Durante
o ano de 2018, o então Ministro da Cultura Luís Filipe Castro Mendes, comunicou
que era vontade do Governo abrir um dossier importante: o tão esperado regime
de autonomia dos museus, monumentos, palácios e sítios arqueológicos.
Autonomia,
Gestão Central, Financiamento
O debate é sobre o futuro, mas convém recuar um pouco no tempo. Aquando da “intervenção externa” da Troika, o Governo de então sentiu-se duplamente legitimado para reduzir ao máximo o investimento público. As áreas mais afetadas são sempre as historicamente mais vulneráveis, como é o caso da Cultura. O modelo era simples e eficaz, do ponto de vista financeiro: estrangulava-se liberdade de gestão aos museus e centralizavam-se todos os serviços centrais do Estado na área do Património num organismo que se veio a provar ineficaz e burocrático: a Direção Geral de Património Cultural (DGPC). Impõe-se a pergunta: será isso que o país precisa para garantir a salvaguarda e a divulgação do seu património cultural e artístico? Há vida para além da contração orçamental? Tem de haver.
Uma
coisa é certa: tanto o Governo como os vários responsáveis no terreno admitem
que a DGPC não responde aos problemas. Uma simples autorização para resolver um
problema de canalização demora semanas. Não há inundação que aguente. O
problema é que o documento provisório do Governo não apresenta qualquer
alteração de fundo na máquina administrativa central, limitando-se a criar um
regime de delegação de competências entre a DGPC e as várias entidades que dela
dependem.
Um
dos flagelos que hoje este setor vive é claramente a falta de profissionais em
cada um destes sítios. Todos conhecemos casos de diretores que fazem horas de
bilheteira e técnicos de conservação que servem como vigilantes em horas de
almoço dos seus colegas. O cenário é negro e este diploma não almeja alterar
nada a esse aspeto. Fará ou não sentido que o diploma objetivasse um rácio de
pessoal para cada um dos espaços? A resposta a essa pergunta deslinda um
problema que se colocará mais à frente: afinal, de que tipo de autonomia estamos
nós a falar? Autonomia total na contratação? Com que recursos? É elementar que
o Governo responda ao que ainda não respondeu.
O
último fator que deve merecer a nossa atenção é a ideia da criação das unidades
compósitas. Parece que o Governo já desistiu da ideia, até porque se apresentou
como absurda logo à partida. A ideia de descentralizar a gestão da DGPC para,
no mesmo momento, fazer uma fusão entre instituições que têm um histórico de
independência não faz sentido. Isto cria outro problema ainda pouco discutido:
os sítios arqueológicos precisam urgentemente de uma figura jurídica que lhes
dê corpo e alma e a solução das unidades compósitas atirá-los-ia, novamente,
para a dependência de outra entidade e, subsequentemente, para o esquecimento.
Vendo
de outro prisma, o Governo pretende alterar algumas matérias fundamentais para
a transparência e para a democracia interna das instituições. A passagem de um
sistema de concurso público internacional com um júri altamente qualificado
para a escolha dos diretores é um avanço significativo. Outros dos aspetos a
salientar prende-se com o facto da implementação de planos plurianuais de
financiamento, que criam uma maior previsibilidade para as direções. Preciso de
ser acompanhado com uma dotação digna, senão trata-se de um presente
envenenado.
O
processo legislativo
Até ao momento, o que existe é apenas uma intenção do Governo. Ainda que existam várias versões (pelo menos, duas) de um anteprojeto legislativo produzido pela tutela, formalmente nem o Conselho de Ministros nem a Assembleia da República discutiram nem votaram nenhum documento. Que passos pode o Governo e a Assembleia da República dar?
Em
primeiro lugar, como disse, cabe ao Ministério da Cultura consensualizar um
documento junto dos responsáveis do setor e aprovar, em Conselho de Ministros, uma
de duas coisas: Decreto-Lei ou Proposta de Lei. Se o Governo optar por um
Decreto-Lei, isso significa que o documento só poderá ser alterado na Assembleia
da República se um ou mais grupos parlamentares derem entrada de uma apreciação
parlamentar. Pessoalmente, parece-me que vários partidos políticos estão com
vontade de o fazer, o que é normal em processos como estes. Se o Governo optar
por uma Proposta de Lei, isso significa que o documento é, obrigatoriamente
discutido na Assembleia da República e todos os grupos parlamentares terão um
período regimental para apresentar propostas de alteração ou até mesmo
apresentar um documento alternativo ao do Governo.
Em suma: as intenções do Governo são razoáveis mas curtas no seu âmbito de atuação. Pretende imprimir um novo regime de funcionamento gestionário dos museus sem fazer alterações na DGPC. Apresenta algumas soluções mais democráticas e transparentes na decisão das diretorias das entidades, mas não responde como garantirá que esta nova autonomia pode ser posta em prática num quadro de subfinanciamento crónico. Não existe Autonomia sem Financiamento. A par destas alterações, o Governo tem de se apresentar pronto para um compromisso político em nome do financiamento público da Cultura.
Luís Monteiro
Mestre em Museologia
Deputado à Assembleia da República pelo Bloco de Esquerda
A biblioteca de Alexandria era um dos mais importantes centros de conhecimento da antiguidade, guardava mais de meio milhão de livros e a sua destruição súbita pelo fogo representou um enorme retrocesso civilizacional.
Ou talvez não.
Talvez não houvesse só uma biblioteca em Alexandria, mas várias. Talvez meio milhão de obras seja um exagero, considerando o que sabemos e estimamos sobre o número de autores na antiguidade. Talvez o desaparecimento da biblioteca se deva a um processo de decadência com múltiplas causas e não a um único acontecimento catastrófico. Talvez o conteúdo da biblioteca importasse muito pouco para a evolução subsequente do conhecimento e das artes na Europa e no Médio Oriente. Não sabemos. Aquilo que não sabemos sobre a biblioteca de Alexandria é tão grande como os sonhos que tem alimentado.
E se, mesmo sem biblioteca, lhe conhecêssemos o catálogo?
Sabíamos com certeza a extensão da(s) biblioteca(s), sabíamos com mais rigor o número (e identidade) dos autores nela(s) representados. E, sobretudo, mesmo sem termos acesso ao conteúdo dos textos, sabíamos os títulos e os assuntos tratados e talvez isso tivesse sido relevante para a evolução subsequente do conhecimento e das artes na Europa e no Médio Oriente.
Esta ideia tem estado a martelar-me a cabeça desde o incêndio do Museu Nacional no Rio de Janeiro. Ouvi a notícia na rádio em sobressalto enquanto tomava o pequeno almoço e, sem muito mais informação, saí de casa a pensar: “é um museu universitário, as bases de dados hão de estar num servidor qualquer no campus, não há de se ter perdido tudo!”. Ao longo do dia fui sabendo que não era assim. Fui lendo apelosvários à partilha de fotos e outros registos do acervo e do espaço expositivo, sempre a pensar: “não pode ser, não podemos estar dependentes disto para saber o que se perdeu, há de haver informação estruturada guardada em algum sítio!”. Um mês depois, na sessão especial dedicada à resposta do ICOM-CIDOC à situação, que teve lugar na sua Conferência Anual, a dimensão do problema atingiu-me em cheio como uma marreta.
Todos os que estávamos naquela sala somos oficiais do mesmo ofício: trabalhamos na gestão de informação e documentação em instituições que pretendem preservar a memória. Essas instituições são todas muito diferentes e estão em países tão díspares como a Austrália ou o Irão, passando por Portugal, pelo Chile, pela Alemanha, pela Nigéria ou os Estados Unidos. O que aconteceu no Museu Nacional, sabemo-lo dolorosamente, aconteceu como consequência de uma série de acontecimentos e (más) decisões que decorrem da atual situação económica, social e política do Brasil. Mas, nos restantes países representados naquela sala em Creta, algum de nós está mesmo livre de uma catástrofe que possa destruir os acervos das nossas instituições de memória?
A resposta é, obviamente, não. E não estou só a referir-me a desastres naturais, estou a referir-me também a este tempo em que vivemos, de tão grande mudança, que não nos dá garantias nenhumas que o país ou a instituição mais sólida e estruturada que conhecemos hoje não possa vir a ter a sua situação completamente alterada ainda antes da próxima geração.
Contudo, se os acervos podem não estar a salvo, a informação sobre os acervos tem que estar a salvo. Eu sei que a informação precisa de suporte e que os problemas que se colocam à preservação dos acervos podem também colocar-se à preservação dos suportes de informação. Mas é mais fácil garantir a cópia e a redundância da metainformação do que a salvaguarda dos objetos de informação. É difícil estruturar e dar sentido aos dados, mas há boa gente a trabalhar nisso há anos – muita dela no ICOM-CIDOC – e contamos com normas e terminologias que nos facilitam a vida. Podemos transferir a informação de um suporte para outro e o mesmo acontece com o formato em que a guardamos. A transmissão de informação é muito mais maleável do que a salvaguarda da materialidade das coisas que a suportam. No limite, como nos ensinou Ray Bradbury, não precisamos mais do que a nossa mente para preservar a memória do que realmente importa.
Perder objetos e perder a informação sobre os objetos é morrer duas vezes. Quando alguém morre afirmamos recorrentemente que essa pessoa não deixa de existir e isso não é só para confortar quem lhe sobrevive: já não há ninguém que precise de ser confortado pela morte do fundador de Alexandria e não temos dúvidas da existência de Alexandre III da Macedónia. Porque não percebemos que acontece o mesmo quando se perde a materialidade das coisas? Porque se todos os meus mortos continuam a existir na memória que eu tenho deles, também as coisas podem continuar a existir na minha memória depois de serem destruídas pelo fogo ou pela incúria dos homens. E podem continuar a existir na memória dos outros, se eu a registar e transmitir.
É essa a nossa obrigação como oficiais deste ofício de documentar e gerir informação. É para isso que devemos trabalhar todos os dias, para que possamos dizer com toda a segurança: se um item aparece nos nossos registos… é porque existe.
https://youtu.be/nsLGyEsute4&w=550
Maria José de Almeida
Maria José de Almeida é Doutora em Arqueologia pela Universidade de Lisboa.
Até 2016 trabalhou nos municípios de Santarém e Cascais, desenvolvendo ações de arqueologia preventiva e gestão de coleções de bens arqueológicos. Foi responsável pela implementação do Sistema de Informação dos Museus de Cascais e coordenou a integração do mesmo na plataforma de Sistema de Informação Geográfica da autarquia. Fez parte dos corpos gerentes da Associação Profissional de Arqueólogos (APA) desde 2002, tendo sendo presidente da direção no triénio 2007-2009. É membro do Grupo de Trabalho Sistemas de Informação em Museus da Associação Portuguesa de Bibliotecários, Arquivistas e Documentalistas (BAD).
Atualmente integra a equipa da Direção de Serviços de Inovação e Administração Eletrónica da Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB).
Não queria ser mais um cidadão ou profissional de cultura a externar indignação sobre a tragédia do Museu Nacional, uma vez que muitos colegas já o fizeram adequadamente. Mas resolvi escrever como forma de compartilhar parte da culpa e da estranheza que continuo a carregar. Inicialmente, tocar fogo no museu mais importante do país no ano de seu bicentenário (sim, nós o fizemos) pode parecer incompreensível, até brutalmente surreal. No entanto, o choque inicial acaba por dar lugar a aceitação de algo anunciado, óbvio, esperado.
Por Halley Pacheco de Oliveira [CC BY-SA 3.0 (https://creativecommons.org/licenses/by-sa/3.0)], via Wikimedia Commons
Na cidade ou país – o Rio continua sendo a mais maravilhosa das nossas metáforas pátrias – em que se gastam fortunas em novos museus e projetos culturais mirabolantes, enquanto instituições com acervos preciosos permanecem soterradas no descaso e esquecimento, a relação causa e efeito começa a encadear-se em uma lógica perversa e incontornável.Os próprios conceitos colocados na ordem do dia nos parecem confusos e obscuros. Museu é quase qualquer coisa, entidade, espaço ou conceito (perdão pela indiscrição tautológica) que tenha uma programação cultural ou algo que com isso se pareça. Para criá-lo, basta batizá-lo. Acervo é um elemento ultrapassado, custoso, quase desnecessário na nova, revolucionária e sustentável equação museológica cunhada em terras tupiniquins. Para quê conhecer e interpretar o passado se podemos pular o presente e visitar um amanhã cheio de traquitanas e luzes coloridas?
Mais interessante e groundbreaking ainda é inventar os não-museus do amanhã só com um pouquinho de dinheiro público, passar o resultado para os cuidados do Estado corrupto/falido e finalizar colocando a galera global para tomar conta do novo equipamento. Apesar do choramingo eterno pela falta de recursos, dinheiro não foi problema, foi solução. Quem disse que não vemos progresso cultural por essas bandas? Qual a Disneylândia, com uma boa propaganda na telinha e uma ampla fila na entrada, tudo se paga e se justifica. Então, se não conseguimos distinguir o fogo do Museu Nacional do fogo do Museu da Língua Portuguesa ou acervo de cenografia, qual é o problema afinal? Por que tamanha comoção? Não bastaria juntar um troco, mesmo que com certo atraso, para reconstruir a coleção e o museu? Infelizmente, não.
Como bradou nosso distinto Ulpiano Bezerra de Meneses, museu sem acervo é igual mula sem cabeça. Apesar de bonitinho, não passa de folklore. Sim, acervos podem e devem ser digitais se objetivamos documentar a experiência humana recente. Basta reconhecer que cópia digital não é acervo, backup não é política de preservação e atividade museológica não se encerra em umsite ou em uma galeria bem montada com os gadgets do momento. Apesar das inúmeras
iniciativas que continuam a pipocar (mesmo com a ausência de recursos) a mera digitalização aliada à pirotecnia tecnológica jamais substituirá a materialidade dos acervos. Já vociferei antes contra a digitalização selvagem e seus problemas para as instituições de memória, mas reconheço que se ao menos isso tivesse sido feito no Museu Nacional hoje nos restaria mais do que apenas cinzas.
Até podemos chamar um arquiteto famoso e refazer o edifício com ares internacionais pós- modernos a beira mar (a generosa oferta do BNDES daria para rabiscar o desenho), mas recheá- lo a contento seria deveras complicado. Tudo isso para dizer que no país do vale tudo, da fachada e do engodo, museu é curinga, vai de mausoléu a parque de diversões com caça níqueis/público, e conservação é aquela de jardim e condomínio, que vale terceirizar porque é mais em conta.
Dito isto, a tragédia anunciada passaria a fazer sentido, seria até um desdobramento lógico. Só que não…, como diria a geração XYZ, pois as consequências são muito grandes e devastadoras para serem reduzidas a uma cadeia de mera causalidade. Com o incêndio de domingo queimamos não só o resquício material de inúmeros passados, mas a possibilidade de construção de futuras memórias coletivas e individuais. Mutilamos também uma ciência já fragilizada, cuja pesquisa se destacava pela diversidade e preciosidade das coleções do museu. Culturas e espécies já extintas foram dizimadas mais uma vez, talvez definitivamente, agora pelo desaparecimento de seus únicos ou poucos vestígios materiais. Se juntarmos a esse quadro de devastação a situação atual das duas instituições máximas de memória remanescentes (Arquivo Nacional e Biblioteca Nacional) e da vasta maioria dos nossos outros museus, nossa perspectiva enquanto sociedade organizada e Estado de direito torna-se ainda mais débil e duvidosa do que aquela apontada pela eleição que se aproxima.
A violência inicial do ocorrido nos levou a apontar dedos em busca de culpados para dar vazão à nossa justa indignação, mas o abandono das nossas instituições não é de hoje ou de anos, mas sim de décadas ou talvez séculos. O descaso e a incompetência apontam facilmente para o governo, para a universidade e órgãos públicos envolvidos na confusa e burocrática gestão do patrimônio cultural brasileiro. Se o objetivo da reflexão acerca desse imenso trauma é sua superação, essa identificação fácil e imediata, apesar de óbvia e necessária, não nos ajuda a distinguir com clareza a complexidade do problema. Nós, enquanto sociedade, devemos assumir a responsabilidade pela destruição do Museu Nacional em todas as suas instâncias. Enquanto representantes políticos corruptos e gestores incapazes ou incoerentes. Enquanto pesquisadores e profissionais egoístas, incompetentes e passivos. Enquanto cidadãos e eleitores ignorantes e suscetíveis.
Retornando ao objetivo inicial de compartilhar minha culpa e estranhamento, gostaria de desenvolver mais profundamente a questão da responsabilidade enquanto gestor, pesquisador e profissional de museu. Falamos pouco. Gritamos pouco. E fizemos menos ainda. Nosso simbólico abraço foi post mortem. Fomos incapazes de entender a especificidade do museu e priorizar suas demandas mais essenciais. Cometemos inúmeros erros e ignoramos premissas básicas do trabalho museológico. Não existe pesquisa ou exposição se o acervo não estiver documentado ou deixar de existir. Uma ação de difusão nunca pode ter prioridade de recursos se questões cruciais de infraestrutura, conservação, segurança e documentação não estiverem superadas. A difusão pode ser postergada em detrimento da salvaguarda das coleções, jamais o contrário.
Conhecer e documentar aquilo que temos é uma obrigação. A preservação física e a permanência de sentido devem ser reconhecidas como obrigações básicas e elementares. Devemos nos lembrar sempre de que temos um compromisso com as gerações futuras e não respondemos somente a demandas e pressões imediatas. A pesquisa ou a curadoria que fazemos (infelizmente conceitos muito apartados hoje) são apenas algumas das interpretações possíveis, não são as únicas ou as derradeiras. Nosso maior desafio é garantir acesso qualificado para que a sociedade possa construir conhecimento e narrativas a partir do que preservamos e não se dedicar a elaboração de um discurso único ou definitivo a respeito de nossas coleções.
O acervo não pertence a um pesquisador ou funcionário específico, mas sim à instituição que tem por obrigação garantir seu acesso à sociedade. A exposição não deve ser mais a única forma ou a estratégia prioritária de difusão de acervos. A desproporção, via de regra, entre a capacidade e alcance expositivo e o tamanho dos acervos aponta, obrigatoriamente, para a priorização de instrumentos digitais de acesso e pesquisa. No entanto, é fundamental também reconhecer o papel central e preponderante da conservação preventiva e do profissional de conservação nas instituições de memória. Costumamos brincar, não sem um gigantesco fundo de verdade, que se a palavra final não é do conservador, a instituição não pode ser séria.
O jeitinho, o improviso e o personalismo devem dar lugar ao trabalho embasado em conhecimentos e procedimentos técnicos consolidados e validados pelas comunidades profissionais especializadas. A nossa ética enquanto profissionais de memória/preservação deve ser mais forte do que os interesses, relações e rixas pessoais, do que a insatisfação com o trabalho ou com o salário, ou a ausência de condições que consideramos básicas. Devemos nos manifestar sempre, e relatar tudo que julgamos inadequado ou fora do lugar. Não devemos nos calar. Nossa postura precisa ser menos reativa e imensamente mais proativa. Temos o direito de conhecer as condições e obter informações a respeito do nosso patrimônio cultural. A ausência de recursos materiais não pode ser uma justificativa para a inação e a acomodação. Esperar não é mais saber.
Só vemos comentários de reitores e professores. Onde estão os conservadores, museólogos, arquivistas e bibliotecários do museu? É preciso reconhecer que o trabalho no museu é técnico e especializado. Sua gestão não é atividade secundária ou hobby de docente, pesquisador ou curador. Muito infelizmente, o curador no sentido clássico enquanto “cuidador” de acervos quase que inexiste hoje. Já a prioridade do docente é sua produção científica e a formação de seus alunos e orientandos. E se não for isso, algo está muito errado na universidade brasileira. O quão revelador e triste é a dependência da contribuição de pesquisadores e visitantes para tentar reconstituir qualquer representação do acervo que se foi. Onde estão os sistemas de documentação das coleções do museu? Será que o Museu Nacional já foi algo mais do que um mero repositório de fontes e espécimes para a pesquisa científica realizada na universidade? Quanto desse antes massivo e inesgotável acervo (nacional e não meramente universitário ou da UFRJ) mereceu atenção dos pesquisadores da universidade? O que foi feito do restante? Museu não é feudo e curador não deveria ser senhor de nenhuma coleção. Acervos públicos pertencem a sociedade e os funcionários das instituições que os preservam têm por obrigação não só garantir sua conservação, mas também seu acesso e transparência em relação a sua gestão e situação patrimonial.
Por Felipe Milanez (Sent by the photographer — OTRS-sent) [CC BY-SA 4.0 (https://creativecommons.org/licenses/by-sa/4.0)], via Wikimedia Commons
As associações profissionais devem trabalhar pelos interesses de seus campos profissionais e de suas instituições e não pela suposta garantia medíocre de emprego vislumbrado pela carteirinha de profissional reconhecido por uma legislação torta e antiquada, mas continuamente ignorado e maltratado pelo mercado de trabalho e pelas próprias instituições as quais dedica sua vida. Já nos perguntamos quanto ganha (ou deveria ganhar) um museólogo, bibliotecário, arquivista ou conservador no Brasil? Precisamos de mais profissionais e menos de empregados. Trabalhar em um museu precisa ser mais do que fazer exposições para os nossos pares juntando obras em torno de textos herméticos e insípidos, que ao final dizem mais sobre o curador e a disfuncionalidade das instituições do que sobre as obras. Precisamos de diagnósticos, indicadores e metas próprios para avaliar o que está acontecendo em nossas instituições de memória. O valor de um museu é muito mais amplo do que a quantidade de público que ele supostamente recebe e maior ainda do que a cobertura de uma imprensa supostamente especializada, que jamais se deu ao trabalho de entender o objeto de sua nota antes de definir, avaliar, julgar ou corroborar. O evento, a notícia e a visibilidade são, quase sempre, vazios e fugazes.
Restou algo dos milhões e milhões investidos nas exposições blockbusters com sobras de acervos de museus gringos? Mas é fundamental para a formação do olhar culto dos brasileiros, diriam uns. Mas e quanto ao nosso British Museum e Natural History Museum, que se foi da noite para o dia, sem ao menos sabermos o que guardava? Nem os inventários e catálogos das coleções que se foram conseguimos acessar? Será que existem? Queremos ser MoMA, Louvre e Metropolitan, mas sequer conseguimos dizer o que temos e para onde estamos indo. Reconhecemos facilmente as obras primas dos outros, mas as nossas merecem pouca atenção, se formos capazes de identificá-las. Nossos milionários, nossa magnânima elite ilustrada gosta de investir em museus estadunidenses, mas tem receio das nossas instituições. A síndrome do vira-latismo tropical continua a nos assombrar.
Precisamos rever e reposicionar o lugar de nossos museus e acervos. A resposta não é criar novos museus, seja do zero ou a partir de escombros e ruínas. Vamos cuidar do que sobrou, daquilo que já (ainda) existe e continuamos a desconhecer. Vamos dar nome aos bois. Devemos reconhecer o que é museu e qual é o seu negócio, ou core business, como insistem outros. Precisamos seguir os códigos de ética que nós mesmo inventamos. Museu é coisa séria. Se a intenção é brincar de qualquer outra coisa, que ao menos tenhamos a coragem de nomear a contento. Palavra também é coisa séria.
Assim quem sabe concentramos melhor o quase nada em algum lugar digno de investimento. A opção, como diriam alguns colegas, seria arrendar tudo para algum país sério de clima temperado ou para um canal televisivo qualquer, e singrar de vento em popa a transformação (já em andamento) do Rio-Brasil na nação cenográfica que tanto estimamos. Futebol, carnaval, copas, olimpíadas, caipirinhas, favelas, fio dental e belas paisagens. O turismo, a indústria cultural e os companheiros que podem se mudar para Miami ou Portugal agradecem.
10 de setembro de 2018. (Oito dias após a hecatombe da memória cultural e científica brasileira)
Gabriel Moore Forell Bevilacqua
Cidadão e profissional de museus e arquivos envergonhado
Há algum tempo, trabalhando numa organização muito pouco organizada no que à gestão de informação dizia respeito, percebi que existia uma duplicação brutal de dados que resultava da dificuldade que os utilizadores tinham em localizar ficheiros nos discos partilhados na rede. A organização de pastas era de tal forma pessoal e intransmissível que ninguém encontrava nada quando ia à procura. A solução era recorrente: cópia do ficheiro para o sítio “que eu sei” e circulação posterior por correio eletrónico. Não preciso de explicar a confusão gerada na gestão de informação, no desempenho dos sistemas e nos custos associados ao armazenamento de dados (não é por não falarmos neles que eles não existem).
Para facilitar a vida no meu serviço, fiz uma tabela muito simples em que se identificavam os ficheiros pelo nome, descrição sumária do conteúdo e – o mais importante – que continha uma ligação para a localização dos ditos na rede. Não era a revolução necessária para reverter décadas de má prática de gestão documental, mas dava para o gasto e estancava a duplicação de informação e o entupimento do correio eletrónico. Ou melhor, deu, durante uns tempos. Porque há um dia em que começo a receber telefonemas de gente aos gritos “os links não funcionam!”, ocasionalmente acompanhados de outra linguagem técnica que me abstenho de reproduzir.
O que é que tinha acontecido? Um utilizador tinha acrescentado (e, para ajudar à festa, aleatoriamente ou com uma lógica que só ele percebia) um # no início do nome de alguns ficheiros. Foi a minha vez de largar alguma sonora linguagem técnica e, depois do alívio causado, perguntar: “Porquê?” Resposta: “Ah, é que assim quando abro o explorador estes aparecem em cima”.
Durante muito tempo tomei esta história como exemplo de iliteracia digital mas, uns anos passados a pensar sobre gestão de informação, percebo que é exemplo de muito mais que isso. O mundo divide-se entre os que navegam e os que pesquisam.
Dito de uma forma mais concreta, este utilizador esperava recuperar informação através da forma como ela estava armazenada e, consequentemente, lhe era apresentada no ecrã. Enfim, podemos questionar o critério do “em cima = mais importante para mim neste momento por razões que só eu sei”, mas a ideia é essa. Há outra metade do mundo, contudo, que espera recuperar a informação através da forma como ela está descrita e, consequentemente, lhe é apresentada como resposta a uma pergunta.
A tentação de associar os que navegam à tecnologia analógica e os que pesquisam à tecnologia digital é grande, mas a coisa não é assim tão linear. Efetivamente, a forma mais antiga e tradicional de recuperar informação tem a ver com a “arrumação”: se quero um romance português vou encontrá-lo na prateleira da literatura de língua portuguesa, se quero um ofício expedido vou encontrá-lo na pasta das saídas, se quero uma ponta de seta vou encontrá-la no contentor dos materiais líticos. Não repetindo algo que já escrevi aqui, não havia grandes alternativas até há bem pouco tempo e a tecnologia digital é o grande aliado dos motores de busca. Mas o melhor sistema para os que navegam, hoje em dia, é seguramente digital.
A diferença entre navegar ou pesquisar vai para além da tecnologia. É uma questão de conceitos e de expectativas. Se eu prefiro navegar, o sistema de organização da informação é mais importante que a caracterização do objeto de informação. Se eu prefiro pesquisar, a caracterização do objeto de informação é mais importante que o sistema de organização da informação.
O que é que é melhor? Bom, eu sou dos que pesquisam… A história que comecei por contar parece-me mostrar que os sistemas de arrumação (em caixotes ou em cadeias binárias, vai dar igual) são demasiado voláteis para confiarmos neles. E também me fazem confusão as práticas que valorizam mais a forma como se organizam os objetos de informação do que… os próprios objetos de informação. Além de que esse tipo de práticas tendem a resultar em formas de recuperação de informação que são muito eficazes para quem conhece o sistema mas completamente crípticas para quem chega lá vindo de outro sítio.
Contudo, confiar exclusivamente na descrição para que os resultados das pesquisas sejam consequentes também não é um mar de rosas. Se não houver rigor e normalização na terminologia, nos atributos e nos procedimentos usados na descrição, mais vale não descrever nada e investir na arrumação dos objetos no “sítio certo”. Ou então confiar na serendipidade…
A boa notícia é que navegar e pesquisar não são conceitos mutuamente exclusivos. Qualquer página na internet nos prova. No entanto, é fundamental perceber quais são as expectativas dos utilizadores quando se concebe um sistema de informação: não vale a pena investir um tempo imenso no sistema de organização se os utilizadores vão querer fazer perguntas transversais e que cruzam atributos de objetos arrumados em caixotes diferentes. Ou, em alternativa, o tempo gasto na descrição pode ser contraproducente se os utilizadores apenas vão estar preocupados em localizar rapidamente as caixas onde se guarda a informação.
Porque, como tudo na vida, o que interessa é que o sistema seja eficaz para quem o usa. Para a maioria, vá. Que também ainda não se inventou melhor forma de vivermos em conjunto.
Maria José de Almeida é Doutora em Arqueologia pela Universidade de Lisboa.
Até 2016 trabalhou nos municípios de Santarém e Cascais, desenvolvendo ações de arqueologia preventiva e gestão de coleções de bens arqueológicos. Foi responsável pela implementação do Sistema de Informação dos Museus de Cascais e coordenou a integração do mesmo na plataforma de Sistema de Informação Geográfica da autarquia. Fez parte dos corpos gerentes da Associação Profissional de Arqueólogos (APA) desde 2002, tendo sendo presidente da direção no triénio 2007-2009. É membro do Grupo de Trabalho Sistemas de Informação em Museus da Associação Portuguesa de Bibliotecários, Arquivistas e Documentalistas (BAD).
Atualmente integra a equipa da Direção de Serviços de Inovação e Administração Eletrónica da Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB).
Já escrevi neste cantinho sobre municipalização de museus. Aliás, escrevi noutro sítio, repeti aqui dez anos depois. Entretanto, já passam doze sobre o texto original. A questão não é nova, portanto.
As palavras que usamos são importantes porque com elas vêm conceitos e, neste caso, juízos de valor: a gestão de um museu por uma autarquia é coisa que mete medo, os museus nacionais estão numa posição hierarquicamente superior aos regionais e municipais. É isto, não é?
Eu atrevo-me a dizer que não devia ser.
Não vou discutir vícios e virtudes da gestão que os municípios portugueses fazem dos museus, em particular, e do património cultural, em geral. Para isso serviu o referido texto que aqui escrevi e outros na defunta revista Praxis Archeologica[1]. Vou antes chamar a atenção para esta coisa de considerarmos sempre que de um lado estão “os bons” (a administração central) e do outro estão “os maus” (a administração regional e local). Esta distinção nunca contribuiu para o fortalecimento da administração pública portuguesa. A gestão pela desconfiança, legislar e restruturar assumindo que “os outros” são uns malandros à espera de rédea solta para libertar toda a sua maldade, é das coisas mais perniciosas que temos na função pública. Também existe na horizontal, entre diferentes organismos da administração central com competências ou ações complementares e entre municípios que partilham recursos ou têm territórios confinantes.
O principal problema dos museus portugueses não é a gestão municipal: é a má gestão. E insistir num discurso que deixa transparecer que os temos que “salvar” pela integração na administração central é contraproducente e autofágico.
Os diferentes níveis de administração não são concorrentes nem se definem hierarquicamente. Os executivos municipais não são uma espécie de réplica pequenina do governo central. Ou não deviam ser. Se calhar é mais por aí que devíamos ir na discussão: faz sentido descentralizar para apenas replicar funções do Estado à escala de 308 unidades municipais? Ou faz mais sentido descentralizar para distribuir competências diferentes que podem ser melhor geridas a nível local? E, já agora, isto de dividir o território em bocadinhos tão pequenos é mesmo útil?
A municipalização dos museus é uma questão que afeta o quotidiano de muitos profissionais nesta área e por isso é natural que muitos de nós estejam preocupados. No entanto, é apenas uma parte de um tema mais amplo que, enquanto cidadãos, devíamos exigir que se discutisse de uma forma consequente: a reforma da administração local e regional do nosso território, adequada à dinâmica socioeconómica e à demografia.
[1] Sim, o link não funciona, é propositado; também podíamos discutir vícios e virtudes do conhecimento produzido no âmbito de associações mas… não temos tempo
Maria José de Almeida
Maria José de Almeida é licenciada História, variante Arqueologia, pela Universidade de Lisboa, estando a terminar o curso de doutoramento na mesma universidade.
Até 2016 trabalhou nos municípios de Santarém e Cascais, desenvolvendo ações de arqueologia preventiva e gestão de coleções de bens arqueológicos. Foi responsável pela implementação do Sistema de Informação dos Museus de Cascais e coordenou a integração do mesmo na plataforma de Sistema de Informação Geográfica da autarquia. Fez parte dos corpos gerentes da Associação Profissional de Arqueólogos (APA) desde 2002, tendo sendo presidente da direção no triénio 2007-2009. É membro do Grupo de Trabalho Sistemas de Informação em Museus da Associação Portuguesa de Bibliotecários, Arquivistas e Documentalistas (BAD).
Atualmente integra a equipa da Direção de Serviços de Inovação e Administração Eletrónica da Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB).
Este texto foi escrito em Março de 2005. Destinava-se à divulgação na imprensa local, coisa que não aconteceu por razões várias, foi reformulado numa carta aberta ao presidente da câmara de Elvas que não teve nem resposta nem consequência. Era eu, à data, co-signatária de um projecto de investigação sobre a ocupação rural romana do concelho de Elvas.
Dez anos depois, a câmara de Elvas tem abertos ao público (segundo informação disponibilizada no site do município) quatro museus: Museu Militar de Elvas, Museu de fotografia João Carpinteiro, Museu Militar Forte de Santa Luzia e o Museu de Arte Contemporânea. Com algum esforço de pesquisa consegue-se saber que está prevista a criação de um museu de Arqueologia e Etnografia no edifício da antiga manutenção militar, com contratos já celebrados em 2014 para os projetos de arquitectura e especialidades. Espera-se assim que algumas das coleções do antigo Museu António Tomás Pires voltem brevemente aos olhos do público.
Apesar desta nota de esperança, no momento em que se municipalizam museus até agora afectos à administração central, lembrei-me deste texto e achei que era útil divulgá-lo. Para memória, espera-se, passada.
Como se extingue (discretamente) um Museu
O “Museu Archeologico de Elvas” foi fundado em 1880. Faz parte de um conjunto de museus de âmbito regional e local criados naquela que já foi chamada a “Idade de Ouro da Arqueologia Portuguesa”. Resultam dos programas de investigação pessoal de figuras destacadas da sociedade de então que elegem a arqueologia e o “estudo das antigualhas” como terreno de afirmação de uma certa ideia de progresso, alicerçada na construção de uma identidade local.
A longa história destes museus conduzi-os a situações muito diferentes em termos de enquadramento institucional e são várias as instituições que hoje deles são herdeiras. O “Museu Archeologico de Elvas” transformou-se em Museu Municipal porque o seu fundador, António Tomaz Pires, além de professor, era também Escrivão e Secretário da Câmara. Tivesse a iniciativa da criação do museu pertencido a Victorino d’Almada, destacado “archeologo” elvense seu contemporâneo e sargento-mor do 2º Regimento de Artilharia da cidade, talvez hoje fosse o Ministério da Defesa o responsável pela gestão deste equipamento.
Acontece que é a Câmara Municipal de Elvas a herdeira deste museu. E acontece também que, discretamente, é a Câmara Municipal que o está a extinguir.
O museu encontra-se instalado desde a sua fundação no antigo colégio jesuíta de Santiago, partilhando esse espaço com a Biblioteca Municipal. A convivência de museus e bibliotecas é tão antiga quanto a existência destas instituições em Portugal e o caso de Elvas é apenas um entre as muitas Bibliotecas-Museus criadas na mesma época. Com o tempo tem havido uma progressiva separação entre bibliotecas e museus e, mais uma vez, o caso de Elvas não é excepcional. Neste âmbito decidiu, em boa hora, a autarquia elvense promover a reabilitação da biblioteca e iniciar um processo de candidatura à integração na Rede de Leitura Pública Nacional.
Este processo implica naturalmente profundas obras no edifício e, para cumprir o programa definido pelo Instituto Português da Biblioteca e do Livro (IPLB), o museu, pura e simplesmente, não cabe.
Este facto em si não constitui nenhum problema, tanto mais que o acervo do Museu Municipal António Tomaz Pires há muito que reclamava novas e melhores condições de exposição e armazenamento. Aproveitar a reabilitação da biblioteca para a reabertura do museu noutro espaço mais adequado seria até uma boa oportunidade.
O que constitui um problema grave é que, passados dois anos da intenção expressa da autarquia na remodelação da biblioteca (que implicaria sempre, por razões físicas, a saída do museu do espaço do Colégio de Santiago) e 8 meses do encerramento do museu ao público, não haja qualquer definição sobre o destino a dar ao acervo museológico de que a Câmara Municipal é herdeira.
É certo que também não houve qualquer formalização da extinção do museu. Aliás, discretamente, essa questão tem sido evitada e qualquer inquérito de rua efectuado na cidade revelaria que a maioria dos elvenses está convencida que o edifício está encerrado para obras mas que reabrirá como biblioteca e museu, como sempre foi. Contudo, basta uma leitura rápida da memória descritiva do projecto de reabilitação do edifício, divulgada em versão resumida na imprensa local, para perceber que não é assim.
Em declarações à mesma imprensa local, o presidente da Câmara de Elvas afirmou que o Museu António Tomaz Pires “era um conjunto de espólios que iam desde a arte sacra até à arte africana. Isto não é uma unidade museológica dos nossos dias. Hoje as pessoas exigem mais qualidade, ou seja, museus temáticos e interactivos. Por isso, daqui por dois ou três anos Elvas não tem um Museu Municipal, mas sim cerca de cinco temáticos.” (Linhas de Elvas 21/08/2004).
Com tão boa notícia, impõe-se a pergunta: para quando, a criação do museu temático de arqueologia de Elvas?
(e, já agora, onde será instalado? e que recursos vai ter para a sua gestão e dinamização?)
É que, no acervo que vai “da arte sacra à arte africana” do extinto museu, há um significativo conjunto de espólio arqueológico que é capaz de atrair uns quantos visitantes.
Acho que ainda existe uma coisa chamada “Circuito Arqueológico das Antas de Elvas”. Não sei se estão disponíveis as estatísticas de participantes mas, sejam muitos ou poucos, talvez alguns gostassem de complementar a observação dos monumentos funerários com a visita a um museu temático onde encontrassem os objectos que acompanharam há cinco mil anos os mortos que aí foram enterrados. O Museo Nacional de Arte Romano em Mérida tem um número anual de visitantes portugueses que justificaram a edição em português do seu roteiro. Se estes visitantes rumam a Espanha para ver um museu de arqueologia dedicado à época romana, são bem capazes de ter vontade parar em Elvas para ver uma colecção de epigrafia ou uma exposição relativa às necrópoles da mesma época que foram encontradas na região.
É capaz. Mas neste momento não sabemos, porque essas colecções estão “devidamente arrumadas e embaladas dentro de caixas”, para continuar a usar as palavras do presidente da câmara, na já citada reportagem do Linhas de Elvas.
Falo das colecções de arqueologia porque são as que melhor conheço. Talvez especialistas em arte sacra ou em arte africana possam dizer coisas semelhantes sobre outras áreas temáticas do extinto museu. Mas invoco as artes do meu ofício para chamar a atenção da enorme responsabilidade que tem qualquer instituição que recebe como herança um museu como era o Museu Municipal António Tomaz Pires.
Aparentemente, não estando integrada esta unidade museológica na Rede Portuguesa de Museus e sendo a sua tutela exclusivamente municipal, a autarquia pode decidir como bem entender sobre o espólio do museu. Da mesma maneira que decide sobre quaisquer bens móveis que pertencem ao seu património, sejam mesas, candeeiros, computadores ou ferramentas. Estando a legislação portuguesa relativa ao património cultural cheia de buracos causados pela falta de regulamentação, parece que pode.
Mas, será que deve?…
Maria José de Almeida
Maria José de Almeida é licenciada História, variante Arqueologia, pela Universidade de Lisboa, tendo obtido o grau de mestre em Arqueologia Romana na Universidade de Coimbra. Actualmente integra o programa de Doutoramento em Arqueologia e Pré-história da Universidade de Lisboa, na especialidade de Arqueologia. É autora de vários artigos publicados sobre a temática da ocupação romana no território de Augusta Emerita. Entre 1996 e 2002 trabalhou no município de Santarém, desenvolvendo acções de arqueologia urbana em núcleos históricos. Foi responsável pela primeira fase da Carta Arqueológica de Santarém e pela organização da Reserva Municipal de Bens Arqueológicos. Foi comissária da exposição temporária De Scallabis a Santarém (MNA, 2002). Desde 2003 exerce funções na Câmara Municipal de Cascais, onde implementou o Sistema de Informação dos Museus de Cascais e coordenou a elaboração do respectivo Manual de Procedimentos. Ainda em Cascais, dirigiu o Gabinete de Arqueologia e, actualmente, desempenha funções na Divisão de Ordenamento do Território, tendo coordenado a integração do referido sistema de informação com a plataforma SIG da autarquia. Integrou os corpos gerentes da Associação Profissional de Arqueólogos (APA) desde 2002, tendo sendo presidente da direcção no triénio 2007-2009.