A documentação em museus, tal como a conhecemos hoje, passou por uma longa evolução. Desde as primeiras coleções privadas até os sofisticados sistemas digitais atuais, o modo como os museus registam e gerem as suas coleções reflete mudanças culturais, tecnológicas e institucionais.
Neste post, vamos elencar apenas alguns momentos relevantes da história da documentação em museus e entender como chegámos ao atual estado de desenvolvimento.
Para uma história da documentação completa e muito mais informada do que este breve texto, aconselho o brilhante trabalho da Maria Teresa Marín Torres (Marín Torres, Maria Teresa. Historia de la documentación museológica: la gestión de la memoria artística. Gijón: Trea, 2002.) que percorre com detalhe os momentos essenciais do desenvolvimento desta áreanos museus. Podem também ver, em acesso aberto, um excelente texto sobre os “visionários da memória artística” na revista da Faculdade de Letras também da autoria da Maria Teresa.
Começamos, obviamente, pelo início:
1. As Origens: Gabinetes de Curiosidades
A documentação em museus tem as suas raízes nos gabinetes de curiosidades dos séculos XVI e XVII. Nessa época, colecionadores aristocráticos reuniam objetos exóticos e raros como entretenimento, mas também como demonstração do status social e intlectual. A documentação era limitada a inventários rudimentares, muitas vezes escritos à mão em diários pessoais sem critério que não fosse o registo pessoal. Esses registos serviam mais para manter o controle (uma espécie de cadastro) sobre os objetos recolhidos do que para fornecer informações detalhadas sobre sua origem ou significado.
A visão da documentação nesta altura concentrava-se em certificar a posse (ainda que pudesse ser duvidosa aos nossos olhos) e não reunir com detalhe toda a informação do contexto original do objeto. A motivação da recolha prendia-se mais com o belo e o exótico do que com a procura de conhecimento sobre o que os objetos ou espécies representavam.
2. O Surgimento dos Museus Públicos
Com a criação dos primeiros museus públicos no século XVIII, como o Museu Britânico (fundado em 1753), surgiu a necessidade de catalogar as coleções de forma mais sistemática. Inventários detalhados começaram a ser feitos, incluindo descrições básicas e informações sobre a proveniência das peças.
Nesta altura começaram a ser criados os primeiros sistemas de classificação e taxonomias para classificação de espécies que depois tiveram desenvolvimentos para as áreas da arte, arqueologia, etnologia, etc. O mais conhecido destes sistemas de classificação é o sistema lineano ou Sistema de Lineu para a classificação do mundo natural que fixou a divisão entre classes, ordens, géneros e espécies para a classificação das plantas criado pelo naturalista sueco Carl Nilsson Linnæus (1707 – 1778). Em Portugal um dos grandes disseminadores deste sistema, correspondente de Linnæus, foi Domenico Vandelli, lente da Universidade de Coimbra, e promotor do sistema no meio académico português.
No entanto, a normalização como hoje a conhecemos ainda era incipiente.
3. A Era da Catalogação Sistemática
No século XIX, com o crescimento exponencial das coleções e a profissionalização do campo museológico, surgiu a necessidade de uma catalogação mais organizada. Museus como o Louvre e o Smithsonian começaram a usar fichas catalográficas detalhadas, com informações sobre:
• Descrição física e técnica do objeto
• Datação e origem
• Classificação por categoria (arte, história natural, arqueologia, etc.)
Foi nesta época que o conceito de “número de inventário” foi consolidado, atribuindo a cada peça um código único para identificação inequívoca dentro do sistema de informação do museu. Sobre o número de inventário, podem consultar aqui no Mouseion, diversos textos e um episódio do “Conversas de Muzé” que refletem sobre o mesmo e sobre a sua evolução. No entanto, é importante perceber que a sua criação foi crucial para o desenvolvimento normativo na documentação das coleções.
Desde então, a discussão sobre normalização cresceu e foram criadas as primeiras normas, ainda que não globais, das quais encontramos ainda testemunho nas antigas fichas de inventário ou catalográficas que os museus detêm (uma nota para este que vos fala: escrever um post sobre a coleção de fichas de inventário que fui reunindo ao longo dos anos). Um longo período decorre até que chegamos à segunda metade do século XX.
4. O Impacto da Tecnologia: Primeiros Computadores
A partir da década de 1960, os museus começaram a explorar a utilização de computadores para a gestão de coleções. Um dos primeiros exemplos foi o da Museum Computer Network (MCN) nos EUA, que procurou normalizar as práticas de documentação e criar uma base de dados num sistema centralizado que serviria um conjunto de museus de Nova Iorque, que se juntaram para obter o financiamento necessário na altura para um computador (um mainframe, em boa verdade) com a capacidade de processamento necessária para o efeito. Esta mudança permitiu:
• Acesso mais rápido às informações das coleções;
• Maior segurança dos registros;
• Possibilidades de pesquisa mais avançadas.
Desde então, o desenvolvimento tecnológico, a massificação dos computadores e o crescimento da utilização de redes de intercâmbio de informação, empurrou os museus e os seus profissionais para uma vertiginosa e acelerada procura de soluções para a construção de um sistema de informação digital que responda eficientemente às solicitações internas e externas de infromação sobre o património guardado nestas instituições.
5. A Revolução Digital e a Documentação Online
O desenvolvimento tecnológico, nomeadamente com a criação e massificação da utilização da Internet, na década de 90, permitiu a disponibilização das coleções online, ampliando dessa forma a acessibilidade por parte do público e da comunidade académica. Nesta altura a pressão para a criação de sistemas normalizados, ou seja, para a criação de normas documentais dos museus, atingiu o ponto de ebulição.
Instituições como o CIDOC, a MDA (agora Collections Trust), a fundação Getty, entre outras, assumem nesta altura um papel fundamental na criação de normas como as Categorias de Informação do CIDOC, o CIDOC CRM (Conceptual Reference Model), a LIDO, a Spectrum, a CDWA (Categories for the Description of Works of Art), a Object ID, entre outras foram sendo criadas e dessiminadas, constituíndo um corpo normativo que tem vindo a ser consolidado no universo dos museus e que tem influenciado o desenvolvimento de normas no sector das instituições de memória.
Com base nesse desenvolvimento e no aparecimento de diversas aplicações de pesquisa nos museus, verificou-se também o desenvolvimento de plataformas digitais como o Europeana e o Google Arts & Culture permitiram que as instituições compartilhassem as suas coleções globalmente através de repositórios que reúnem no mesmo local metadados e objectos digitais de um conjunto cada vez maior de instituições.
Além destas plataformas a documentação das coleções através de sistemas digitais tem constituído um enorme apoio para o trabalho interno nos museus. Catalogação mais eficiente, implementação de procedimentos normalizados, extração de relatórios costumizados, elaboração de estatísticas, gestão de movimentos, de reservas, etc. são algumas das áreas onde a implementação de sistemas digitais constituiu uma enorme revolução para a gestão e preservação das coleções e da informação sobre as mesmas.
6. Tendências Atuais e Futuro da Documentação
Hoje, os museus utilizam sofisticados Sistemas de Gestão de Coleções (CMS), que permitem:
• Integração de dados multimédia (imagens de alta resolução, vídeos, modelos 3D)
• Conexão com redes sociais e plataformas interativas
• Utilização de inteligência artificial para catalogação e pesquisa
Além disso, novas abordagens, como a documentação colaborativa e a inclusão de narrativas comunitárias, estão a transformar a forma como registamos o património cultural.
Conclusão
A história da documentação em museus é um reflexo direto da evolução cultural e tecnológica da humanidade. Ao longo dos séculos, passámos de inventários manuscritos para bases de dados digitais interligadas, e o futuro promete ainda mais inovação com a utilização de tecnologias emergentes como blockchain e realidade aumentada.
No próximo post, vamos explorar os desafios atuais na documentação em museus, incluindo a digitalização de acervos antigos e a preservação de dados digitais.