Comecei a escrever este texto após as primeiras notícias sobre o caso da cedência das obras do Museu Nacional dos Cohces para o hotel em Alter do Chão e muito antes de se despoletar todo o drama relativo ao COVID-19. Ainda assim, pela importância do tema, resolvi voltar a ele e deixar aqui escrita a minha opinião sobre o tema.
Da profícua capacidade legislativa que os nossos parlamentares e governos têm demonstrado ao longo das últimas décadas, haverá poucas leis aprovadas por unanimidade. É normal que assim seja! Em democracia, a diferença e as formas distintas de encarar a construção da sociedade são muito salutares, no entanto, é de louvar que uma dessas poucas leis, aprovadas de forma unânime por todos os partidos então representados na Assembleia da República, seja a Lei-quadro dos Museus Portugueses.
Corria o ano de 2004, era Presidente da República Jorge Sampaio e Pedro Santana Lopes Primeiro Ministro, e a 9 de Julho de 2004 foi então votado e aprovado o diploma que daria início a um dos melhores períodos para o sector dos museus em Portugal. Para a minha geração, era um tempo de esperança, devo dizer. Todos nós, que iniciávamos a carreira ou estávamos nos primeiros anos de trabalho nos museus, a lei dos museus portugueses vinha dar consistência a um sector que não é tido, normalmente, como uma prioridade política e, portanto, é bastante permissivo em relação à vontade do poder político. Vimos todos ali a criação de instrumentos que permitiriam aos museus reclamar mais recursos, mais independência, melhores condições para se desenvolverem e cumprirem os seus propósitos. Foram bons tempos devo dizer…
Passaram entretanto 16 anos! E a questão que se coloca, face às notícias recentes sobre as cedências de obras da colecção de um Museu Nacional para decorar um espaço de um hotel (não entro em conversas sobre a aquisição da referida colecção pelo Estado, porque não me sinto capacitado para o fazer), entre outras do género, é exactamente esta: estão os museus portugueses em melhor situação do que em 2004?
Eu respondo, ainda que triste, mas sem grande problema: não estão, não senhora! E se quisermos juntar mais perguntas, como por exemplo: são os museus realmente autónomos? E a política museológica nacional? Onde anda esta bendita? A resposta é ainda mais simples, mas na negativa na mesma. Não são nada autónomos e a política museológica nacional não está em lado nenhum, anda desaparecida como as notas de 500 euros!
Sei bem que o tempo que corre e que tivemos, nestes últimos 16 anos, diversos desafios, uma crise, muitas mudanças, alterações à vida das instituições, novos governos e tudo o mais que acontece normalmente neste tempo, mas não haveria forma de nos mantermos, pelo menos duas décadas, unidos com alguns propósitos comuns?
Eu acho que sim, que há forma de o fazermos! Devemos isso aos que nos seguem e a quem, antes de nós, conseguiu atingir objectivos comuns como a criação de uma lei importante e a de iniciar o processo de construção da rede de museus, por exemplo. Aliás, acho que o devíamos fazer em alguns sectores estruturais como a Cultura, a Saúde (como é notória a importância do SNS nestes tempos), a Educação e a Segurança Social.
No entanto, o que fizemos no passado, com uma lei exemplar, foi neste caso particular completamente negligenciado pelos responsáveis políticos, contra pareceres técnicos muito informados e sérios do Museu e da DGPC, com base numa visão puramente economicista do património.
Eu não sou, por princípio, contra a utilização/consignação de património cultural por privados. Acho que se tivermos um programa em que Estado, particulares e empresas usem recursos comuns para benefício de ambas as partes (e recordo que o Estado somos todos nós), pode ser útil para a recuperação do património e para a continuidade da sua utilização.
Temos em Portugal um conjunto de edifícios e monumentos que não tendo utilização pelo Estado, podem muito bem ser recuperados para outro uso em que a sua integridade, manutenção e conservação sejam asseguradas, permitindo a quem assume esses encargos retirar contrapartidas do investimento que ali faz. Prefiro isto do que ver diversos monumentos e edifícios em estado de ruína e abandono, assim como acho que nos casos contrários (os de abandono de património edificado com interesse relevante por privados, como o Palácio Rosa Pena, na minha terra natal, por exemplo) o estado deve poder assumir, após os procedimentos legais necessários, assumir a posse e investir neles para os devolver à esfera de utilização pública, nalguns casos, ou mesmo privada, noutros.
O mesmo diria, com as devidas diferenças, para as nossas colecções, para o nosso património móvel. Em boa verdade já o fazemos. São mais do que conhecidos os empréstimos de objectos dos nossos museus para outros museus e instituições, privadas ou não, que os solicitam com determinados motivos, isto é, para estudo, exposições e outras utilizações semelhantes. Para o fazermos, tal como no património imóvel, temos que respeitar um conjunto de regras, vertidas na lei e em diversos regulamentos, que procuram garantir a salvaguarda e segurança desses bens, assim como a sua utilização devida, independentemente da instituição e local. É muito simples de perceber, certo? Não são precisos pareceres técnicos muito elaborados, pois não? Era o que pensávamos até há bem pouco tempo.
Assim, em minha opinião, é chegada a hora em que todos nós, profissionais de museus, precisamos de ser intransigentes, como o foi a directora do Museu Nacional dos Coches, Silvana Bessone (a quem agradeço muito pela coragem), e dizer não são cumpridas ordens que atentam contra a ética e lei.
Sei que o problema está ultrapassado e que a cadeia de hotéis já prescindiu do empréstimo e também sei que nos tempos de pandemia que vivemos este pode parecer um problema menor e sem qualquer interesse, mas é nestas alturas, em que estes problemas são colocados lá longe na gaveta das coisas que de vez em quando voltam se não formos firmes!
Caro Alexandre Matos, como museólogo, fiquei francamente satisfeito por saber – antes de toda a polémica essencialmente desencadeada por uma directora mandatada há mais de 30 anos para o cargo, perpétuo e sem escrutínio, portanto – que haveria uma transferência de algum espólio da “magnífica” obra museológica que é MNC para a Coudelaria de Alter. A Coudelaria, sendo gerida pela Companhia das Lezírias, é essencialmente pública e possui um património vivo e vibrante, fazendo um trabalho magnífico na proteção e divulgação de arte coudélica nacional, aí se estudando e trabalhando diariamente o Lusitano e arte de cavalgar. Algo que o MNC não faz, de todo, para mais tendo saído dos espaços que ocupava e que correspondiam a um picadeiro real. Como admirador da Coudelaria e visitante assíduo, fiquei triste ao saber da polémica e recuo da tutela, sabendo de antemão que não será por mais este desaire provocado por um tradicional centralismo político-cultural que a Coudelaria de Alter não vai continuar a ser uma referência internacional no património equestre. Uma última referência para a sua redução da Coudelaria a um hotel: a menos que considere todas as Pousadas de Portugal como meros hóteis, e não como casos exemplares – no panorama internacional – de ressuscitação de património, só poderá ser uma análise precipitada considerar o investimento hoteleiro na Coudelaria como algo que a prejudique. Pelo contrário, apenas trará mais vida, mais interesse, mais património.
Yann, a polémica não é a utilização da coleção pela Coudelaria, mas sim para ser exposta, sem condições asseguradas, num local no hotel como elementos decorativos. Sei que a solução ideal não será ter a coleção fechada no Museu dos Coches ou na sua reserva e que ela deveria, poderia pelo menos, estar exposta, estudada e divulgada, em Alter do Chão, mas havendo a possibilidade de o fazer num núcleo museológico com as devidas condições. Não está aqui em casa da transformação da coudelaria através do investimento hoteleiro, está sim em utilizar uma coleção de um museu do Estado para fins decorativos apenas. O investimento na coudelaria e a sua transformação num hotel parece-me apropriado e, parece-me, que o disse claramente no texto. Seria de prever, se assim a Vila Galé o quisesse, a criação de um centro de estudo do cavalo Lusitano, com um museu e coleção associados, que pudesse complementar o turismo ligado à arte equestre. Se o fizessem teriam todo o meu apoio, mas para decoração apenas é utilização indevida da coleção.
Caro Alexandre, agradeço a resposta. Desconheço se as peças iriam servir para decoração apenas, sem respeito pela sua conservação. Como a Coudelaria já tem um espaço museológico e algumas peças fora deste em pequenos núcleos visitáveis (incluíndo de arqueologia, bem interessante) com condições museológicas razoáveis, deduzi que o critério de exposição se alargasse à fruição destas peças cedidas. Enfim, fica a certeza de que a Coudelaria irá prosseguir a sua obra, esperando que esta polémica se esfume e resolva, a bem de uma parte essencial de uma História e Património que é um bem público.