A exposição “A Cidade Global: Lisboa no Renascimento” que há tempos teve a cerimónia de inauguração no Museu Nacional de Arte Antiga teve mais destaque na imprensa do que é habitual nas exposições em Portugal, mas infelizmente pelos piores motivos. A questão dos “falsos” quadros que estão na origem da realização da exposição após a identificação dos mesmos por Annemarie Jordan Gschwend e Kate Lowe como uma “uma vista da Rua Nova dos Mercadores, destruída pelo Terramoto de 1755“, não deveria ser, na minha opinião, a questão central! Mas como tem sido, falemos da sua relação com um tema que me é caro: a documentação em museus.
A argumentação dos “falsos”
Eu não tenho conhecimentos para entrar na discussão sobre a veracidade das obras em causa. Não sou historiador, nem historiador de arte e não tive qualquer acesso às fontes ou às obras para me pronunciar sobre as mesmas e, ainda que o tivesse, escusava-me por completo dessa tarefa. No entanto, gosto de uma boa troca de argumentos quando ela é séria e me apresenta factos ou elementos que sustentem cientificamente uma opinião.
A questão é levantada por Diogo Ramada Curto neste artigo no Expresso onde se interroga “Lisboa era uma cidade global?” utilizando a questão das pinturas para, em meu entender, ligar a produção da exposição a uma visão da História que glorifica o passado imperial e descarta uma outra visão, em que se insere, que se insurge contra uma narrativa que vê como colonialista e centrada no umbigo do mundo representada pela metrópole. Eu percebo a questão e a argumentação, ainda que não concorde, mas voltemos aos “falsos”.
Na mesma edição do Expresso, Miguel Cadete, Alexandra Carita e Hugo Franco, publicam um extenso artigo sobre o assunto onde apresentam os argumentos de DRC, acrescentando algum contexto e outros dados, sob o título “Museu de Arte Antiga abre as portas a obras suspeitas”. Título que dava, por si, um tratado sobre o tema que aqui me traz, mas que, por agora me suscita apenas o seguinte comentário: digam-me um museu, um apenas, que não abre a porta a obras suspeitas? Se não abrir deixa de cumprir uma parte do seu trabalho de análise e investigação da cultura material, não?
Após aquele texto, somos brindados com outro intitulado “Conservadores do Museu de Arte Antiga não se entendem“. No mesmo, imagine-se, alerta-nos o Expresso, pela voz de Miguel Cadete, que há dois conservadores do MNAA que não têm a mesma opinião sobre as obras! Imagine-se o pecado mortal de ter na mesma instituição, dois especialistas com opiniões diversas! Coisa inédita, bem sei! Mas ainda assim feliz e que me parece um bom sinal.
Para que se eliminassem todas as questões, e de acordo com o Expresso uma vez mais, são pedidos exames laboratoriais pelas palavras do próprio Ministro da Cultura (não percebo porque teria de ser ele a fazer esta declaração), seguidos de uma declaração do director do MNAA a indicar que a decisão ainda não tinha sido tomada por causa das devidas autorizações e questões técnicas associadas.
No Expresso ainda sai pouco tempo depois um texto de Ramada Curto sobre a forma como aborda a polémica e sobre a intenção de aproveitamento de uma exposição como instrumento político ao serviço de uma ideia que condena e que me parece nada ter a ver com a questão da autenticidade desta ou daquela obra, mas sim com uma visão mais genérica da questões (não era preciso criticar a autenticidade, para defender a sua tese sobre o tema). Um dia depois Fernando Baptista Pereira publica também este texto onde afirma categoricamente que “os quadros não são falsos!”.
Chegados ao dia da inauguração temos casa cheia e uma notícia no expresso sobre a “Lisboa Global”: Uma polémica local. Um título que diz tudo sobre as questões levantadas e sobre a forma irritadiça que a discussão tomou, ao contrário do que deveria ter acontecido. Afinal o debate, a diferença, a argumentação e contraditório deveriam sempre caber no Museu e na Academia, não é?
E agora em que ficamos?
Passada a polémica, poeira bem assente no chão, ânimos mais calmos, esperamos e temos a notícia do resultado dos exames a um dos quadros, O “Chafariz d’El Rey”, pertença de José Berardo, que confirmam a sua autenticidade e, segundo o Expresso, sabemos que o relatório diz o seguinte:
No que diz respeito à análise dos materiais constituintes e da forma como estes são aplicados esta obra terá sido executada muito provavelmente por pintor de influência ou naturalidade do norte da Europa a partir da 2ª metade do século XVI, época em que se verifica o uso generalizado do pigmento azul de esmalte e se começam a utilizar imprimaduras coradas
Confirma-se então que a hipotese avançada por Ramada Curto e João Alves Dias estavam erradas e que a autenticidade da pintura vai de encontro ao que as comissárias e o museu esperavam.
É aqui que entra a importância da documentação. Havia diversos elementos que nos poderiam confirmar a autenticidade do quadro (ou pelo menos apontar para ela) sem recorrer a exames, como podemos ler no texto de Fernando Baptista Pereira, mas estavam eles documentados pelo museu ou pelo proprietário? E das diversas investigações feitas pelas comissárias para o livro e, mais tarde, pela equipa do museu, que dados existem, onde estão registados, podemos chegar a eles de forma simples?
Continuamos a ter um enorme fosso entre a informação que existe (e é tratada nos museus pelas suas equipas técnicas) e o acesso que é dado a especialistas e público de uma forma geral. Para que esse fosso se esbata ou, mesmo, deixe de existir é necessária uma mudança nas políticas museológicas que reflicta as necessidades da sociedade actual. Essa mudança de políticas não pode ser vista de forma circunstancial ou imediata, mas sim pensada para o médio e longo prazo. O acesso a um conjunto significativo de informação dos museus na Holanda e Reino Unido, para citar dois bons exemplos agora muito louvados, não aconteceu da noite para o dia. Exige anos de trabalho e investimento na aquisição de competências e meios. Esta mudança não a vemos debatida no Expresso, infelizmente.
Muito pertinente! Concordo totalmente com o papel da documentação e da importância de a tornar acessível! E sim, o trabalho que isso implica é muito mas devia ser considerada, a meu ver, uma das prioridades nos museus portugueses.
Devia mas é complicado que seja! 🙂