A municipalização dos museus regionais

A municipalização dos museus regionais

Museu D. Diogo de Sousa
snitrom, CC BY-SA 3.0 http://creativecommons.org/licenses/by-sa/3.0/, via Wikimedia Commons

Começo por dizer o que acho que qualquer pessoa de bom senso e com conhecimento da realidade dos museus portugueses pensa da municipalização do Museu (antes Regional) de Arqueologia D. Diogo de Sousa: é uma decisão incompreensível e estúpida! Tentarei explicar, em seguida, porquê.

Não é necessário escrever aqui um resumo da história da criação do museu ou mencionar a sua importância para a arqueologia portuguesa e para outros museus que o procuram como referência no estudo, restauro e conservação de coleções arqueológicas. Tudo foi escrito, de forma muito clara, no texto da petição que subscrevi intitulada “Em defesa do Museu de Arqueologia D. Diogo de Sousa” e pelas vozes de colegas de museus e arqueólogos que têm dado o seu contributo sobre este assunto nos mais diversos canais.

No entanto, é necessário, aliás, essencial que se ouça a opinião de decisores políticos diretos neste processo – que não foram claramente ouvidos (aqui um outro caso) – e perceber que quando queremos resolver um problema, não o podemos passar sem mais para a responsabilidade de outrem, sem pensar nas consequências da nossa decisão.

Além de ouvir as instituições políticas interessadas, algo que me admira muito não ter sido feito (ler ironicamente), estranho muito que a decisão de municipalizar museus como o D. Diogo de Sousa (MDDS) não tenha sido apresentada à sua direção, à equipa do museu, desde logo, mas também às associações profissionais do sector e à academia, tendo em conta o perfil do museu e o seu reconhecido trabalho conjunto com a Universidade do Minho (já com décadas de boas experiências). Eu sei que não é necessário que o façam, mas parece-me que este tipo de decisões já deveriam ser mais participadas em Portugal. Se queremos municipalizar para chegar perto das pessoas, comecemos a chegar perto das pessoas chamando-as para participar numa decisão tão sensível como a de alterar a tutela do museu.

Um outro aspecto que me parece ter sido completamente negligenciado foi a avaliação de situações semelhantes. Já temos experiência de municipalização de outros museus que tiveram em tempos um caráter regional, um caso bastante conhecido é o do Museu de Aveiro. Se temos estes casos, não seria avisado procurar ter uma avaliação dessa mudança de tutela relativamente a alguns indicadores a definir (equipa, público, gestão das coleções, etc.), antes de pensar em municipalizar mais um museu com estas características? Há essa avaliação e não é conhecida? Posso ser eu que ando distraído, mas parece-me que não há. Não havendo, corremos o risco de tomar uma decisão desinformada.

Eu tive a oportunidade de estagiar no MDDS e de ter aprendido muito sobre museus, arqueologia, documentação e gestão de coleções com o Mário Brito, o Manuel Santos e com a Isabel Silva. Sei bem a importância que o Museu tem para Braga, para o Norte de Portugal e para o país no seu todo. Sei a importância que tem a nível da Arqueologia portuguesa e do conhecimento da nossa história enquanto território e país. Sei também que um museu municipal, por muito que o Município faça, tem responsabilidades diretas com a sua comunidade em primeiro lugar e não se lhe pode pedir/exigir o que se pode a um museu nacional ou regional. Por isso mesmo, acho irresponsável esta incompreensível decisão tomada nos corredores da Ajuda.

Espero sinceramente que possa ser revertida!

Vai ficar… tudo na mesma!

Vai ficar… tudo na mesma!

No início da pandemia, não sei bem se recordam, uma frase bonita cravou-se em desenhos de arco-íris feitos por crianças e que todos, inclusive lá por casa, colocamos na janela. Vai ficar tudo bem! era o que se dizia (e bem) numa altura em que fomos confrontados com uma situação de emergência dura e que obrigou a um confinamento duro e penoso, com consequências que ainda estamos por avaliar! Os museus, bem como muitas instituições na área da cultura, ficaram vazios e fechados, viram-se obrigados a mudar e procurar meios de estar com os seus públicos e de inovar, quase sem meios, para cumprir o seu propósito, no entanto, mesmo face a uma situação como a que vivemos nestes últimos anos, o que é que o sector utiliza ainda para avaliar os museus? Sim, adivinharam, o número de visitantes e o famigerado estudo da The Art Newspaper (que dá para jeito para fazer uma t-shirt catita com a frase “My museum have more visitors than yours!”) que tem ressonância por cá neste artigo do Expresso. Vai ficar… tudo na mesma! É o que é!

E porque acho que vai ficar… tudo na mesma!? É simples! Bater numa tecla que já era muito questionável antes da pandemia, e achar que podemos continuar, em pleno século XXI, a aferir a qualidade dos museus pelo número de visitantes, é parvo (desculpem mas não encontro termo mais simpático do que este). Eu sei que é uma forma simples, talvez a mais abrangente de o fazer. Não exige mais de nós, da comunidade de museus e dos seus profissionais, do que recolher os dados que nos pedem sobre a quantidade de visitantes que recebemos e para os jornais, sempre ávidos por mostrar estes números, é uma boa forma, como de resto são os “rankings” de forma geral, de ter uma notícia que obtém uma porrada de clicks e partilhas, sem questionar, por exemplo, porque é que não se encontram nestas listas museus que discutem temas pertinentes e actuais, como o racismo, as migrações, a descolonização, a equidade, a acessibilidade, ou, se preferirem, o papel dos que estão neste top 100 na discussão desses e de outros temas (a guerra seria um bom tema para se discutir, não só a da Ucrânia, mas todas), já que têm uma audiência tão vasta.

Vai ficar… tudo na mesma! É o que acho. Mantemos esta forma de avaliação, consequentemente de financiamento, e deixamos na penúria, porque não eram visitados em massa, um grande número de museus que cumprem um papel fundamental para a sua comunidade, com programação de proximidade, que funcionam como fóruns de partilha e discussão para muitas comunidades, que procuram aproximar gerações, que dão a conhecer o património local, que potenciam e suscitam a criatividade e a curiosidade, entre muitas outras actividades meritórias, porque continuamos, sem questionar seriamente o estado das coisas, a achar que o número de visitantes é que é.

E vai ficar… tudo na mesma… porque me parece que com a transformação digital que se prevê para os museus, passemos do número de visitantes (físico) para o número de clicks, interacções e partilhas, sem questionar também, o propósito e as formas como colocamos a informação das coleções, do património cultural online e de que forma podemos (e devemos) potenciar o esforço que os museus despendem nos processos de digitalização.

Podemos refletir, se quisermos, como dar a volta e usar este número a nosso favor, procurar perceber como estes estudos são feitos e o que privilegiam (as exposições temporárias, como nota bem o Luís Raposo no comentário ao Expresso) ou perceber o que motiva os acréscimos de visitantes (de que o José Soares Neves dá um bom exemplo com a pirâmide do Louvre também ao expresso) e intervir nesse sentido, entrando como o fizemos várias vezes, no percurso das grandes exposições internacionais ou construindo museus icónicos. Mas não seria melhor, mais eficiente para a maioria dos museus (mesmo estes do actual top 100), procurar novos modelos de avaliação, novos modelos de “rankings”, uma refundação da forma como nos vemos, como nos questionamos, pensar criticamente como queremos verdadeiramente ser avaliados e financiados (ou dar conta do financiamento que temos) para um novo século?

Ou vai ficar… tudo na mesma?

1% para a Cultura! Os senhores da promessa adiada

1% para a Cultura! Os senhores da promessa adiada

Há uma promessa que é sagrada nas diversas campanhas eleitorais desde que comecei a trabalhar em museus: 1% para a Cultura. Ora, a bem dizer, eu já comecei a trabalhar em museus, na área da cultura, no século passado, corria o belo ano de 1996. Vai daí, se a matemática não me falha, pelo menos há 26 anos que temos alguém a prometer 1% para a Cultura!

Despesas do Estado em % do PIB: por serviços culturais, recreativos e religiosos. Fonte: Pordata

A despesa em Cultura em percentagem do PIB é continuadamente baixa, mesmo contando com o investimento em Cultura feito noutras esferas, como as Câmaras Municipais, aquilo que o Estado, ou seja todos nós, investimos em Cultura, está longe de ser o desejável num país onde os partidos todos apresentam frases pomposas sobre a nossa cultura como:

“Porque a cultura deve ser inclusiva, abrangente e envolvente, promoveremos políticas públicas orien- tadas para a acessibilidade e participação alarga- da de públicos e a sua ligação às instituições, às obras e aos criadores.”

Programa eleitoral do PS

“A cultura foi um dos setores mais afetados pela pandemia, com as medidas sanitárias a impedirem ou condicionarem fortemente ati- vidades ao longo do tempo.”

Programa eleitoral do BE

“A Cultura é um pilar da democracia. Exige uma política de forte responsabilidade e capacidade de acção pública. Requer a existência de um Ministério da Cultura digno desse nome, invertendo e rectificando a linha de esvaziamento e desresponsabilização da Administração Central.”

Programa eleitoral do PCP

“Entendemos a cultura na sua dimensão integradora, capaz de superar a divisão entre produtores e consumidores e de transbordar para além dos acanhados limites sociais das elites, como são elementos essenciais ao Homem para a compreensão do Outro (da riqueza da diversidade) e do Mundo”

Programa eleitoral do PSD

“Respeitar o nosso património. Reabilitar e conservar os edifícios de interesse nacional.”

Programa eleitoral do CDS

“A iniciativa liberal defende que a cultura faz parte de uma sociedade saudável, e que a preservação do património comum, a exploração de identidades comunitárias, e a criação artísticas têm de fazer parte da vida de pessoas livres.”

Programa eleitoral da Iniciativa liberal

“Para o PAN, Arte, Cultura e Educação são conceitos que não se devem separar, uma vez que ligam o mundo ideal ao real, mudando deste modo a nossa percepção sobre nós próprios e o que nos rodeia.”

Programa eleitoral do PAN

Sei bem que há outros sectores que têm maior prioridade na distribuição da nossa riqueza. A educação, a saúde, a área social, por exemplo, precisam cada vez mais da nossa atenção e de um forte investimento, quando percebemos, por causa desta pandemia, quão frágil pode ser o nosso sistema de saúde se necessitar de direcionar uma quantidade significativa de recursos para um só problema, quando percebemos os escassos recursos que temos nas escolas para garantir um acesso continuado e eficiente aos mais desprotegidos e a quantidade de pessoas afetadas, de uma ou outra forma, pelo resultado dos confinamentos necessários para evitar males maiores.

No entanto, a Cultura podia, devia, em minha opinião, ser um dos eixos estruturais de uma política para o futuro, de longo prazo, juntamente com a educação, a ciência e o meio ambiente. Para o ser, a visão dos partidos sobre ela precisa de ser mais abrangente. Temos que a deixar de enquadrar esta área como um sector individualizado e olhar para ela, sem pudores, como um eixo de desenvolvimento económico, social e científico que permita melhorar as condições de vida das pessoas através do seu próprio desenvolvimento e, consequentemente, do desenvolvimento do país.

Investir nestas áreas é garantir o futuro das gerações que nos seguem e o futuro do País. Alicerçar o futuro na educação, na ciência, no meio ambiente juntamente com a cultura representa uma mudança necessária e urgente, mas desconfio que ninguém a queira fazer. Não conseguimos cumprir ou fazer cumprir uma promessa antiga e mantemos este 1% para a Cultura como uma miragem que, pelo menos a mim, me parece inatingível nos próximos anos.

Enquanto não o fizermos os museus (e não só) definham.

Não há qualquer autonomia real na sua gestão, precisando sempre do apoio dos seus grupos de amigos e de autorizações estapafúrdias da Ajuda (que nome apropriado para a alojar o MC) para a compra do essencial. Não temos como definir planos estratégicos para o desenvolvimento do trabalho nos museus com as suas coleções e com os públicos. Não há trabalho em rede, porque aquilo que foi para a minha geração um farol de esperança, a Rede Portuguesa de Museus, hoje em dia é uma inexistência, desconsiderada até no programa do PS (e em grande parte dos outros partidos), que merecia uma atenção de todos nós para uma refundação mais participativa e ativa. Enquanto mantivermos o estado atual da situação, mantemos os museus a operar com equipas envelhecidas, sem rejuvenescimento, sem a passagem de testemunho essencial para o conhecimento sobre as coleções e a instituição, sem novas competências essenciais para enfrentar os desafios tecnológicos que agora se apresentam. Enquanto assim estivermos manteremos não só os museus, mas as bibliotecas, os arquivos, os teatros, as companhias de dança, as indústrias culturais, todo um sector refém de migalhas e incapacitado de procurar, pelos próprios meios, o financiamento necessário para o seu desenvolvimento. A revisão de uma lei de mecenato capaz e adaptada à nossa realidade é também outra das promessas continuadamente adiadas.

Nestas eleições, pela primeira vez em muito tempo, estou desiludido e sem vontade de votar em nenhum dos senhores do 1% para a Cultura. Dei-lhes, demos-lhes, todas as oportunidades de cumprir a promessa e não o fizeram. Irei votar, como sempre, mas pela primeira vez desde 1990, votarei sem qualquer convicção a não ser a de cumprir um direito que me foi entregue pelos que me antecederam e que não devo negligenciar.

Documentação em museus: desafios técnicos e éticos no século 21 – Seminário Acesso Cultura

Documentação em museus: desafios técnicos e éticos no século 21 – Seminário Acesso Cultura

Já há algum tempo que ando a pensar sobre os desafios que temos pela frente (os já visíveis e os que podemos prever) no âmbito da documentação em museus. A exploração deste tema é, a meu ver, importante ou mesmo essencial para que nos preparemos para o futuro, dotando os museus e os seus profissionais das ferramentas necessárias para agir quando confrontados com um desses desafios, mesmo que isso signifique estar quieto, sem acção – que por vezes é o mais avisado.

Esta exploração começou, de certa forma com o projecto Mu.SA e com a reflexão que fizemos para o projecto e para o desenvolvimento do percurso formativo aí criado, no entanto, há desafios técnicos e éticos que não se resumem só às competências a adquirir. Há políticas, procedimentos, avaliações, etc., sobre as quais precisamos de focar a nossa atenção e discutir abertamente como podemos, enquanto comunidade, enfrentar os novos desafios, presentes e futuros, que nos serão (ou estão a ser já, em muitos casos) colocados. No seminário que apresentarei com a Acesso Cultura é exatamente isso que pretendo discutir e trazer à liça! Descrevi-o assim:

A documentação em museus é uma das tarefas mais relevantes e necessárias face à transformação da sociedade e aos desafios que esta enfrenta com a transformação digital. Neste seminário abordamos os desafios que se colocam aos profissionais de informação e documentação nos museus face às questões técnicas, como a normalização, a evolução tecnológica, a massificação da procura e a diversidade de meios existentes e, da mesma forma, face às questões éticas como a acessibilidade, a inclusão, a equidade, a polifonia, o legado colonial e as minorias.

Cartaz do seminário AC

Espero estar à altura deste desafio e convido todos a juntarem-se a mim online (Zoom) no próximo dia 4 de Abril, das 18h às 21h. Todas as informações sobre o seminário estão disponíveis na página da Acesso Cultura.

A falha intergeracional nos museus

A falha intergeracional nos museus

Há uns tempos, nos anos da crise financeira, comecei a escrever um texto aqui para o Mouseion que rezava o seguinte:

Esta semana voltei a dar aulas no mestrado de museologia da Universidade do Porto e fiquei surpreso com a quantidade de alunos (segundo me disseram são 29 ao todo) matriculados. Pode ser engano meu, mas nos últimos anos tinha notado um decréscimo acentuado no número de alunos no mestrado que, sem ter grandes dados para analisar, atribuía às dificuldades financeiras sentidas pelas famílias e pelos profissionais de museus e ao peso que tinham na decisão de continuar os estudos nesta área, relativamente a outras prioridades da vida. Compreenderão certamente o porquê do meu espanto com uma sala cheia, numa altura em que, convenhamos, a saúde financeira geral não teve significativas melhorias.

Durante a sessão fiquei contente, confesso. Em primeiro lugar, e de forma egoísta, porque é bem melhor ter uma aula com uma sala cheia, mesmo que mais caótica e barulhenta (que não foi o caso), em que há interesse nos assuntos discutidos e onde a direcção da aula não é só professor-aluno! Em segundo, porque foi um interesse real em diversos aspectos da documentação.

Uns dias mais tarde, já depois de falar com colegas e família sobre esta minha admiração, vieram-me à cabeça as conversas tidas no último evento do ICOM Portugal com diversos amigos e colegas de profissão sobre o estado da profissão no nosso país e apoderou-se de mim um sentimento de preocupação enorme que se pode expressar assim: “Temos muita gente nova a ser formada, ninguém a ser contratado pelos museus, os quadros dos museus a envelhecer e a chegar à reforma, não tarda nada perderemos muito, mesmo muito, com esta quebra entre gerações, esta continua aprendizagem que foi existindo durante alguns tempos e de que a minha geração ainda usufruiu!”

O evento que ali falo foi o Encontro de Outono de 2016 sobre o tema Museus, Comunidade e Turismo: um triângulo virtuoso? e lá a conversa sobre este tema surgiu na sequência da notícia da reforma de um colega e sobre a ausência de um processo de substituição que permitisse uma passagem de testemunho desempoeirada e eficiente dos assuntos do museu e coleções que estavam ao seu cuidado. Uma situação que considero deveras preocupante para os museus em Portugal. Perde-se a passagem de informações importantes, a discussão entre gerações, a aprendizagem e a confrontação (que se espera sadia), perde-se muito e com este hiato, não se ganha nada.

De 2016 até agora pouco mudou. Não contratamos, salvo raras excepções. Os museus continuam a ser vistos, na maior parte dos casos, como instituições que dão prestígio e relevo, por vezes até vantagem política, mas são raros os casos de um investimento continuado, sério, com estratégia, com políticas de coleções com reflexão e estudo de temas recentes, sustentados por coleções estudadas e desenvolvidas com cabeça, tronco e membros, com equipas sólidas, com formação apropriada (e já agora diversificada, sem a prisão da coleção) e continuada. A nível central, se retirarmos a boa intenção do relatório do Grupo de Projeto Museus no Futuro, muito bem conduzido pela Clara Camacho, e a conclusão de alguns dos concursos para diretores de museus, esta legislatura caminha (de novo) para ser um desperdício (de tempo, de pessoas, de recursos).

No entanto, agora anunciam-nos que vem aí uma enorme bazuca, dinheiro a rodos que chegará a todos. Que teremos recuperação de edifícios, novos recursos, equipamentos, transição digital, wifi e mais… mas nem uma menção aos que terão que lidar com a transição digital (e com outras) estando dentro da estrutura ou ao cuidado que devemos ter na substituição atempada das equipas com novos profissionais, com outras ou mais qualificações, que possam receber a preciosa ajuda de quem conhece os cantos à casa. Será mais um ponto a agravar a falha intergeracional nos museus, em meu entender.

Ainda que seja para mudar a casa totalmente, é importante que este intervalo de gerações que eu sinto, diminua. Espero que as tutelas percebam isso e renovem as suas equipas a tempo.

Transformação, transição ou integração digital

Transformação, transição ou integração digital

Vivemos tempos de mudança, de adaptação, de alterações a diversos níveis na forma como vivemos. A tecnologia tem sido, de forma agravada nos últimos anos, o factor de aceleração dessa mudança. Transformação, transição ou integração digital (expressão bem cunhada pela Helena Barranha no debate) são algumas das expressões que vamos ouvindo como identificação deste fenómeno que é a inclusão da tecnologia para melhorar, alterar, refazer as soluções, métodos, modelos, etc. utilizados tradicionalmente no trabalho em museus. Foi este fenómeno que o ICOM Portugal pretendeu debater no passado dia 20.

Não foi a expressão que debatemos a convite do ICOM Portugal, mas sim as recomendações do eixo temático “Transformação Digital” do relatório final do Grupo de Projeto Museus no Futuro que foi criado pelo MC para reflectir sobre o futuro dos museus portugueses, ou melhor, sobre o futuro dos museus e palácios dependentes do estado central (leia-se DGPC e DRC). A quem não o fez ainda, aconselho a leitura atenta e crítica, porque certamente irão encontrar muito em que pensar, mesmo que não trabalhem numa das instituições visadas no relatório.

Para a conferência o ICOM Portugal convidou-me a mim, para a grata tarefa de moderação, à Ana Carvalho1 e à Helena Barranha2 como representante da equipa que acompanhou a Clara Camacho na realização do estudo e relatório e como especialista e investigadora na área, respectivamente. A escolha da Ana e da Helena não podia ter sido mais acertada, confesso. É bem conhecido o trabalho de ambas na área dos museus (e da sua relação com o universo digital) e a reflexão que têm desenvolvido sobre o tema em análise.

Cartaz debate
Cartaz do debate sobre Transformação Digital

Ambas começaram por apresentar a reflexão que lhes foi pedida para esta conferência, num ambiente que se espera sempre mais informal e menos cansativo para quem assiste. A Ana e a Helena cumpriram e deram-nos uma visão sobre a forma, método e sobre as preocupações que estiveram presentes na equipa que produziu o relatório, por um lado, e por outro uma visão crítica, ainda assim positiva, do resultado que todos conhecemos.

Da intervenção de ambas gostaria de destacar, por um lado, a forma como a Ana apresentou as questões que estiveram por trás da pesquisa e recolha de informação pela equipa da Clara Camacho, assim como a delimitação do estudo e a preocupação em obter dados fidedignos, a observação dos pares, a visão de outras realidades que não a nossa. São elementos fundamentais para o estudo e para compreendermos as recomendações feitas. Além disso, a Ana resume as diferentes recomendações em 4 áreas que, na minha opinião também, são fundamentais: capacitação, infraestrutura, acesso (digitalização e não só) e parcerias. Nestas áreas são incluídas as diferentes recomendações do relatório para a transição digital que, apenas para recordar, são:

  1. Modernizar e atualizar os equipamentos informáticos internos;
  2. Criar um portal de Museus, Palácios e Monumentos, atualizar e otimizar os respetivos sites;
  3. Criar uma linha de apoio “Museus do Futuro” a projetos de requalificação dos Museus, Palácios e Monumentos;
  4. Criar um programa de reforço e de alargamento sistemático da digitalização dos acervos dos Museus, Palácios e Monumentos;
  5. Assegurar e incrementar o acesso digital às coleções e acervos;
  6. Desenvolver um programa de utilização das tecnologias como meio complementar de interpretação;
  7. Criar mecanismos de apoio, monitorização e avaliação para os Museus, Palácios e Monumentos;
  8. Reforçar o estabelecimento de parcerias na área da comunicação digital;
  9. Promover projetos-piloto de transferência de conhecimento e de investigação;
  10. Assegurar o recrutamento de profissionais com competências digitais especializadas e criar planos de formação regulares.

A partir dali a Helena confronta-nos com a importância da terminologia utilizada, tal como já eu havia feito colocando no twitter a questão entre transformação ou transição (sem grande resposta diga-se de passagem), mas elevando a fasquia através da reflexão mais cuidada e aprofundada do termo integração, ou seja integração digital, em vez de transição ou transformação, procurando dessa forma uma visão mais inclusiva, mas também mais “humanizada” da forma e velocidade com que somos “engolidos” pela tecnologia no dia-a-dia dos museus, ou mesmo, da nossa vida.

Esta é uma questão interessante que importa trazer à liça sem receios, de forma simples e concreta, como a Helena fez. A reflexão sobre questões que nos parecem óbvias e aceites sem grande preocupação ou cuidado é sempre útil, porque nos permite ver por outro prisma determinado problema ou mesmo equacionar as prioridades definidas para a resolução das questões identificadas neste relatório ou noutros semelhantes. Assim, esta integração digital, mais inclusiva e crítica, parece-me apropriada para o momento que vivemos, ainda mais no contexto actual, de “digitalização” de toda a nossa relação profissional ou lúdica com os nossos museus.

A partir destas duas intervenções iniciais, com muito alimento para a discussão, abrimos a porta à discussão com os que nos acompanhavam no zoom e seguiam no Facebook e conseguimos debater assuntos como os recursos financeiros necessários (e existentes) no sector para a transformação digital, a preparação e abertura das tutelas para o caminho que há a percorrer, a alteração necessária em termos de políticas de acessibilidade (e eu diria inclusão), a formação e capacitação dos recursos humanos e a contratação de quadros com formação e competências na área, a atenção para os novos perfis profissionais e novas profissões que se criarão por conta da integração com o universo digital, o planeamento relativo à obsolescência das infraestruturas e dos equipamentos que é necessário acautelar, a atenção necessária para a inclusão destas e doutras despesas que agora surgem e, embora já mencionado pela Ana e pela Helena, a atenção também necessária para um planeamento estratégico, não desligado da estratégia geral da instituição, que abranja as novas questões e meios ao dispor. Mais do que este resumo, convido-os a acompanhar o debate através da gravação que o ICOM Portugal partilha connosco através do seu canal de Youtube.

Conferência Digital – Grupo de Projeto Museus no Futuro – Transformação Digital

Sem falsa modéstia, julgo que conseguimos abordar nesta breve conversa alguns pontos interessantes das recomendações feitas pelo GTMF. Julgo que se percebe que estaríamos muito mais tempo a conversar, eu, a Ana e a Helena, mas também muitos dos que nos acompanharam, sobre as questões trazidas por este documento. Não tivesse ele outro contributo, o que não é, de todo, o caso, teria este importante contributo de colocar o sector atento, a discutir, a debater e a pensar num conjunto importante de desafios que agora têm outro enquadramento e circunstâncias distintas.

Como nota final, diria que o relatório é, em relação ao eixo da transformação digital, bem completo e aborda um conjunto de problemas e questões que o estado precisa de resolver, no entanto, haveria ainda algumas outras questões que poderiam ser levantadas e abordadas como por exemplo, a gestão de direitos (relacionada também com a acessibilidade), a normalização ou a criação de uma plataforma de colaboração mais vasta entre museus, bibliotecas e arquivos do estado central para a dinamização do património cultural guardado nestas instituições.

Teremos certamente oportunidade de aprofundar o resultado do excelente trabalho da Clara Camacho e da equipa que nos deixa este importante contributo para o desenvolvimento do sector. Não o deixemos cair nas gavetas profundas da Ajuda.


1 Ana Carvalho – Investigadora de pós-doutoramento no Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades (CIDEHUS) da Universidade de Évora e membro do Grupo de Projeto Museus no Futuro (2019-2020). Doutoramento em História e Filosofia da Ciência, especialização Museologia e mestrado em Museologia (Universidade de Évora). Colaborou como investigadora principal no projeto internacional Mu.SA – Museum Sector Alliance (2016-2020) sobre os desafios da transformação digital para os museus. É uma das fundadoras da revista MIDAS – Museus e Estudos Interdisciplinares. A sua investigação tem-se centrado em temas do património, da história da museologia e da museologia contemporânea.

2 Helena Barranha – Doutoramento em Arquitetura (Faculdade de Arquitetura, Universidade do Porto, 2008) e Mestrado em Gestão do Património Cultural (Universidade do Algarve, 2001). É Professora Auxiliar no Instituto Superior Técnico, Universidade de Lisboa e Investigadora no Instituto de História da Arte, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade NOVA de Lisboa, onde integra o Grupo de Museum Studies e coordena o cluster de Arte, Museus e Culturas Digitais. Foi Diretora do Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado, em Lisboa, de 2009 a 2012, e Coordenadora do projecto unplace: um museu sem lugar, entre 2014 e 2015. As suas atividades de investigação centram-se atualmente no património cultural, na arquitetura de museus de arte contemporânea e nas culturas digitais, temas sobre os quais tem realizado várias conferências e publicações, tanto em Portugal como noutros países. É membro da Associação Acesso Cultura, do ICOM-Portugal e da Europeana Network. Association.