Uma conferência, muitas visões – Juliana Monteiro

Uma conferência, muitas visões – Juliana Monteiro

Minha participação da 26ª Conferência Geral do ICOM, ocorrida entre os dias 20 e 28 de agosto de 2022, foi marcada por várias emoções. Talvez a mais evidente delas era a boa sensação de estar participando de uma conferência como esta pela primeira vez, em uma cidade tão encantadora quanto Praga. Para todos os efeitos, posso dizer que nunca havia estado em um evento da área de museus tão grande e com tantas pessoas de diversos lugares do mundo no mesmo lugar. 

A perspectiva de poder conhecer novas realidades museológicas foi outro fator que me fez sempre estar muito atenta a todos os aspectos da conferência – e principalmente participar das sessões específicas dos comitês.

É importante dizer que fui à conferência com uma questão que me acompanha há um certo tempo: como a discussão sobre a decolonização de práticas documentais está acontecendo ao redor do planeta? Estaria esse assunto bem resolvido em algum lugar distante da realidade que conheço melhor, que é a brasileira?

Ao longo dos dias da conferência pude constatar que, de fato, esse tópico é algo que está na agenda de muitos profissionais. Entre as sessões dos comitês que pude acompanhar, como as do COMCOL e CIDOC, bem como do ICMEMO, pude verificar que muitas estratégias têm sido pensadas e colocadas em prática para repensar o museu na sociedade de hoje.

Muitos projetos e iniciativas que buscam colocar as comunidades no centro das ações, em processos que visam o compartilhamento de ações e visões, parecem ser, de fato, uma das propostas mais contundentes para a decolonização. Porém, como também pude perceber nas muitas falas que tive oportunidade de ouvir, tal processo é algo que não vai acontecer do dia para noite.

A revisão do papel do museu, com sua progressiva abertura ao maior diálogo com a sociedade e seus diferentes grupos, passa pela construção da confiança entre todos os e as agentes envolvidos. Isso acarreta uma série de mudanças estruturais principalmente dentro dos museus, que devem se tornar, de fato, instituições mais democráticas e afeitas a um diálogo franco, não fugindo da tensão e da divergência, com as pessoas. 

Tal perspectiva está, a meu ver, muito alinhada com a nova definição de museu que foi sancionada durante a conferência. Aliás, é necessário dizer que foi uma grande emoção estar presente no momento de sua aprovação formal. Ver todo o auditório do espaço onde estava acontecendo a conferência celebrando a nova definição, que teve no grupo de coordenação a participação de um brasileiro, professor e museólogo Bruno Brulon, foi um momento muito marcante! Agora, cabe a nós sabermos como a definição será aplicada em todo o mundo e que impacto as novas palavras que agora dela fazem parte causarão no cotidiano das instituições.

Aspeto da conferência

Também não posso terminar esse breve relato sem mencionar a mesa que tive oportunidade de participar como ouvinte sobre os 50 anos da Mesa Redonda de Santiago do Chile. Composta em sua maioria por profissionais advindos da América Latina, com a presença de uma profissional canadense, muito se discutiu sobre a importância de avaliarmos o significado contemporâneo que a declaração decorrente da Mesa Redonda ainda tem. Longe, portanto, de apenas um sentimento de nostalgia, mas com muito afeto envolvido, a Mesa Redonda nos mostra ainda o quanto é importante discutir a função social dos museus, em particular em tempos tão turbulentos politicamente na América Latina. 

Assim, termino o presente texto com a visão de que muito tem se feito em prol de melhores museus, mais abertos, democráticos, abertos à diversidade e pluralidade sociais. Porém, muito ainda há que se fazer e o ICOM é mais uma das instâncias que estarão presentes – cabendo a nós, profissionais, em seus respectivos cotidianos, contribuir diretamente para tal cenário. 

 Juliana Monteiro

Juliana Monteiro é Museóloga freelancer e professora no Curso Técnico de Museologia — Etec Parque da Juventude em São Paulo, Brasil.

Pare, escute e olhe – Maria José de Almeida

Pare, escute e olhe – Maria José de Almeida

Fui a Berlim à ópera. Fui também para conhecer a cidade, fui também para ver museus.

Vi uma exposição sobre Wagner “e o sentimento alemão” (seja lá como melhor se traduz Richard Wagner und das deutsche Gefühl). O amigo com quem vi a exposição, e cantou na ópera que ouvi nessa noite, explicou-me que foi com Wagner que começou esta coisa de apagar as luzes ao público e mandá-lo estar calado até que a obra chegue ao fim.

Não sabia disso. Sabia que a ópera, e o teatro também, quando começou e até ao séc. XVIII era uma badalhoquice: o pessoal comia, bebia, punha a conversa em dia e fazia negócios de vária índole. Não fazia ideia que tinha sido com Wagner que a coisa mudou. Mudou nos meios intelectuais e burgueses, claro, os espetáculos populares continuaram (continuam?) a ser assim: vai-se pela festa e de vez em quando presta-se atenção ao que se passa no palco.

Enquanto víamos a exposição, disse ao meu amigo que de alguma forma era mais honesto antes. Não ia ninguém ao engano nem ficava lá por obrigação. E punha os compositores (e encenadores e intérpretes) a esforçarem-se mais. Sabiam que tinham de captar a atenção do público. Se havia momentos no decurso do espetáculo em que diminuía o volume das vozes, em que mais cabeças se viravam para o palco, em que mais gente ficava atenta e depois até aplaudia… então era porque o trabalho deles era bom. Vamos ser honestos: se Wagner não tivesse imposto esse novo comportamento na ópera, quem aguentava as cinco horas dos Mestres Cantores de Nuremberga sem dar uns goles numa caneca de cerveja, comentar o assunto do dia ou ir lá fora verter águas?

Curiosamente a produção de Einstein on the Beach a que assisti no Festival de Berlim recuperou qualquer coisa dessas óperas festa. Sabia desde que comprei o bilhete que as quase quatro horas de espetáculo não iam ter intervalo mas que podíamos entrar e sair individualmente e mover-nos livremente em cena. Dois dias antes, recebi uma mensagem com instruções mais específicas, que falava do palco rotativo, que dizia que seria simpático mudar de lugar frequentemente para que todos pudessem usufruir de todas as perspetivas possíveis. E com pormenores muito práticos: por razões de segurança, por favor mantenham os sapatos calçados.

Tinha informação privilegiada, sabia quais as partes em que seria mais interessante estar perto dos cantores e atores em palco, que devia pelo menos uma vez sentar-me no centro da plateia. E também quando seriam os momentos melhores para sair, se fosse preciso. Não foi. Fiquei todo o tempo dentro da sala, mudei de lugar muitas vezes, fiquei agarrada à música e ao movimento, muitas vezes junto do fosso da orquestra com todos os sentidos a absorver a direção rigorosa e emotiva (ah, pois não, não são antónimos!) de André de Ridder. Estive 3:35 sempre atenta.

E porque falo eu de ópera num texto a divulgar num blog de museus? Porque me lembrei imenso disto quando visitei o Pergamonmuseum e o Neues Museum. Foi no último dia, já sozinha, confesso que fui com algum sentimento de obrigação. Visitei outros museus em Berlim que são muito mais o que procuro: sobre uma coisa e não sobre todas as coisas ao longo do tempo e com a escala certa para não ficar de rastos no primeiro terço da visita. Falo da Coleção Scharf-Gerstenberg e de Casa Waldsee, por exemplo. Mas sim, tenho que admitir que seria uma parvoíce não ver as portas de Ishtar e as do mercado de Mileto. E hei de voltar quando puder ver o altar de Pérgamo.

Mas vi estes museus da ilha como o pessoal ia à ópera no séc. XVII: muito mais interessada nos visitantes que lá estavam, nos guardas, nos pormenores da museografia, na vista das janelas, nos interiores dos edifícios… do que nas peças. Há peças emocionantes, sim, mas precisava de viver em Berlim ter um passe anual dos museus (sim, existe, e custa 25€, façam lá as contas à percentagem que isso representa em relação ao rendimento médio alemão) e ir lá todos os fins de semana e alguns fins de tarde. Mesmo o museu da fotografia, que é temático e é um tema dos meus, tem uma escala demasiado grande.

Assim, passei por algumas das coleções mais extraordinárias do mundo como cão sobre vinha vindimada. Parei algumas vezes. Como nas óperas quando havia uma área mais doce ou mais virtuosa ou um bailado mais exuberante que desviava a atenção da perna de frango e da toilette dos vizinhos. Parei numa exposição minúscula entalada entre salas com peças estrondosas. O título foi o chamariz: Nabodocudonozor sob o socialismo. Hã? Primeira campainha. Segunda campainha: o texto de entrada que acaba com um parágrafo com três perguntas.

E ali fiquei. A perceber o papel que o Vorderasiatisches Museum teve no contexto da Alemanha dividida. Como a RDA usou o museu para afirmar a importância da cultura na construção de uma sociedade socialista. E tudo isto contado com recurso a objetos nada estrondosos mas de enorme valor documental para contar essa história. Um desses objetos os vídeos feitos pela televisão estatal sobre as atividades do serviço educativo do museu. Que vi na íntegra.

O que nos faz parar e prestar atenção é certamente diferente para cada um de nós. Haverá quem seja sensível à beleza. Haverá quem seja sensível à singularidade. E uma peça de museu pode ser bela e singular e valer só por isso mesmo.

Não sou insensível à beleza nem à singularidade mas para que elas me emocionem numa peça de museu tenho que ter tempo ou espaço para apreciar essas características como valores absolutos. Uma peça de cada vez.

Ainda assim, o que me faz mesmo parar e prestar atenção é uma boa história. Se for contada com  recurso a objetos belos e singulares, tanto melhor. Mas não precisa. Precisa de ser bem contada, com um objetivo definido e uma estrutura que o sirva na transmissão da mensagem.

Nos museus, na ópera e em tantas outras formas de criação.

The day with its cares and perplexities is ended and the night is now upon us. The night should be a time of peace and tranquility, a time to relax and be calm. We have need of a soothing story to banish the disturbing thoughts of the day, to set at rest our troubled minds, and put at ease our ruffled spirits.

And what sort of story shall we hear? Ah, it will be a familiar story, a story that is so very, very old, and yet it is so new. It is the old, old story of love.

Einstein on the Beach

Knee Play 5: Bus Driver: Two Lovers (Text written by Mr. Samuel M. Johnson)
 Maria José de Almeida

Maria José de Almeida é Doutora em Arqueologia pela Universidade de Lisboa.

Até 2016 trabalhou nos municípios de Santarém e Cascais, desenvolvendo ações de arqueologia preventiva e gestão de coleções de bens arqueológicos. Foi responsável pela implementação do Sistema de Informação dos Museus de Cascais e coordenou a integração do mesmo na plataforma de Sistema de Informação Geográfica da autarquia. Fez parte dos corpos gerentes da Associação Profissional de Arqueólogos (APA) desde 2002, tendo sendo presidente da direção no triénio 2007-2009. É membro do Grupo de Trabalho Sistemas de Informação em Museus da Associação Portuguesa de Bibliotecários, Arquivistas e Documentalistas (BAD).

Atualmente integra a equipa da Direção de Serviços de Inovação e Administração Eletrónica da Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB).

Curriculum detalhado aqui.

As mãos vêem [e os sistemas de informação ajudam] – Maria José de Almeida

As mãos vêem [e os sistemas de informação ajudam] – Maria José de Almeida

Faço sempre isto com as bases de dados que consulto pela primeira vez: procuro uma coisa que conheço bem, que sei que lá está ou tenho a expectativa que esteja. Testo as funcionalidades de pesquisa e exploro a partir daí.

História das Exposições de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian. Vamos a isto.

Insiro os termos na caixa de pesquisa que aparece na página de entrada: as mãos vêem.

“Não encontramos resultados para a sua pesquisa.…” [assim mesmo, com quatro pontos]. Siga então para a pesquisa avançada. Não é muito linear, essa opção não me aparece na página onde estou e me dizem do insucesso da minha pesquisa. Mas eu tenho anos disto.

Separador “Explore” [se eu não tivesse anos disto, seria fácil perceber que é aqui que encontro a pesquisa avançada?]. Quero encontrar uma exposição, é isso que escolho. Cá está ela, a pesquisa avançada por atributos e logo a primeira caixa  tem preenchido por defeito que o campo a pesquisar será “título”. É isto mesmo:  as mãos vêem.

1 registos

As Mãos Vêem

1980 / Itinerância Portugal

Primeiro choque, antes mesmo de seguir a ligação: 1980?!

Não há dúvida na página seguinte:

3 mar 1980 – mar 1980

Fundação Calouste Gulbenkian / Museu Calouste Gulbenkian – Galeria de Exposições Temporárias

Lisboa, Portugal

Em Abril já estava no Porto.

Em Março de 1980 eu ainda não tinha feito 10 anos. Como é que eu me lembro tão bem desta exposição?!

Lembro-me muito bem desta exposição.

Lembro-me que era uma exposição para cegos. Dizíamos assim, claro, a minha mãe tinha alunos cegos no Passos Manuel, a antiga casa do reitor era onde funcionava o gabinete de apoio aos cegos. Lembro-me de ajudar a minha mãe a preparar as aulas de geometria para esses alunos. Alguém lhe dever ter dito que era uma boa ideia, talvez as pessoas que trabalhavam na casa do reitor, e ela reproduzia: umas placas de cortiça onde se espetavam alfinetes onde se queriam os vértices das figuras e depois esticavam-se fios para as desenhar. Assim os alunos cegos podiam ver com as mãos, tacteando os fios, e fazer os mesmos exercícios que os outros que viam com os olhos. Eu gostava de esticar os fios, escolhia cores diferentes por figura. Imagino que hoje se ensine geometria a crianças invisuais de outra forma e que os professores tenham formação específica mas, muito provavelmente, continuam a trabalhar em casa com as suas próprias crianças a ajudar na preparação de (outros) materiais didáticos.

Não sei se a minha mãe nos levou a ver esta exposição porque tinha essa experiência de ensino ou se nos levou porque nos levava a todas as exposições que havia em Lisboa. Não eram muitas por essa altura.

Fomos e eu lembro-me muito bem. Vendavam-nos à entrada, nós seguíamos pela mão dos monitores (monitoras?) e íamos a muitos sítios diferentes. Lembro-me de estar numa quinta, sentir grãos de feijão num saco, o cheiro do rosmaninho.

Lembro-me, sobretudo, que no fim nos tiravam a venda e nós íamos de olhos abertos aos mesmos sítios onde tínhamos estado. Lembro-me que eram uns caixotes muito feios, os cheiros eram essências nuns frascos pequeninos.

Confrontando a minha memória com a descrição que está nesta base de dados, não consigo de todo fazê-la bater certo com as sete secções que a compunham: para mim se havia alguma compartimentação era por tipologia de espaço. Segundo o arquivo havia uma “Cidade” mas não havia nenhuma “Quinta”. A memória do saco de feijão (ou grão?) seria na secção “Enterrar”? Já os cheiros… podem ter sido em qualquer uma. Também não me lembro de ser conduzida por uma corda, mas sim por pessoas, e muito menos do “tabuleiro-carrilhão musical de oito notas que se tocava com os pés, marcando a passagem sonora de cada pessoa”. As imagens que são disponibilizadas da exposição mostram-me que os caixotes não eram assim tão feios.

Se a Fundação Gulbenkian não tivesse decidido disponibilizar publicamente este arquivo ficava só com as minhas memórias, que não são nem certas nem erradas. Mas poder confrontá-las com este sistema de informação deu contexto à minha memória. A começar pela data de realização. Saber que tive esta experiência quando tinha apenas 9 anos é importante para mim. É importante também saber que não foi só a mim que esta exposição impressionou, porque aqui se fala do impacto social que provocou num país tão diferente do que é hoje. Mas, acima de tudo, é importante que aqueles que não têm nenhuma memória desta exposição possam vê-la sem a ter visto.

E isso está diretamente ligado com a minha memória mais forte e significativa. O momento em que vi com os olhos o que tinha visto com as mãos foi de espanto e revelação: podemos estar em sítios sem estar.

Quarenta anos depois, percebo que se calhar esta exposição é mais definidora da minha ideia de museu do que todos as outras que visitei, em cujas equipas trabalhei ou que concebi. Definitivamente muito mais do que tudo o li ou ouvi sobre museus.

Passo a vida a dizer isto: o que me interessa é a informação, a história que se conta, a memória que se constrói, não há um valor absoluto na materialidade das coisas. O que é isto senão a exposição que vi, em março de 1980, na Fundação Calouste Gulbenkian?

 Maria José de Almeida

Maria José de Almeida é Doutora em Arqueologia pela Universidade de Lisboa.

Até 2016 trabalhou nos municípios de Santarém e Cascais, desenvolvendo ações de arqueologia preventiva e gestão de coleções de bens arqueológicos. Foi responsável pela implementação do Sistema de Informação dos Museus de Cascais e coordenou a integração do mesmo na plataforma de Sistema de Informação Geográfica da autarquia. Fez parte dos corpos gerentes da Associação Profissional de Arqueólogos (APA) desde 2002, tendo sendo presidente da direção no triénio 2007-2009. É membro do Grupo de Trabalho Sistemas de Informação em Museus da Associação Portuguesa de Bibliotecários, Arquivistas e Documentalistas (BAD).

Atualmente integra a equipa da Direção de Serviços de Inovação e Administração Eletrónica da Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB).

Curriculum detalhado aqui.

Francisco Barbedo. In memoriam – Maria José de Almeida

Francisco Barbedo. In memoriam – Maria José de Almeida

Um dia recebi um email assinado por alguém que não conhecia e se identificava como técnica superior da DGLAB. Tinha lido um artigo que eu tinha publicado e queria saber mais sobre a forma como aplicava o modelo de dados CIDOC-CRM à informação arqueológica.

A primeira reação que tive foi a óbvia: mas alguém lê a literatura cinzenta que nós escrevemos?! Depois, respondi a medo: talvez o texto tivesse dado uma dimensão à coisa que ela não tinha, tratava-se singelamente da metodologia que estava a aplicar no meu trabalho de doutoramento, um assunto muito específico, ainda por cima não integrado em nenhum projeto para além do académico e sem qualquer enquadramento institucional. Mas ficava muito contente com o interesse da DGALB na aplicação da ontologia e, sobretudo, na valorização da normalização no tratamento de informação de índole cultural. Enviei a resposta com a certeza de que o assunto ficava fechado. Não ficou. Pouco tempo depois tenho na caixa de correio uma nova mensagem, da mesma pessoa, a dizer que sim, tinham percebido tudo o que eu dizia, mas gostavam de conversar comigo para a profundar o tema, se eu tivesse disponibilidade de me deslocar ao edifício da Torre do Tombo até podíamos marcar uma reunião.

Acho que estava de férias, ou a usufruir da jornada contínua ao abrigo do estatuto de trabalhador estudante, e lá fui numa tarde qualquer. Fui recebida pela pessoa que me tinha enviado o email, pelo chefe dela e por um outro elemento da equipa. A conversa foi animada, interessante, há muito tempo que não falava com pessoas que entendiam tão bem a forma como eu acho que se deve tratar a informação. Quando saí, a caminho do metro, telefonei ao Alexandre: “Ó pá, isto foi muito estranho, eles queriam mesmo saber o que eu penso, queriam mesmo discutir a aplicação do CIDOC-CRM! Juro que não percebi nada do que acabou de acontecer…”

Demorei um bocadinho a perceber. Houve mais trocas de emails, de bibliografia, conversas, até ao momento em que eu disse ao Francisco Barbedo: mas o que é que vocês precisam? Uma instituição ou uma pessoa? É que se precisam de uma instituição eu não vos posso ajudar, não represento coisa nenhuma; se precisam de uma pessoa, esta pessoa é funcionária pública e está disponível para vir trabalhar convosco se quiserem iniciar um processo de mobilidade. Nesta altura o Francisco já tinha nome, já não era “o chefe da pessoa que me mandou um email”. E foi só quando o Francisco passou a ser o meu chefe é que eu percebi o que se passava na Direção de Serviços de Inovação e Administração Eletrónica (DSIAE) da DGLAB.

Imagem: Cecília Henriques

É engraçado que quando cheguei à DGLAB, em Outubro de 2016, já levava 20 anos de administração pública e uma boa dose de diferentes chefias. E nunca me referi a elas como “o meu chefe”, achava até um bocadinho parola a expressão. Talvez porque a nenhuma das minhas chefias eu reconheci capacidade de liderança, nunca achei que fizessem alguma coisa que qualquer outra pessoa não soubesse fazer e, infelizmente em alguns casos, provavelmente melhor. Mas não era esse o caso do Francisco. Ele foi o meu chefe no melhor sentido que a palavra pode ter. Aliás, no único sentido: se não for nesse, não se deve usá-la. Não é uma questão de parolice, é rigor semântico.

Aquilo que eu achei estranho no contacto inicial que tive com a DSIAE percebi muito bem depois. O Francisco era assim. Mas sobre isso eu não sei nada!… Então mas não há ninguém a trabalhar isso? Há uns tipos do sítio tal, mas… Veja lá isso, investigue, pergunte-lhes se for preciso. Nunca eu tinha tido uma chefia que me mandasse estudar. Estudei, aprendi. E muito mais que conhecimento técnico. Aprendi como se pode respeitar profundamente uma equipa de trabalho de uma forma subtil e eficaz. Aprendi o comprometimento com a coisa pública no sentido mais nobre que pode haver: porque sim, porque é para fazer bem porque é para todos. Tão simples quanto isso.

Como se isso não bastasse, o Francisco tinha sentido de humor. E é uma bênção trabalhar com alguém com sentido de humor. Humor também subtil, o que levava frequentemente o interlocutor à dúvida da seriedade da conversa e aumentava a saudável gargalhada quando se desfazia o equívoco. Nos primeiros tempos na DGLAB, o Francisco sugeriu-me que eu passasse uns dias em cada serviço, dos que estão sediados na Torre do Tombo, para perceber o seu funcionamento e aquilo que cada um deles precisava dos sistemas de informação. Aceitei com entusiasmo, também nunca tinha sido recebida assim nas muitas mudanças que fiz. Sempre que me apresentava em cada sítio, toda a gente, ansiosa que estava (está?) pela integração de um técnico superior de informática, achava que era essa a minha especialidade. Não é nada informática, é arqueóloga, esclarecia ele. E havia ali um momento absurdo em que eu continuava a ser interrogada como técnica de informática, porque os outros achavam que isso era uma piada, eu tentava explicar que não era, com a atrapalhação dos primeiros dias, e o Francisco continuava lançar achas para a fogueira da confusão, a divertir-se tanto com a minha atrapalhação como com a incredulidade dos interlocutores.

Mas é mesmo verdade: eu sou a arqueóloga que o Francisco trouxe para a DGLAB. E tenho um orgulho imenso nisso. Tenho um orgulho imenso em trabalhar numa das poucas entidades da administração pública portuguesa que levou o PGTIC a sério e em participar no processo de transição tecnológica para aplicações de código aberto. E na preservação digital, e no novo modelo de dados e em tantas outras coisas em que o Francisco se emprenhou e deixou uma marca indelével.

O dia 4 de Setembro foi o meu último dia de trabalho antes de um longo período de férias, marcadas em pleno confinamento a imaginar que este mês de Setembro podia ser muita coisa que não foi. Passei pelo gabinete do Francisco ao fim da tarde. Sobretudo para lhe dizer que não esperasse por mim para marcar as reuniões com os serviços que me calhavam nos testes das interfaces do novo sistema; àquela distância não tinha nenhum compromisso previsível e era importante começar a sincronizar as atarefadas agendas de toda a gente em Outubro. Como habitualmente, o Francisco disse para não me preocupar, que fosse de férias e gozou com o meu relógio de enfermeira. Perguntou-me se ia para fora, expliquei que tinha desistido de ir a Itália com receio de ficar presa em trânsito por qualquer alteração de regras de circulação entre países e que ia para a região do Alentejo que pior conheço, o litoral. Mas não vai escavar, pois não?, atirou-me com uma gargalhada. Não, claro que não, já me deixei disso há muito tempo, vou passear na praia e nas arribas. Muito bem, muito bem.

Foi uma boa conversa de despedida, vou guardá-la assim, com a gargalhada e os sorrisos. Não podíamos saber que não voltaríamos a estar juntos na mesma sala, acho que isso é uma coisa boa, ainda que a ausência me continue a doer. Aquele chavão do “não há ninguém insubstituível” não é verdade. O Francisco não se substitui. Tive um dos maiores privilégios na vida ao conhecê-lo. Agora só posso honrar-lhe a memória e tentar fazer como ele fazia. O que implica ser melhor profissional do que alguma vez fui. Devo-lhe isso.

E agora – Inês Fialho Brandão

E agora – Inês Fialho Brandão

Isto é difícil. 

Para quem trabalha em museus por vocação, a ordem de fechar portas imediatamente por um período indeterminado, mesmo se antecipada, é um choque emocional. Para a maioria de nós esta é a primeira vez que uma emergência destas acontece. 

Não temos escolha senão recompormo-nos rapidamente porque o encerramento sine die de uma instituição que existe porque há objetos a cuidar para os poder mostrar aos outros da melhor maneira que sabemos requer um sem fim de ações para acautelar a segurança e conservação de bens, instalações e equipas.  (Bendito plano de emergência).

A mim, a ordem chegou na sexta-feira ao principio da tarde. Como o nosso museu/centro de investigação é fisicamente pequeno – e como temos um plano de emergência – foi relativamente rápido. Esvaziar vitrines. Guardar stock de loja. Certificar-nos que não ficam lixos orgânicos para trás. E os outros procedimentos que não devem ser detalhados aqui. 

O esvaziar de vitrine foi o mais difícil – o coração fica apertado porque é tão contra-natura, retirar os objetos, e as histórias, que mais representam aquilo que temos para contar. E que vão ficar guardados, sozinhos, longe do olhar, durante sabe Deus quanto tempo. Porque de algum modo os objetos, e as histórias, que contamos deixam de existir, ou pelo menos de ser relevantes, se as nossas portas encerram.

Estantes vazias

No meu caso particular, a rapidez de decisão e de execução, bem como a impermanência das decisões lembraram-me os dias a seguir ao 11 de setembro, quando as politicas públicas mudavam de hora a hora, de acordo com a informação mais atualizada. E é mesmo assim. Por mais emocionalmente destabilizante que seja este viver em fluxo, é mesmo assim, porque o que sabemos muda rapidamente. 

Vitrine vazia

E agora? Agora que as salas estão fechadas, que as luzes estão no ‘modo segurança’, que os alarmes estão ativados. O que fazemos? Qual é o nosso ‘novo normal’, para nós que trabalhamos nos museus por vocação?

Nas próximas semanas, uns vão estar em teletrabalho, outros de baixa parental a 66%, ou a 33% dos recibos verdes, ou nas instalações fechadas ao público. O tempo vai ter uma qualidade diferente – abrem-se as possibilidades enquanto simultaneamente um nó na garganta (no meu caso, uma vontade absurda de ir correr pelo meio da rua a gritar ‘vamos todos morrer!’, que controlo a escrever textos como este), um nó na garganta, dizia, nos vai minando a vontade de fazer qualquer coisa com significado com este tempo diferente que agora temos nas mãos.

CUIDAR

Cuidar as equipas. 

Enquanto técnica superior com funções de coordenação (a bom entendedor…) eu dou o exemplo. Por isso, contacto regular com a equipa, actualizando a informação que recebo. Seja por SMS (que prefiro) ou por grupo de whatsapp. Distribuir tarefas, projetos e/ou leituras para quem está em teletrabalho, adaptado às suas funções e aptidões.  Acima de tudo, estar presente, acompanhar e ouvir as equipas, as suas inquietações, transmitir-lhes esperança e uma atitude criativa e o mais positiva possível. 

E esperar pouco, porque as minhas prioridades não têm necessariamente que ser as deles. 

Cuidar a comunidade.

O museu tem visitantes regulares? Alguns mais velhos? Estão bem? Têm companhia? Precisam de alguma coisa?

No equipamento que coordeno temos a sorte – e o privilégio – de contar com um público regular, que, em muitos casos, conhecemos pelo primeiro nome. Por isso, um simples mail pessoal, a dar conta da nossa disponibilidade para ajudar com uma ida ao supermercado ou à farmácia, deixa-me mais tranquila e renova junto dos nossos visitantes que eles são importantes para nós. 

Aqui, ninguém fica para trás. A não ser que queira, claro. 

Cuidar-se a si. 

O isolamento social não é pêra doce. Desenvolve-se aquilo a que se chama ‘febre de cabine’. É fácil ficar obcecado com o museu, o cuidado, as coleções, os protocolos que funcionaram bem ou mal, os outros que fizeram ou não. Por isso, limite nas horas em frente ao computador, limite nos emails e grupos de whatsapp a discutir o que não interessa e só nos aumenta a ansiedade. 

Comer bem, ao longo do dia. Dançar o Father Figure de roupa interior ‘na privacidade do lar’. Estar gratos porque, bem vistas as coisas, somos uns sortudos na lotaria da vida. E DORMIR – à noite e, se possível, a sesta. 

Tenho sorte, porque tenho um petiz que não me deixa ficar a moer nada sozinha durante muito tempo. Há brincadeiras a ter, beijinhos a dar, cócegas a fazer (e birras a gerir). E como ele se levanta tempranillo, não tenho escolha senão deitar-me e dormir o mínimo para conseguir funcionar no dia seguinte. 

INVESTIGAR

Agora é que é! 

Sem as pequenas – ou grandes – interrupções do quotidiano de um museu, este é o momento para começar aquele projeto de investigação tão adiado – a história de um objeto, o estudo de visitantes, os possíveis mecenas, os planos de comunicação… 

Melhor ainda é fechar os artigos, livros, recensões pendurados desde sabe-se lá quando. Para quando voltarmos ao trabalho, virmos com o caderno de encargos um bocadinho mais leve. (A minha listinha é longa: guião de exposição, perfis biográficos, artigo para a Revista Museus, e fechar artigo sobre Karl Buchholz). 

APRENDER

Que se aproveite este tempo suspenso para aprender qualquer coisa (levante a mão quem sabe criar uma tabela dinâmica no Excel). Não faltam cursos online e gratuitos para ganhar aptidões desejadas – seja na prática museológica, ou nas competências de apoio que nunca nos apetece aprender. 

Os documentários e podcasts, também eles gratuitos e online,  debruçam-se sobre temas específicos da pratica museológica de hoje – o que nos move? De que é feito o futuro dos museus? Dos Museopunks ao Lugar da Mediação, são muitos os profissionais de museus que param para repensar o que fazem e como o fazem. 

PARTILHAR

museu fechado aviso

Estamos encerrados, não ausentes. Por isso, há que manter a existência do museu, da sua colecção, das suas histórias, da sua identidade, no quotidiano colectivo. A partilha online de conteúdos – imagens, vídeos, textos, sons – nas plataformas à nossa disposição é uma oportunidade. De mantermos o contacto com os públicos que já são nossos, mas também de os alargarmos e, no melhor dos cenários, diversificamos. 

Inspiremo-nos no que os nossos colegas das artes performativas já estão a fazer, e programemos online – conferências, cursos, testemunhos, apresentações. Conteúdos formais e informais. 

Para que os públicos tenham saudades do museu – das coleções e das pessoas – e regressem, quando este normal voltar à anormalidade, com expectativa, curiosidade, voltar de ver ao vivo aqueles e aquilo que ficaram a conhecer um pouco melhor durante o isolamento. 

GIZAR

No quotidiano da vida de museu, falta muitas vezes o tempo para avaliar, repensar, abandonar caminhos e construir estratégias. Pois que seja este esse tempo, de tudo reavaliar. O que é que eu posso fazer de significativo e útil? Que lixo – burocrático, procedimental, emocional – é que não quero continuar arrastar comigo quando regressar? Quais são os valores essenciais e não-negociáveis naquilo que fazemos?

E agora, claro, o disclaimer: nada disto é obrigatório. Nenhum profissional de museus tem que passar as próximas semanas a repensar tudo isto. E nada de mal virá ao mundo se não o fizer. 

Consigo já ouvir algumas vozes – ‘não sou pag@ para isso!’. Sim, sim, eu também não.  

Mas, como disse, este texto é para o pessoal da vocação. E entre andar pela rua em pânico e aos gritos ou fazer uma lista de boas intenções, concretizando apenas algumas, escolho a segunda hipótese. 

Há umas semanas li uma definição sobre o que é a vida, de que gostei muito. (não me lembro da fonte, para mal dos meus pecados). 

A vida é  saber quem somos, ajudarmos os outros, e não sermos parvalhões.

 Inês Fialho Brandão

Inês Fialho Brandão coordena um pequeno museu na área da Grande Lisboa. Investiga as biografias de refugiados em Portugal durante a Segunda Guerra Mundial, a proveniência de obras de arte durante a era Nazi, e as questões de ética que estão subjacentes a estes temas, sobre os quais é palestrante convidada em universidades e escolas secundárias. Trabalhou extensivamente enquanto profissional de museus e curadora. Os seus projetos relevantes incluem ‘Olhares Cruzados sobre Arte e Islão’ (2008); ‘Colecionar para a Res Publica’ (2011); e ‘O Legado Judaico em Portugal, exposição em Cascais’ (2018).

É licenciada em Historia e Historia de Arte pela Universidade de Edimburgo, mestre em Estudos Islâmicos e Museologia pela Universidade de Nova Iorque, e doutoranda em Historia pela Universidade Nacional da Irlanda. Foi bolseira da Fundação Calouste Gulbenkian, da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, e da Fundação para a Ciência e Tecnologia.

O porta-chaves do meu pai e o paradoxo do Museu da Acrópole – Maria José de Almeida

O porta-chaves do meu pai e o paradoxo do Museu da Acrópole – Maria José de Almeida

O meu pai usou sempre o mesmo porta-chaves. Daqueles de bolso, em cabedal, que se fecham com duas molas e lá dentro têm um suporte metálico para vários ganchos, dispostos lado a lado. Sabem a que me estou a referir, sobretudo se forem da minha ou da geração anterior.

Lembro-me muito bem dos gestos do meu pai associados a esse porta-chaves. Ao aproximar-se da porta, tirava-o do bolso, abria, escolhia a chave pretendida e puxava o respetivo gancho na vertical para a  destacar das outras. Enfiava a chave na fechadura, rodava e, já do outro lado da porta, repetia os mesmos passos por ordem inversa. Mas com variantes nos gestos: para voltar a colocar a chave no sítio, o meu pai dava um pequeno golpe de pulso e a chave saltava para a posição original, batendo nas outras e nos ganchos metálicos com um som muito característico. Só depois pressionava as molas, com um pequeno estalido, para fechar e guardar novamente no bolso. Esta é uma memória visual mas também auditiva. O som do porta-chaves do meu pai era muito diferente do som do grande molho de chaves da minha mãe (presas todas à mesma argola) a ser atirado para cima da arca do hall de entrada. Não precisava de ver, bastava ouvir o som das chaves para saber quem tinha chegado a casa.

Quando os meus pais morreram, no doloroso processo de “desmanchar a casa”, dei com o porta-chaves do meu pai e resolvi ficar com ele. Pus-lhe as minhas chaves e uso-o todos os dias. E todos os dias repito os gestos e os sons do meu pai ao usar aquele objeto.

Porta chaves do Pai da Zé
Porta chaves do Pai da Zé

Acontece que já passou algum tempo, a fadiga dos materiais não perdoa e o porta-chaves está a desfazer-se.

Quando dei conta dos primeiros sinais de degradação (além de me lembrar do conceito de fadiga dos materiais, que certamente aprendi com o meu pai) fiquei triste e comecei a pensar como podia travar o processo ou reparar os danos. Mas trata-se de um objeto de uso quotidiano e os fenómenos físicos são inevitáveis: o porta-chaves, mais tarde ou mais cedo, vai desfazer-se. Outra das coisas que aprendi com o meu pai foi a analisar problemas e encontrar soluções. Este problema tem uma solução simples: vou comprar um porta-chaves novo.

Um porta-chaves de bolso, em cabedal, que se fecha com duas molas e tem lá dentro tem um suporte metálico para vários ganchos, dispostos lado a lado. Um porta-chaves que vou continuar a usar com os mesmos gestos e os mesmos sons e, por isso, o objeto novo vai continuar a ser o porta-chaves do meu pai. Aliás, revendo o que escrevi no primeiro parágrafo, o meu pai não “usou sempre o mesmo porta-chaves”:  aquele que eu tenho agora dificilmente será o mesmo objeto ao qual associo as minhas memórias de infância. O objeto que guardei foi o só o último que ele usou.

Vem o porta-chaves a propósito do necessário debate sobre a restituição de património cultural deslocado, que voltou a ser tema no final de 2018 depois da divulgação de um relatório encomendado pelo presidente francês. Por razões óbvias, este é um tema que não pode ser ignorado pelos museus portugueses e que, também pelas mesmas razões óbvias, se presta a servir de arma de arremesso entre grupos ideologicamente distintos. Naturalmente que neste debate não podemos fazer de conta que somos imunes à ideologia, e muito menos ao contexto sócio-cultural em que vivemos, mas acho que temos obrigação profissional de refletir para além da ideologia.

E, nesse sentido, a minha proposta é começar o debate com uma pergunta: “o que é que valorizamos nos objetos?” Ou, se preferirem, “porque é que é tão importante para mim ter este objeto?” Porque é isso que está em causa quando se discute a posse e, consequentemente, o lugar onde se guarda – e expõe e interpreta – o património de alguém ou de uma comunidade de alguéns.

Podia escolher muitos exemplos para fazer o exercício que me leva à resposta a esta pergunta. Podia escolher a arte africana trazida para Portugal durante o período colonial ou a arte portuguesa levada para o Brasil e para França durante o período das invasões napoleónicas. Se quisesse ficar no universo português. Mas não quero. Vou escolher um caso, literalmente, clássico: os frisos do Pártenon. Até porque, também recentemente, o diretor do Museu Britânico juntou à discussão um novo argumento no mínimo… criativo, vamos-lhe chamar assim.

Vi os frisos do Pártenon  duas vezes: no Museu Britânico em Londres há muitos anos (demasiados!, tenho que voltar) e no verão passado no Museu da Acrópole em Atenas. Para ser rigorosa, vi duas partes distintas de um conjunto que já não existe. E também visitei o local onde o conjunto estava quando existia.

São três experiências muito distintas. A que mais dificuldade tenho em reconstituir é a do Museu Britânico mas, mesmo que a recordasse como se fosse ontem… não foi ontem. Quem viu os frisos do Pártenon em Londres também é uma pessoa que já não existe. Como me lembro pouco, resolvi explorar as ferramentas que hoje estão ao meu dispor para avivar a memória. As imagens correspondem ao que no fundo da memória tinha guardado: espaços amplos e despojados onde as esculturas são valorizadas na sua dimensão estética. Na altura em que visitei o Museu Britânico duvido que desse grande atenção ao contexto, mas se o fizesse agora e quisesse ter essa informação, a história toda está lá explicada. Contudo, quando lá voltar, parece-me que vou novamente ficar mais esmagada pelo impacto visual das peças e do espaço em que estão expostas do que pela história e contexto da coleção.

No Museu da Acrópole a dimensão visual das esculturas e do espaço em que estão expostas voltou a ser um fator determinante na experiência de visita. É um museu do meu tempo, da minha estética, do meu discurso sobre o espaço e o tempo (mais do que me recordo do Museu Britânico). É também, e sobretudo, um museu de sítio. Contaram-me a história da Acrópole, que tem muito mais que se lhe diga que a deslocação dos frisos, e eu gostei muito. Ter visitado o museu no mesmo dia que visitei a Acrópole não foi indiferente: foi mesmo determinante no impacto da visita. Cheguei cedo à Acrópole, à hora da luz bonita, passeei devagar entre as ruínas, senti o vento e o cheiro, ouvi os sons da cidade lá em baixo e dos outros turistas à minha volta. E de lá vi o edifício do museu, que se destaca de uma forma impressionante na malha urbana. Umas horas mais tarde, almocei na cafetaria do museu com vista para a Acrópole, que se destaca de uma forma impressionante na malha urbana.

A minha experiência no Museu da Acrópole teria sido muito diferente se lá estivessem os 47% de friso que estão no Museu Britânico? Provavelmente não. Teria sido muito diferente se o museu fosse noutro lugar? Garantidamente sim.

No Museu da Acrópole o que eu valorizei nos objetos expostos, das esculturas ao modelo da Acrópole em peças de Lego que estava(á?) junto da cafetaria, passando pelos objetos arqueológicos sob o chão de vidro da galeria de entrada, foi muito para além da materialidade dos mesmos. Sim, fiquei arrebatada pela qualidade visual das esculturas mas o que eu gostei mesmo foi de percorrer aquelas galerias de betão a ver o friso como nenhum grego antigo o viu, ao nível dos olhos. E isso até podia ter sido conseguido com uma réplica integral, se calhar com vantagem porque assim podia acrescentar à experiência visual a do tato, passando as mãos por cima daquilo tudo (e garanto que me apeteceu!). Mas a alternância dos originais com as réplicas também me contou uma história – a dos interesses britânicos no mediterrâneo oriental no séc. XIX – assim como a cariátide incompleta montada sobre um suporte de betão me contou outra – a dos violentos confrontos entre gregos e turcos sobre os quais se funda boa parte da identidade grega contemporânea.

Já a deslocalização do museu para outro local transformaria completamente a experiência. O vento, a luz, o cheiro, o som, a textura dos materiais de um sítio não são os mesmos de um outro. A quantidade de fatores que compõem essa materialidade é tão vasta que dificilmente se consegue, noutro local, repetir a combinação que os define. E, definitivamente, a história da Acrópole contada na base da colina da Acrópole fica mais bem contada ali do que noutro lugar. Porque é contada a quem acabou de sentir o vento, a luz, o cheiro, o som, a textura dos materiais… da colina da Acrópole.

O Museu da Acrópole encerra em si um paradoxo: é um projeto do governo grego para acabar de vez com o argumento que os frisos que estão em Londres não podiam regressar a Atenas por não haver condições dignas de exposição e interpretação; ao mesmo tempo, a execução do projeto mostra que os frisos “em falta” não fazem falta para expor e interpretar a história da Acrópole em excelentes condições. Ou pelo menos assim eu achei.

A deslocação de parte dos frisos do Pártenon e a sua integração em diferentes coleções de arte (além do Museu Britânico há outras partes do conjunto original em Paris, no Vaticano, em Copenhaga, Viena,  Würzburg e Munique) é um episódio da história europeia que não desaparece com a devolução e merece ser contado. Está contado no Museu da Acrópole e no Museu Britânico, pelo menos, e a história não fica mais completa nem melhor contada se houver devolução à Grécia dos objetos: a acontecer é mais um episódio que também merece ser contado e, sobretudo, contextualizado. Como os objetos mas também para além deles.

Este exercício, e o porta-chaves do meu pai, demonstram-me que o que eu valorizo mesmo nos objetos são as sensações e a informação que me transmitem. E isso interceta a sua materialidade mas não se esgota nela. Ou, dito de outra forma, a informação e as sensações não dependem tanto do objeto como do observador e do contexto. Ou, ainda mais uma forma!, o objeto não tem um valor absoluto indissociável da dimensão material.

Voltando a uma das formulações da pergunta inicial – porque é que é tão importante para mim ter este objeto? – só posso mesmo responder que… não é. Ou só é importante se eu depender exclusivamente do objeto para ter certa informação ou sensação. Haverá alguns casos em que isso pode acontecer, mas arrisco afirmar que não é frequente. E certamente não é o caso dos objetos que são alvo das recentes polémicas de restituição que tanta emoção têm causado.

Aqui há uns tempos, a propósito da alteração da definição de museu pelo ICOM, escrevia o meu amigo Luís Raposo que “o museu é o domínio do material”. Pois, como lhe respondi na mesma publicação, para mim os museus são o domínio do conhecimento e das emoções. Fundadas em informação e sensações que, volto a repetir, não se esgotam na materialidade dos objetos que expõem. Mas também admito que não é difícil argumentar em sentido contrário. É essa a natureza dos paradoxos.

Metaphysics: Ship of Theseus

https://www.khanacademy.org/partner-content/wi-phi/wiphi-metaphysics-epistemology/wiphi-metaphysics/v/ship-of-theseus

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