Recorrentemente voltamos às questões da comunicação dos Museus (sobre as colecções) com as suas audiências. Seja a comunicação dentro de portas, seja a comunicação com o exterior, física ou virtual (certamente teremos em breve de rever um pouco estes conceitos), o Museu tem assumido, fruto de diversas circunstâncias, o papel de replicador das disciplinas que sustentam a investigação sobre as suas colecções (arte, história, zoologia, botânica, etc.) na forma e conteúdo utilizados para a comunicação das colecções.
É um tema que tem suscitado, ainda que por motivos diferentes, textos muito interessantes da Maria Isabel Roque (aqui e aqui) e da Maria Vlachou (aproveito para destacar este a propósito do livro com as conversas entre Martin Gayford e Philippe de Montebello) e que me é particularmente caro, porque frequentemente estou nos dois lados da barricada: o de quem prepara a documentação sobre as colecções (que deveria sustentar a sua comunicação) e o de quem vai ao museu e procura conhecimento, admiração, reflexão, supresa, etc.
Esta dupla perspectiva é, devo assumir, uma chatice para quem me acompanha. Passo a explicar. Cada vez que visito um museu e vejo informação sobre as colecções, em folhetos, tabelas, etiquetas, folhas de sala, meios multimédia, aplicações, ou outro qualquer meio, o meu primeiro pensamento vai para as circunstâncias da criação, organização e publicação da informação que tenho disponível. Imaginam vocês o que acontece a quem vai a meu lado, quando começo a falar sobre a dificuldade que existe na sistematização dos dados nos museus, a qual é possível identificar, quase sempre, comparando informação básica, por exemplo medidas, ou datas, de dois objectos colocados numa mesma sala. Sim é isso mesmo… um sonoro bocejo!
Quando me apercebo do bocejar da companhia, o que acontece normalmente logo a seguir, tento desligar-me da “visão deturpada” pelos interesses profissionais e académicos (acreditem que é complicado) e procuro contexto, ou seja, e como bem diz a Maria Vlachou, estou “… à procura de algo que possa ter significado para nós, algo que possa deliciar-nos, surpreender-nos, fazer-nos sentir bem ou mais ricos ou mais conscientes de nós mesmos e do mundo”. Procuro retomar o momento em que vi, pela primeira vez, uma pedra lunar na exposição “A Aventura Humana” (apresentada, em 1988, no Museu Nacional de Etnologia) e pensei, na inconsciência própria da idade, “se conseguimos ir à lua, conseguiremos fazer tudo! Isto só tem como correr bem daqui para a frente!”
Devo dizer, antes de mais, que nem tudo depende da informação que o Museu dá a quem o frequenta. Não tenho a certeza se aquela pedra lunar teria mais alguma explicação para além do seu nome e proveniência (se bem me recordo tinha também informação sobre o seu proprietário), mas o projecto da exploração lunar e as séries e filmes de ficção científica (Espaço 1999, Galactica, Guerra das Estrelas, etc.) exerciam, nos anos 80, um fascínio brutal sobre a nossa imaginação e aquela pedra aproximou-me do meu sonho de me tornar num explorador do espaço ou de ser o primeiro espinhense a cursar a academia dos Jedi. No entanto, quantas vezes é que este tipo de situações acontece? Quantas outras não ficamos desiludidos perante um objecto, por não termos o conhecimento, informação, contexto (ou até imaginação) necessários para nos maravilharmos?
Pode o Museu ficar descansado quanto a esta questão?
A resposta é óbvia. Não pode! Mas não é verdade que parece estar descansado? Não continuamos a ver, salvo muito honrosas e boas excepções, um conjunto de informação que não é muito mais do que autor, data de execução, técnicas, dimensões e origem? Não faz muito tempo que visitei uma exposição de um autor que me era (ainda é) completamente desconhecido, mas em nenhum local na exposição encontrei sequer a uma referência sobre a vida (reparem que não disse apenas percurso artístico, disse vida) daquela pessoa e em cada objecto que a exposição me mostrava (impecavelmente exposto), não tinha mais do que técnica, data e título (muitas vezes s/ título). Esteticamente foi um exercício agradável, mas não me fez pensar em mais nada, não acrescentou em mim nada sobre o autor ou sobre a sua obra, não me cativou a procurar mais. Se me tivessem dado um pouco de contexto sobre o autor e a obra (preferindo eu factos em vez de uma avaliação subjectiva da sua obra e vida, devo confessar), não seria mais fácil a aproximação pretendida com a exposição pública dos objectos? Eu, e pelo que li, a Maria Isabel Roque e a Maria Vlachou, concordamos que sim, no entanto, a(s) forma(s) utilizada(s) pelo Museu para o fazer é que são o verdadeiro desafio.
Desde logo, reafirmando as palavras da Maria Isabel Roque, julgo que “… urge uma reflexão crítica e teoricamente fundamentada acerca da informação pertinente e adequada, bem como acerca do papel inevitável dos recursos da informação digital, dentro e fora do espaço museológico” e acrescento que esta reflexão crítica terá que ser acompanhada com uma mudança urgente da prática e das políticas ou estratégias que a sustentam. Deixo então alguns pontos que poderiam, na minha opinião, contribuir para essa mudança:
- Definir e implementar políticas que coloquem o inventário, catalogação, estudo e gestão de colecções como prioridade para os museus (não querendo com isto dizer que se neglicencie o restante, mas não se fazem omeletes sem ovos! Não se comunica bem aquilo que se desconhece ou conhece pela rama*);
- Fazer com que essas políticas permitam implementar planos de documentação em que a normalização de processos, estruturas e terminologias possa contribuir para a disseminação real do conhecimento das colecções;
- Fazer estudos de públicos centrados na expectativa e não na experiência, ou seja, procurar o que pretendem os públicos e não aquilo que eles sentem relativamente à sua visita a determinado museu ou colecção;
- Definir um modelo de documentação de colecções centrado no conceito COPE (Create Once, Publish Everywhere) que permitiria, entre outras questões, a optimização dos recursos despendidos no processo;
- Abraçar novas ferramentas como o “Storytelling“, por exemplo, na planificação da utilização e exposição das colecções (e pensar nelas nos processos de documentação e gestão de colecções também dava jeito, já agora);
- Olhar, seriamente, para aquilo que é o poder da Rede Social que temos à nossa frente (ou no bolso) e utilizar, sem constrangimentos (a não ser os éticos, claro), esse poder em benefício da construção desta nova prática.
Que vos parece?
* Uma nota para recordar o elevado número de colecções que não estão convenientemente documentadas em Portugal (e não só).
© Imagem: Wikipedia
Caro Alexandre Matos,
É sempre com imenso prazer que recebo a newsletter Mouseion. Os seus textos leem-se de um só fôlego.
Estou a trabalhar há 3 anos nos serviços de documentação da ANA-Aeroportos de Portugal e este ano fui incluida no grupo de trabalho do nosso museu: ANA Museu.
Assim, queria pedir-lhe que abordasse nos seus “posts” o tema Museus de Empresas, se possível – ainda tenho muito (tudo) a aprender sobre o assunto e gostaria muito de saber a sua opinião e, já agora, se poderia indicar-me alguma biografia que ache essencial.
Desde já lhe agradeço a atenção.
Com os melhores cumprimentos,
Maria João Boaventura
Bom dia Maria João,
Prazer é receber o feedback de quem lê o Mouseoin. Agradeço, portanto, este comentário e irei reflectir um pouco sobre o tema dos museus de empresa para escrever um futuro post. Entretanto não tenho grande bibliografia recolhida sobre o tema, mas vou ver o que se arranja. Recordo-me de ter lido uma tese sobre um museu de empresa, mas preciso de procurar onde tenho essa referência. Assim que tiver envio-lhe por mail, pode ser?
Obrigado uma vez mais!
Excelente, Alexandre.
Agradeço-lhe imenso a atenção.
Fico pois a aguardar os próximos posts.
Atentamente,
Maria João
Subscrevo inteiramente! Os museus devem estudar as suas colecções para que nos possam contar as suas histórias, para nos surpreender, para nos levar à imaginação. Também aprendi muito sobre esse tema com a Marta Lourenço (Historiadora do Museu Nacional da Ciência e de História Natural). É mesmo a primeira coisa a fazer: estudar e documentar bem as colecções.
E depois o público. Bem eu faço parte desse mundo: eu sou público na grande maioria das vezes. E gosto de perceber o que leva o curador a ter escolhido um objecto no meio de tantos outros (ou conjunto de objectos). O que o atraiu? porque o apaixona? é um pormenor? é porque tem uma história curiosa? São essas histórias é que eu quero saber!
Há outras, claro, muitas outras. Ainda para mais somos diferentes. Cada um de nós tem interesses diferentes.
Há muito a mania de ter um discurso expositivo implícito. Sinceramente não percebo o porquê do implícito. Eu acho que, se existe, então deve ser bem explícito. Por que senão só alguns têm acesso à narrativa da exposição… Porque geralmente, “os especialistas” que não querem estas coisas explicitas têm acesso a esta informação, não vão “a zeros”…
É exactamente esse o ponto, Rita! As histórias que estão por trás, mesmo que seja uma simples (às vezes estranha) escolha de um curador! Julgo que ganhamos todos se a conhecermos!
Caro Alexandre, adorei, como de costume, o seu post.
Trabalho com documentação no Museu de Folclore Edison Carneiro e, de uns tempos pra cá, também com exposição. A dificuldade de se desligar do discurso-aula e oferecer também outros discursos, outros olhares- informações acerca dos objetos, é enorme. No caso do museu em que trabalho, que faz parte de um centro de pesquisa, percebo tratar -se de uma via de mão dupla. Do lado da “museologia” a falta de uma documentação mais investigativa, que dê conta de um aprofundamento das várias facetas que um objeto pode proporcionar, para além do correto preenchimento dos campos de uma ficha; e do lado dos pesquisadores a necessidade nem sempre percebida de “demonstração do conhecimento” que conduz ao uso dos objetos como meras ilustrações. Sinto que todos saem perdendo, principalmente o público.
Estamos em processo de elaboração de uma nova exposição de longa duração e essa tem sido uma discussão bastante presente – trazer as várias “verdades” que compõem a coleção, mesclando conhecimento acadêmico à fala de quem faz, de quem doa e, porque não, de quem visita o museu. Não é tarefa fácil, mas estamos caminhando …
Obrigada por compartilhar essas reflexões que nos deixa menos isolados em nossas vivências e reflexões.
Um grande abraço desde o Rio de Janeiro!
Elizabeth Pougy
Elizabeth,
Eu é que agradeço o feedback sobre o vosso trabalho aí no Rio e dizer-lhe que só assim, como diz no seu comentário, é que se pode fazer bom caminho. É mais difícil, mas terão melhores proveitos no futuro.
Abraço desde o Porto!