai e resolvi ficar com ele. Pus-lhe as minhas chaves e uso-o todos os dias. E todos os dias repito os gestos e os sons do meu pai ao usar aquele objeto.
Acontece que já passou algum tempo, a fadiga dos materiais não perdoa e o porta-chaves está a desfazer-se.
Quando dei conta dos primeiros sinais de degradação (além de me lembrar do conceito de fadiga dos materiais, que certamente aprendi com o meu pai) fiquei triste e comecei a pensar como podia travar o processo ou reparar os danos. Mas trata-se de um objeto de uso quotidiano e os fenómenos físicos são inevitáveis: o porta-chaves, mais tarde ou mais cedo, vai desfazer-se. Outra das coisas que aprendi com o meu pai foi a analisar problemas e encontrar soluções. Este problema tem uma solução simples: vou comprar um porta-chaves novo.
Um porta-chaves de bolso, em cabedal, que se fecha com duas molas e tem lá dentro tem um suporte metálico para vários ganchos, dispostos lado a lado. Um porta-chaves que vou continuar a usar com os mesmos gestos e os mesmos sons e, por isso, o objeto novo vai continuar a ser o porta-chaves do meu pai. Aliás, revendo o que escrevi no primeiro parágrafo, o meu pai não “usou sempre o mesmo porta-chaves”: aquele que eu tenho agora dificilmente será o mesmo objeto ao qual associo as minhas memórias de infância. O objeto que guardei foi o só o último que ele usou.
Vem o porta-chaves a propósito do necessário debate sobre a restituição de património cultural deslocado, que voltou a ser tema no final de 2018 depois da divulgação de um relatório encomendado pelo presidente francês. Por razões óbvias, este é um tema que não pode ser ignorado pelos museus portugueses e que, também pelas mesmas razões óbvias, se presta a servir de arma de arremesso entre grupos ideologicamente distintos. Naturalmente que neste debate não podemos fazer de conta que somos imunes à ideologia, e muito menos ao contexto sócio-cultural em que vivemos, mas acho que temos obrigação profissional de refletir para além da ideologia.
E, nesse sentido, a minha proposta é começar o debate com uma pergunta: “o que é que valorizamos nos objetos?” Ou, se preferirem, “porque é que é tão importante para mim ter este objeto?” Porque é isso que está em causa quando se discute a posse e, consequentemente, o lugar onde se guarda – e expõe e interpreta – o património de alguém ou de uma comunidade de alguéns.
Podia escolher muitos exemplos para fazer o exercício que me leva à resposta a esta pergunta. Podia escolher a arte africana trazida para Portugal durante o período colonial ou a arte portuguesa levada para o Brasil e para França durante o período das invasões napoleónicas. Se quisesse ficar no universo português. Mas não quero. Vou escolher um caso, literalmente, clássico: os frisos do Pártenon. Até porque, também recentemente, o diretor do Museu Britânico juntou à discussão um novo argumento no mínimo… criativo, vamos-lhe chamar assim.
Vi os frisos do Pártenon duas vezes: no Museu Britânico em Londres há muitos anos (demasiados!, tenho que voltar) e no verão passado no Museu da Acrópole em Atenas. Para ser rigorosa, vi duas partes distintas de um conjunto que já não existe. E também visitei o local onde o conjunto estava quando existia.
São três experiências muito distintas. A que mais dificuldade tenho em reconstituir é a do Museu Britânico mas, mesmo que a recordasse como se fosse ontem… não foi ontem. Quem viu os frisos do Pártenon em Londres também é uma pessoa que já não existe. Como me lembro pouco, resolvi explorar as ferramentas que hoje estão ao meu dispor para avivar a memória. As imagens correspondem ao que no fundo da memória tinha guardado: espaços amplos e despojados onde as esculturas são valorizadas na sua dimensão estética. Na altura em que visitei o Museu Britânico duvido que desse grande atenção ao contexto, mas se o fizesse agora e quisesse ter essa informação, a história toda está lá explicada. Contudo, quando lá voltar, parece-me que vou novamente ficar mais esmagada pelo impacto visual das peças e do espaço em que estão expostas do que pela história e contexto da coleção.
No Museu da Acrópole a dimensão visual das esculturas e do espaço em que estão expostas voltou a ser um fator determinante na experiência de visita. É um museu do meu tempo, da minha estética, do meu discurso sobre o espaço e o tempo (mais do que me recordo do Museu Britânico). É também, e sobretudo, um museu de sítio. Contaram-me a história da Acrópole, que tem muito mais que se lhe diga que a deslocação dos frisos, e eu gostei muito. Ter visitado o museu no mesmo dia que visitei a Acrópole não foi indiferente: foi mesmo determinante no impacto da visita. Cheguei cedo à Acrópole, à hora da luz bonita, passeei devagar entre as ruínas, senti o vento e o cheiro, ouvi os sons da cidade lá em baixo e dos outros turistas à minha volta. E de lá vi o edifício do museu, que se destaca de uma forma impressionante na malha urbana. Umas horas mais tarde, almocei na cafetaria do museu com vista para a Acrópole, que se destaca de uma forma impressionante na malha urbana.
A minha experiência no Museu da Acrópole teria sido muito diferente se lá estivessem os 47% de friso que estão no Museu Britânico? Provavelmente não. Teria sido muito diferente se o museu fosse noutro lugar? Garantidamente sim.
No Museu da Acrópole o que eu valorizei nos objetos expostos, das esculturas ao modelo da Acrópole em peças de Lego que estava(á?) junto da cafetaria, passando pelos objetos arqueológicos sob o chão de vidro da galeria de entrada, foi muito para além da materialidade dos mesmos. Sim, fiquei arrebatada pela qualidade visual das esculturas mas o que eu gostei mesmo foi de percorrer aquelas galerias de betão a ver o friso como nenhum grego antigo o viu, ao nível dos olhos. E isso até podia ter sido conseguido com uma réplica integral, se calhar com vantagem porque assim podia acrescentar à experiência visual a do tato, passando as mãos por cima daquilo tudo (e garanto que me apeteceu!). Mas a alternância dos originais com as réplicas também me contou uma história – a dos interesses britânicos no mediterrâneo oriental no séc. XIX – assim como a cariátide incompleta montada sobre um suporte de betão me contou outra – a dos violentos confrontos entre gregos e turcos sobre os quais se funda boa parte da identidade grega contemporânea.
Já a deslocalização do museu para outro local transformaria completamente a experiência. O vento, a luz, o cheiro, o som, a textura dos materiais de um sítio não são os mesmos de um outro. A quantidade de fatores que compõem essa materialidade é tão vasta que dificilmente se consegue, noutro local, repetir a combinação que os define. E, definitivamente, a história da Acrópole contada na base da colina da Acrópole fica mais bem contada ali do que noutro lugar. Porque é contada a quem acabou de sentir o vento, a luz, o cheiro, o som, a textura dos materiais… da colina da Acrópole.
O Museu da Acrópole encerra em si um paradoxo: é um projeto do governo grego para acabar de vez com o argumento que os frisos que estão em Londres não podiam regressar a Atenas por não haver condições dignas de exposição e interpretação; ao mesmo tempo, a execução do projeto mostra que os frisos “em falta” não fazem falta para expor e interpretar a história da Acrópole em excelentes condições. Ou pelo menos assim eu achei.
A deslocação de parte dos frisos do Pártenon e a sua integração em diferentes coleções de arte (além do Museu Britânico há outras partes do conjunto original em Paris, no Vaticano, em Copenhaga, Viena, Würzburg e Munique) é um episódio da história europeia que não desaparece com a devolução e merece ser contado. Está contado no Museu da Acrópole e no Museu Britânico, pelo menos, e a história não fica mais completa nem melhor contada se houver devolução à Grécia dos objetos: a acontecer é mais um episódio que também merece ser contado e, sobretudo, contextualizado. Como os objetos mas também para além deles.
Este exercício, e o porta-chaves do meu pai, demonstram-me que o que eu valorizo mesmo nos objetos são as sensações e a informação que me transmitem. E isso interceta a sua materialidade mas não se esgota nela. Ou, dito de outra forma, a informação e as sensações não dependem tanto do objeto como do observador e do contexto. Ou, ainda mais uma forma!, o objeto não tem um valor absoluto indissociável da dimensão material.
Voltando a uma das formulações da pergunta inicial – porque é que é tão importante para mim ter este objeto? – só posso mesmo responder que… não é. Ou só é importante se eu depender exclusivamente do objeto para ter certa informação ou sensação. Haverá alguns casos em que isso pode acontecer, mas arrisco afirmar que não é frequente. E certamente não é o caso dos objetos que são alvo das recentes polémicas de restituição que tanta emoção têm causado.
Aqui há uns tempos, a propósito da alteração da definição de museu pelo ICOM, escrevia o meu amigo Luís Raposo que “o museu é o domínio do material”. Pois, como lhe respondi na mesma publicação, para mim os museus são o domínio do conhecimento e das emoções. Fundadas em informação e sensações que, volto a repetir, não se esgotam na materialidade dos objetos que expõem. Mas também admito que não é difícil argumentar em sentido contrário. É essa a natureza dos paradoxos.
Metaphysics: Ship of Theseus
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