Vivemos tempos de mudança, de adaptação, de alterações a diversos níveis na forma como vivemos. A tecnologia tem sido, de forma agravada nos últimos anos, o factor de aceleração dessa mudança. Transformação, transição ou integração digital (expressão bem cunhada pela Helena Barranha no debate) são algumas das expressões que vamos ouvindo como identificação deste fenómeno que é a inclusão da tecnologia para melhorar, alterar, refazer as soluções, métodos, modelos, etc. utilizados tradicionalmente no trabalho em museus. Foi este fenómeno que o ICOM Portugal pretendeu debater no passado dia 20.

Não foi a expressão que debatemos a convite do ICOM Portugal, mas sim as recomendações do eixo temático “Transformação Digital” do relatório final do Grupo de Projeto Museus no Futuro que foi criado pelo MC para reflectir sobre o futuro dos museus portugueses, ou melhor, sobre o futuro dos museus e palácios dependentes do estado central (leia-se DGPC e DRC). A quem não o fez ainda, aconselho a leitura atenta e crítica, porque certamente irão encontrar muito em que pensar, mesmo que não trabalhem numa das instituições visadas no relatório.

Para a conferência o ICOM Portugal convidou-me a mim, para a grata tarefa de moderação, à Ana Carvalho1 e à Helena Barranha2 como representante da equipa que acompanhou a Clara Camacho na realização do estudo e relatório e como especialista e investigadora na área, respectivamente. A escolha da Ana e da Helena não podia ter sido mais acertada, confesso. É bem conhecido o trabalho de ambas na área dos museus (e da sua relação com o universo digital) e a reflexão que têm desenvolvido sobre o tema em análise.

Cartaz debate
Cartaz do debate sobre Transformação Digital

Ambas começaram por apresentar a reflexão que lhes foi pedida para esta conferência, num ambiente que se espera sempre mais informal e menos cansativo para quem assiste. A Ana e a Helena cumpriram e deram-nos uma visão sobre a forma, método e sobre as preocupações que estiveram presentes na equipa que produziu o relatório, por um lado, e por outro uma visão crítica, ainda assim positiva, do resultado que todos conhecemos.

Da intervenção de ambas gostaria de destacar, por um lado, a forma como a Ana apresentou as questões que estiveram por trás da pesquisa e recolha de informação pela equipa da Clara Camacho, assim como a delimitação do estudo e a preocupação em obter dados fidedignos, a observação dos pares, a visão de outras realidades que não a nossa. São elementos fundamentais para o estudo e para compreendermos as recomendações feitas. Além disso, a Ana resume as diferentes recomendações em 4 áreas que, na minha opinião também, são fundamentais: capacitação, infraestrutura, acesso (digitalização e não só) e parcerias. Nestas áreas são incluídas as diferentes recomendações do relatório para a transição digital que, apenas para recordar, são:

  1. Modernizar e atualizar os equipamentos informáticos internos;
  2. Criar um portal de Museus, Palácios e Monumentos, atualizar e otimizar os respetivos sites;
  3. Criar uma linha de apoio “Museus do Futuro” a projetos de requalificação dos Museus, Palácios e Monumentos;
  4. Criar um programa de reforço e de alargamento sistemático da digitalização dos acervos dos Museus, Palácios e Monumentos;
  5. Assegurar e incrementar o acesso digital às coleções e acervos;
  6. Desenvolver um programa de utilização das tecnologias como meio complementar de interpretação;
  7. Criar mecanismos de apoio, monitorização e avaliação para os Museus, Palácios e Monumentos;
  8. Reforçar o estabelecimento de parcerias na área da comunicação digital;
  9. Promover projetos-piloto de transferência de conhecimento e de investigação;
  10. Assegurar o recrutamento de profissionais com competências digitais especializadas e criar planos de formação regulares.

A partir dali a Helena confronta-nos com a importância da terminologia utilizada, tal como já eu havia feito colocando no twitter a questão entre transformação ou transição (sem grande resposta diga-se de passagem), mas elevando a fasquia através da reflexão mais cuidada e aprofundada do termo integração, ou seja integração digital, em vez de transição ou transformação, procurando dessa forma uma visão mais inclusiva, mas também mais “humanizada” da forma e velocidade com que somos “engolidos” pela tecnologia no dia-a-dia dos museus, ou mesmo, da nossa vida.

Esta é uma questão interessante que importa trazer à liça sem receios, de forma simples e concreta, como a Helena fez. A reflexão sobre questões que nos parecem óbvias e aceites sem grande preocupação ou cuidado é sempre útil, porque nos permite ver por outro prisma determinado problema ou mesmo equacionar as prioridades definidas para a resolução das questões identificadas neste relatório ou noutros semelhantes. Assim, esta integração digital, mais inclusiva e crítica, parece-me apropriada para o momento que vivemos, ainda mais no contexto actual, de “digitalização” de toda a nossa relação profissional ou lúdica com os nossos museus.

A partir destas duas intervenções iniciais, com muito alimento para a discussão, abrimos a porta à discussão com os que nos acompanhavam no zoom e seguiam no Facebook e conseguimos debater assuntos como os recursos financeiros necessários (e existentes) no sector para a transformação digital, a preparação e abertura das tutelas para o caminho que há a percorrer, a alteração necessária em termos de políticas de acessibilidade (e eu diria inclusão), a formação e capacitação dos recursos humanos e a contratação de quadros com formação e competências na área, a atenção para os novos perfis profissionais e novas profissões que se criarão por conta da integração com o universo digital, o planeamento relativo à obsolescência das infraestruturas e dos equipamentos que é necessário acautelar, a atenção necessária para a inclusão destas e doutras despesas que agora surgem e, embora já mencionado pela Ana e pela Helena, a atenção também necessária para um planeamento estratégico, não desligado da estratégia geral da instituição, que abranja as novas questões e meios ao dispor. Mais do que este resumo, convido-os a acompanhar o debate através da gravação que o ICOM Portugal partilha connosco através do seu canal de Youtube.

Conferência Digital – Grupo de Projeto Museus no Futuro – Transformação Digital

Sem falsa modéstia, julgo que conseguimos abordar nesta breve conversa alguns pontos interessantes das recomendações feitas pelo GTMF. Julgo que se percebe que estaríamos muito mais tempo a conversar, eu, a Ana e a Helena, mas também muitos dos que nos acompanharam, sobre as questões trazidas por este documento. Não tivesse ele outro contributo, o que não é, de todo, o caso, teria este importante contributo de colocar o sector atento, a discutir, a debater e a pensar num conjunto importante de desafios que agora têm outro enquadramento e circunstâncias distintas.

Como nota final, diria que o relatório é, em relação ao eixo da transformação digital, bem completo e aborda um conjunto de problemas e questões que o estado precisa de resolver, no entanto, haveria ainda algumas outras questões que poderiam ser levantadas e abordadas como por exemplo, a gestão de direitos (relacionada também com a acessibilidade), a normalização ou a criação de uma plataforma de colaboração mais vasta entre museus, bibliotecas e arquivos do estado central para a dinamização do património cultural guardado nestas instituições.

Teremos certamente oportunidade de aprofundar o resultado do excelente trabalho da Clara Camacho e da equipa que nos deixa este importante contributo para o desenvolvimento do sector. Não o deixemos cair nas gavetas profundas da Ajuda.


1 Ana Carvalho – Investigadora de pós-doutoramento no Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades (CIDEHUS) da Universidade de Évora e membro do Grupo de Projeto Museus no Futuro (2019-2020). Doutoramento em História e Filosofia da Ciência, especialização Museologia e mestrado em Museologia (Universidade de Évora). Colaborou como investigadora principal no projeto internacional Mu.SA – Museum Sector Alliance (2016-2020) sobre os desafios da transformação digital para os museus. É uma das fundadoras da revista MIDAS – Museus e Estudos Interdisciplinares. A sua investigação tem-se centrado em temas do património, da história da museologia e da museologia contemporânea.

2 Helena Barranha – Doutoramento em Arquitetura (Faculdade de Arquitetura, Universidade do Porto, 2008) e Mestrado em Gestão do Património Cultural (Universidade do Algarve, 2001). É Professora Auxiliar no Instituto Superior Técnico, Universidade de Lisboa e Investigadora no Instituto de História da Arte, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade NOVA de Lisboa, onde integra o Grupo de Museum Studies e coordena o cluster de Arte, Museus e Culturas Digitais. Foi Diretora do Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado, em Lisboa, de 2009 a 2012, e Coordenadora do projecto unplace: um museu sem lugar, entre 2014 e 2015. As suas atividades de investigação centram-se atualmente no património cultural, na arquitetura de museus de arte contemporânea e nas culturas digitais, temas sobre os quais tem realizado várias conferências e publicações, tanto em Portugal como noutros países. É membro da Associação Acesso Cultura, do ICOM-Portugal e da Europeana Network. Association.