Expectante (a palavra vem, como muitas, do latim “exspectante” que dá título a este texto) é o meu estado de alma para este início de 2024. Expectante porque finalmente, depois de anos e anos de letargia, tivemos decisões importantes para o património cultural português e, também, para os museus e monumentos portugueses.
Há uns anos atrás este texto teria outro título. Se bem me recordo de mim na época, o título que lhe daria seria algo mais entusiasmado e esperançoso. Hoje é mais desconfiado, com as reservas de quem já viu várias reorganizações e reformas do sector (e dezenas de estudos para o efeito) cairem à primeira crítica ou na primeira mudança de governo. No entanto, é um título ainda esperançoso e ciente que temos capacidade de fazer uma mudança que é, desde há muito tempo, uma absoluta necessidade para a revitalização do sector. Há boas indicações que devem, a meu ver, ser mencionadas.
A primeira boa notícia é que, apesar da constante crise em que nos encontramos desde as revoluções liberais e das mudanças governativas em curso, parece que a reorganização do Estado no sector é mesmo para se manter e será concretizada. Não é uma mudança que agrade a todos e que esteja isenta de críticas e onde se verifiquem situações que importa olhar com maior cuidado (os dados que informaram as opções políticas e técnicas tomadas não são públicos, ao que me é dado a saber, mas deveriam ser), mas é uma mudança que vinha sendo pedida há muito por um largo consenso no sector que considerava a DGPC (o link para a bendita página agora só através do Arquivo.pt) um enorme “navio”, pesado, vagaroso, etc. que não conseguia, pelo seu porte e dimensão, aportar em todo lado onde era necessário. Para os museus que dela dependiam foram anos de estagnação e de restrições (impostas pela crise, pela burocracia, pela máquina pesada e centralizada que a DGPC se revelou) que a custo foram sendo debeladas com algumas boas notícias como o começo da autonomia de gestão vertida nas regras dos mais recentes concursos para as direções dessas instituições.
A segunda boa notícia, na minha opinião, é que se separa museus e monumentos do restante património cultural. Arqueologia, património arquitetónico, património paisagístico, património imaterial (sim… deixa a esfera dos museus, segundo o que vemos nas atribuições do novo IP – Património Cultural) ficam numa esfera distinta com a criação de um novo Instituto Público que terá as competências da extinta DGPC para estas áreas e assume, numa visão centralizadora a meu ver, as responsabilidades das anteriores Direções Regionais de Cultura agora integradas nas CCDRs.
A terceira boa notícia, na minha opinião, é a criação de uma empresa pública que me parece ser uma forma mais realista e com maior proximidade para tutelar instituições que se pretendem modernizar e dinamizar junto de públicos e comunidades com interesses muito amplos. Aliás se pensarmos nos desafios que estas instituições enfrentam e na velocidade das mudanças neste sector, dificilmente seria compreensível a manutenção ad eternum de uma estrutura organizacional como a da DGPC. Assim, uma gestão mais ágil, que possa dotar os museus e monumentos com pessoas qualificadas e com as competências necessárias (assim como a casa tutelar), que possibilite parcerias ágeis, que integre facilmente (e sem as burocracias demoradas) projectos internacionais, que agarre as oportunidades da transição digital (encarando-as, ao invés de ir com a corrente sem rumo), que dote os museus e monumentos com os recursos necessários para cumprirem as suas missões. Enfim que tenha um objetivos definidos e uma estratégia para os alcançar!
A quarta boa notícia (dada ontem) é a passagem da empresa para o Palácio Burnay1 (na Rua da Junqueira) que permitirá a recuperação do palácio, votado ao abandono desde há uns anos, e libertar o espaço ocupado na Ajuda (que certamente terá boa utilidade para o PNA ou para o IP agora criado. Esta novidade, apresentada ontem na cerimónia que o governo organizou para marcar a entrada em funcionamento das duas entidades acima mencionadas, é também um reflexo da intenção demonstrada de autonomizar seriamente a tutela dos museus e monumentos (o que me agrada profundamente).
No entanto, mantenho esta reserva e desconfiança (que normalmente não teria), perante as diversas vezes que tive (tivemos) esperança num futuro melhor para os museus portugueses, mas não o vi concretizado até agora. Espero, sinceramente, que esta reforma dê frutos e, quanto mais não seja pela acção, acho que podemos agradecer ao presente Ministro da Cultura (Pedro Adão e Silva) por este passo. Agora está nas mãos do Pedro Sobrado, da Cláudia Leite e da Maria de Jesus Monge colocar a máquina a andar. Espero que tenham o maior sucesso, a bem dos nossos museus e monumentos.
Há também algumas preocupações que mantenho. São várias, mas a que mais me inquieta é a relativa à forma da Rede Portuguesa de Museus.
Quando criada a RPM foi, para mim pelo menos, um sinal de enorme esperança. Não era só isso, mas constituiu-se como uma rede de entreajuda entre instituições, com programa de formação de profissionais e um sistema de avaliação e creditação de museus que alavancou o desenvolvimento destas instituições. Fê-lo através de programas de apoio e formação e acções de acompanhamento técnico asseguradas por uma equipa incrível que foi definhando ao longo dos anos, por falta de investimento e atenção ao papel fundamental que a RPM desempenhou nos primeiros anos de existência.
A RPM é hoje constituída por museus de diversas tutelas, da esfera pública e privada, que vão desde o estado central, até às fundações e empresas, passando pelos municípios e acabando nas universidades. É diversa nas tutelas, mas também na dimensão, tipologia e recursos (financeiros e humanos) dos museus que a integram. Herda uma metodologia de trabalho testada, no que diz respeito à creditação dos museus, mas que urge reavaliar, discutir e, sendo o caso, atualizar. Tem formado profissionais de museus em diferentes áreas ao longo dos anos, mas em determinadas áreas (a documentação, por exemplo) precisa de rever e atualizar currículos e conteúdos. Tem sido, desde a sua criação, fonte de inspiração para a criação, dispersas pelo território, de um conjunto de redes de museus regionais como a Rede de Museus do Baixo Alentejo, do Algarve ou do Douro (para citar apenas algumas) com benefícios evidentes para os museus e profissionais dessas regiões.
Por tudo isto, a RPM foi e é um elemento fundamental para o desenvolvimento dos museus em Portugal. Por isso a minha preocupação prende-se com o facto de manter a RPM na dependência da Museus e Monumentos, EPE com a seguinte menção no diploma legal que cria esta entidade:
Artigo 3º – alínea m:
O desenvolvimento da Rede Portuguesa de Museus (RPM), tendo em vista a operacionalização das orientações estratégicas para o trabalho em rede entre os museus que a integram, a qualificação do tecido museológico nacional, a implementação dos núcleos de apoio a museus, a promoção e a credenciação de museus, a articulação com outras redes nacionais e internacionais, a descentralização da oferta cultural e o envolvimento dos públicos;
https://data.dre.pt/eli/dec-lei/79/2023/09/04/p/dre/pt/html
Não me interpretem mal. Eu concordo que o papel da rede é o descrito na citação do Decreto-Lei n.º 79/2023, de 4 de setembro acima transcrita. O que eu não concordo é que a RPM se mantenha apenas como um “departamento” ou ramo dentro da EPE, quando deveria ser um organismo autónomo, ainda que dependente da administração central, com capacidade e meios para cumprir as funções atrás descritas. É certamente da minha pouca experiência em termos de administração pública, mas uma organização distinta, com possibilidade de participação de outras tutelas (públicas e privadas), de pequena dimensão e de responsabilidade partilhada (principalmente a financeira), com critérios de participação bem definidos (em termos de recursos financeiros e humanos e responsabilidades) e com um sistema representativo das diferentes áreas nos órgãos de gestão, teria mais força e capacidade do que um “departamento” dentro de uma empresa pública que, queiramos ou não, tem o seu futuro ligado à boa vontade e visão política do governo e facção política que conduzirá os destinos do país em determinada altura.
A existência de uma instituição independente da EPE e com participação activa de diversas tutelas permitiria, na minha opinião:
- um sistema de credenciação completamente independente;
- responsabilização e participação activa de todas as tutelas;
- uma rede de distribuição de recursos eficiente;
- a criação de núcleos de apoio diversificados;
- uma maior sustentabilidade da própria RPM;
- a descentralização e disseminação pelo território.
Enfrentaria alguns desafios e obstáculos, desde logo, o modelo de governação. A criação de uma instituição que representa diversas tutelas implicaria a definição de um modelo de governação mais complexo, mas ainda assim, não me parece que fosse uma empreitada impossível. Há exemplos de redes em que administração local e central (a Rede Nacional de Bibliotecas Públicas, por exemplo) estabelecem contratos programas com encargos e participação mútuos ou de projectos na área da cultura para os quais foram criadas fundações participadas por diferentes entidades, como são os casos da Casa da Música ou de Serralves. É possível seguir este caminho, diria eu.
Estou certo que haverá bons argumentos a favor da manutenção da RPM na Museus e Monumentos, mas os que vejo (sob uma perspectiva enviesada certamente) não fazem pender a minha balança para outra opinião que não esta.
Estou então cauteloso e expectante! A aguardar que 2024 seja um ano marcante (pelo menos já é um ano de acção) para os museus, monumentos e património cultural português. Para já fez-me voltar a escrever e a reflectir aqui.
Um Bom Ano para todos!
- Uma nota para o sistema SIPA que falha sempre que se tenta abrir uma imagem e tem sido votado, como outros sistemas de documentação, a um abandono incompreensível. Falaremos nisso noutra altura. ↩︎