A colecção (meia) desaparecida

A colecção (meia) desaparecida

Trabalho com questões de inventário e gestão de colecções há mais de 20 anos. Sim, eu sei, estou velho! Mas esta velhice, dá-me um pouco de experiência e conhecimento de terreno para vos dizer que a colecção (meia) desaparecida, ou melhor, as 170 obras da colecção SEC cuja localização exacta é desconhecida, não é de todo caso único no país (ou mesmo no estrangeiro, esse local onde tudo é uma delícia de tão avançado que vai)!

Mas vamos por partes. A Colecção SEC, ou melhor, a Colecção de Arte Contemporânea do Ministério da Cultura (a sigla SEC vem dos tempos da Secretaria de Estado da Cultura) é o resultado de várias aquisições do Estado, com o objectivo de criar uma colecção de arte contemporânea que pudesse mexer com um mercado de arte parado e sem grande apoio para os artistas no pós revolução. Quase tudo que me recordo de ler sobre a colecção SEC veio a público quando da polémica da passagem da colecção para a tutela da DGPC e da reversão dessa decisão, ambas feitas pelo Secretário de Estado da Cultura do anterior governo, e que ainda se pode consultar no Público de 25 de Julho de 2015.

As lutas de 2015 pela tutela da Colecção SEC

Em 2015, ao contrário de agora, não se sabia muito bem quantas obras estavam “perdidas”. Agora são 170, mas 170 de quantas? Das 1271 que em 2007 haviam sido registadas quando Isabel Pires de Lima se debruçou sobre o assunto, ou as 1115 que Carlos Moura-Carvalho (director-geral das artes empossado em 2015) indicava à Lusa ser o registo existente e datado de 1992? (ainda segundo o artigo do Público de 25-06-2015). Não me levem a mal, mas não deveríamos todos saber exactamente qual o número total das obras desta colecção?

Deixando de lado estas coisas do número total de obras e das 170, sem localização exacta, lembro-me ainda de uma pergunta que me parece óbvia e que só a Inês Fialho Brandão coloca num brilhante post no Facebook: então e o arquivo de documentação desta colecção não deveria acompanhar a mesma quando da passagem para uma nova tutela? Quando, em 2015, a colecção passou para a DGPC e voltou para a DGA isso aconteceu? E o quando a DGA, antes disso, assumiu a responsabilidade da colecção, houve essa passagem do arquivo e documentação de gestão da colecção para essa nova tutela? Não é só a mim que me parece óbvio que essa documentação deve sempre acompanhar a colecção, pois não? Ou se calhar é…

Estamos naquele momento em que a DGPC, claramente a entidade que deve ter a responsabilidade desta colecção em meu entender, está a recuperar a informação perdida e a actualizar os registos sobre a colecção e sobre o seu paradeiro. A Inês, como poderão ver a seguir, mostra como o trabalho deve ser feito, com a transparência necessária, com as consequências devidas se provado algum ílicito e com a ideia maravilhosa de criar um “procura a colecção SEC” online para que o cidadão dê uma ajudinha… vejam lá aqui o post:

Eu, subscrevendo o post da Inês, acrescento ainda uma outra medida que o Ministério da Cultura deve concretizar (na minha opinião tem a obrigação de concretizar). A criação de um website com toda a informação sobre a colecção SEC, ou seja, um site com a informação sobre as obras incorporadas na colecção, a sua história, autor, contexto, proveniência, estado e localização (pelo menos a instituição responsável) actualizadas que permita a todos, daqui em diante, saber exactamente as informações relevantes sobre o nosso património.

Além desta informação sobre a colecção existente, seria este site o local ideial para nos informar qual o futuro desta colecção e como (ou se) o Estado se quer posicionar no complexo mercado da criação artística, criando uma política para esta colecção que definisse, claramente, a política de desenvolvimento (incorporações e desincorporações, portanto), de documentação, de conservação e salvaguarda e de acesso à mesma. Um sonho não era?

Reparem que não se trata aqui de criar uma nova entidade de gestão desta colecção, nada disso. Apenas criar, dentro da DGPC que tem gente bem capaz para esta tarefa, uma pequena estrutura que pudesse assegurar a gestão da colecção a médio e longo prazo. Se assim não for, daqui a uns anos, após vários pedidos do Sr. Ministro tal e do Sr. Embaixador tal, teremos, novamente, a necessidade de “localizar” com exactidão as benditas obras.

E já agora, partilhar com outros ministérios, embaixadas, câmaras, empresas públicas, etc. que usufruam desta colecção (ou que tutelem ou detenham a responsabilidade por quaisquer colecções públicas) os manuais de boas práticas já criados e, quase sempre, esquecidos (tão esquecido que reparo agora que nunca foi actualizado), outros instrumentos e algumas regras que estamos (o Estado também), por via da lei, obrigados a cumprir. Se precisarem de outros bons exemplos, actualizados o ano passado têm aqui o SPECTRUM e outros recursos da Collections Trust por onde começar a explorar.

Simples ou temos que chamar um Héctor Feliciano?

Reunião de Inverno da direcção do CIDOC – Porto

Reunião de Inverno da direcção do CIDOC – Porto

Nos próximos dias 7,8 e 9 de Fevereiro a direcção do CIDOC realizará a sua reunião de inverno na Faculdade de Letras da Universidade do Porto que muito amavelmente respondeu positivamente ao pedido que fiz para nos receber, tal como seria de esperar, numa instituição que este ano comemora 25 anos do seu curso de museologia (e 100 anos de existência já agora), sendo responsável pela formação de muitos profissionais de museus e, especificamente, na área de documentação e gestão de colecções.

Esta reunião de trabalho anual tem como objectivo a realização de um conjunto de tarefas administrativas, organizacionais e de gestão do comité que se torna mais eficiente porque conta com a presença de grande parte dos membros da direcção e dos responsáveis pelos grupos de trabalho activos do CIDOC.

O CIDOC, como penso saberão, é o Comité Internacional para a Documentação do ICOM (herda a sigla do francês) e tem como objectivo definir e promover um conjunto de recomendações, normas e boas práticas no âmbito da documentação, gestão e divulgação das colecções museológicas. É um dos comités internacionais mais antigos do ICOM, tendo sido fundado em 1950, e conta com uma comunidade de membros, espalhados por todos os continentes, que reúnem em si um conjunto de competências técnicas nas diferentes áreas de especialização da gestão e documentação das colecções.

Nesta reunião do Porto, a par das tarefas normais de organização do trabalho deste comité, como a publicação das comunicações da última conferência, a organização da próxima, do trabalho rotineiro de apresentação e discussão dos relatórios dos grupos de trabalho, entre outras tarefas, teremos uma parte substancial da reunião dedicada à visão estratégica do CIDOC para os próximos 10 anos.

O CIDOC é o comité que escolhi já há muitos anos para trabalhar dentro do ICOM, como todos os comités internacionais do ICOM, tem pontos fortes e pontos fracos, que podem e devem ser debatidos e melhorados, tendo em vista uma resposta mais capaz e eficiente às questões que os seus membros e a comunidade museológica enfrentam no dia-a-dia do trabalho árdulo e inesgotável que é a documentação em museus. Por isso, é como grande satisfação que conseguimos ter em Portugal a direcção do CIDOC a discutir a visão estratégica de um comité internacional que será depois apresentada à votação na próxima assembleia magna do comité na conferência trienal do ICOM em Kyoto. Aliás, mais do que a discutir em Portugal, é para mim uma grande honra e responsabilidade participar nesta discussão e contribuir, com base na experiência de trabalho com um conjunto significativo de museus portugueses, para melhorar o trabalho e resposta do CIDOC às crescentes exigências técnicas, tecnológicas e políticas dos museus e dos seus profissionais no campo da gestão, documentação e divulgação das colecções.

Após a reunião, darei nota aqui sobre os pontos principais da discussão e as linhas mestras do que será a visão estratégica do CIDOC para a próxima década. Entretanto, estejam à vontade para sugerir pontos a discutir ou preocupações que gostassem que o CIDOC reflectisse sobre neste contexto.

Importa, por último salientar, todo o apoio que o ICOM Portugal deu, no seguimento do esforço que tem vindo a levar a cabo para a participação dos seus membros nos comités internacionais, para a concretização da realização deste evento em Portugal.

Museus e crianças (são secas ou não)

Museus e crianças (são secas ou não)

Ando preguiçoso para escrever. Aliás, não é bem preguiça, são um conjunto de tarefas que me ocupam largo tempo e afectam a capacidade de pensar em museus para além do horário de trabalho. No entanto, hoje ao ler este artigo, partilhado pelo Luís Raposo no Facebook há uns tempos atrás, lembrei-me que queria escrever sobre a última visita que fiz com as crianças a dois museus da capital do Reino. Museus e crianças, uma seca valente ou uma oportunidade!?

O pretexto para visitar Lisboa, nas férias com os pais, foi a promessa de uma ida ao estádio para ver o Glorioso. Dessa “visita” poderei falar um pouco numa outra oportunidade, mas devo dizer que a concorrência é muito forte se pensarmos que isto é uma luta entre “outros entretenimentos” (leia-se bola ou parques aquáticos, por exemplo) e museus. A ida ao museu ficou para a manhã seguinte à bola e escolhemos, por sugestão minha, que queria há muito lá ir, o MAAT – Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia. Se não agradasse, teríamos sempre um passeio à beira Tejo com a luz fabulosa de um dia de verão.

Entradas e atendimento

Não vejam este texto como uma descrição da visita ao museu. O foco será a experiência com os meus pequenos, mas não posso deixar de expressar o meu contentamento por dois motivos:

  1. os membros do ICOM são isentos de pagamento no MAAT (o que nem sempre acontece em museus privados);
  2. os pequenos não pagam até aos 12 anos!

Além disso não fui corrido com um “ICOM? O que é isso?” como me aconteceu no início do ano numa outra visita a um outro museu português. Além dos descontos que tivemos, é importante salientar também a simpatia da menina que estava na recepção e a eficiência com que nos recebeu e respondeu às nossas questões sobre o museu e a visita integrada aos dois edifícios (a Central Tejo pode também ser visitada e nós optámos por o fazer).

O MAAT

Uma primeira nota. A famosa onda sobre o Tejo é bonita! Eu e a família gostamos dela, do “rooftop” e da ligação ao rio. A entrada no museu foi divertida. Demos de caras, na galeria oval, com a exposição de Tomás Saraceno e confesso, sem qualquer participação nossa, deixamos as crianças disfrutar o jogo de sombras e luz, as dimensões das obras, a sua disposição, as cores, as suas sombras. Passamos a sala só presos nas brincadeiras e na curiosidade que manifestaram. Certamente seria bom ter alguém, que não eu, a tentar explicar-lhes a exposição, mas para quê? Pergunto eu! Será necessário ou imperativo que lhes expliquemos. Não terão tempo para outras leituras? Não é o contacto com a arte essencial, mesmo sem compreensão imediata?

Exposição MAAT

Exposição MAAT

Após a brincadeira seguimos para a exposição seguinte: Eco-visionários. Aqui a loiça foi outra. Muitos destes conceitos sobre ecologia e a noção do nosso impacto no mundo são ideias que abordamos em casa e na escola. A exposição é muito interessante do ponto de vista criativo e da forma como é desenhada, com um ritmo cativante e que fez com que crianças de 10 e 7 anos a percorressem com quase o mesmo interesse que o pai e a mãe. Uma única nota para a dificuldade que tem uma criança de 7 anos a ler legendas dos vídeos que estavam a passar!

Por fim, chegamos à Pan African Unity Mural de Ângela Ferreira, presente no Project Room e que lhes estimulou os sentidos pela cor. Julgo que foi onde demoramos menos tempo, mas nesta altura já eles (e a mãe) se queixavam do frio nas instalações do museu. Eu estava confortável, mas na realidade estava fresco o ambiente e fez-me lembrar a discussão entre o confronto das obras e o nosso que algumas vezes temos com colegas da conservação.

Acabada a visita ao novo MAAT, seguimos para a “velha” Central Tejo. Já lá não ia há muitos anos e para mim foi um regresso feliz, devo dizer.

A Central Tejo

Interior Central Tejo

Interior Central Tejo

É um dos museus de Lisboa que sempre gostei. Não o disse à família antes da visita para não influenciar ninguém. A oportunidade do bilhete único para os dois museus da EDP deu o mote e lá fomos. A visita faz-se entrando para a enorme sala das caldeiras que estava naqueles dias com uma instalação (com luzes e sons) que não foi muito do agrado do meu filho mais velho. O barulho era perturbador para ele. Eu confesso que gostei, mas tivemos que fazer um esforço para tornar a situação confortável para os meus filhos.

A Central Tejo não precisa de muito para nos cativar. A cada momento imaginamos o que fariam as pessoas que lá trabalhavam, as dificuldades que passavam, os conhecimentos que necessitavam de ter, a capacidade física (em alguns casos), a resistência e, por outro lado, as doenças que uma instalação daquelas provocou, certamente, em muitos dos seus trabalhadores. No entanto, seria bom ter mais alguma informação para ler, ver, consultar de alguma forma sobre o edifício, as máquinas, as salas, etc. junto a cada sala/máquina/objecto. Sei que o temos, em animações multimédia, mas numa parte específica da Central Tejo e, não queria pedir muito, mas se pudesse ter a mesma informação numa aplicação, seria excelente e poderia ter um maior grau de interactividade do que um ecrã com um vídeo animado a passar em loop. Fica a sugestão.

A varanda sobre o Tejo

Para finalizar a visita subimos à nova varanda sobre o Tejo. A cobertura do MAAT é, sinceramente, um local fabuloso para quem gosta da Luz de Lisboa. É admirável como aquela zona de Lisboa foi transformada e como é usufruida por turistas e lisboetas (os que ainda podem lá viver). Nós lá tiramos a selfie familiar, a foto da ponte e Cristo Rei e seguimos para o almoço satisfeitos.

E então, são seca ou não?

Museus e CriançasOs meus filhos gostaram. Tenho a noção que, enquanto pais, fazemos o que podemos para introduzir nos seus hábitos algumas actividades culturais como visitas a museus, monumentos, etc., idas a concertos, ao teatro, entre outros. Sabemos também que podiamos, se calhar devíamos, fazer mais, mas há também um espaço que deve ser, desde cedo, deles, vindo da sua cabeça, uma decisão própria, um pedido expresso para uma dessas actividades! E esse pedido já o conseguimos de ambos.

Sei bem que não há fórmulas mágicas. Uma resposta específica não serve para resolver todos os problemas desta natureza. No entanto, julgo que o esforço de aproximação entre crianças e museus/teatros/bibliotecas/concertos/”you name it” deve partir, na maioria, da relação familiar. O museu pode e deve fazer a sua parte. Tornar-se atractivo e pensar nos diversos públicos na sua programação, mas também não o podemos julgar por todos os males e resistências que tem no público infanto-juvenil.

Uma outra análise que também seria interessante fazer, prende-se com a forma como os museus são apresentados à maioria das crianças nas visitas escolares. Eu tenho uma breve, muito pouco fundada opinião sobre o assunto, que decorre da experiência de há alguns anos atrás no Museu de Aveiro e da experiência que vou tendo como pai que autoriza os pequenos nas visitas escolares, mas gostava de ler/ouvir alguém mais conhecedor do que eu! Alguém para um texto no speaker’s corner?

Por fim, importa dizer que das visitas que temos feito com eles, não me parece que os museus sejam uma seca para os meus filhos. Em alguns deles temos diversão, noutros reflexão, noutros ainda fascinação, mas na grande maioria deles aprendemos! Nem que seja uma pequena curiosidade revelada pelo mais insignificante dos objectos. E é isso que na realidade importa.

 

Museu das Descobertas – um pequeno contributo

Museu das Descobertas – um pequeno contributo

Museu das Descobertas, Museu da Viagem, Museu da Interculturalidade de Origem Portuguesa, Museu do Achamento, Museu de tudo e mais alguma coisa e de nada ao mesmo tempo. É o tema do momento na nossa área e, ao contrário de outras situações mais inquietantes, ocupa até o tempo à letra de alguns dos mais reconhecidos cronistas da nossa praça, como Miguel Sousa Tavares.

Não me levem a mal este primeiro parágrafo, eu acho que não há nenhum assunto, nenhum mesmo, que não mereça um amplo debate público. Acho até que o debate que é trazido pela proposta da Câmara de Lisboa, prevista pelo que percebi no programa de Fernando Medina, da criação de um Museu das Descobertas ou Museus dos Descobrimentos tem um conjunto de pontos positivos que me agradam muito, começando pela forma elevada com que é travado, apesar das diferenças extremas dos argumentos apresentados e acabando na forma como o debate nos faz pensar criticamente sobre aquilo que nos foi ensinado (e julgo ainda ser) como os Descobrimentos Portugueses ou a Expansão Marítima Portuguesa e que tínhamos como um cadeirão no curso de História.

 

Um breve contexto

Até agora, e salvo algum falha nas diferentes partilhas e fontes, temos os artigos de Matilde Sousa Franco no Observador (aqui o primeiro e aqui o segundo), o texto do Luís Raposo no Público, um post de Luís Filipe Pimentel no Facebook, um post da Maria Vlachou, a mensagem do Pedro Pereira Leite, outro post da Maria Isabel Roque, o artigo do Miguel Sousa Tavares no Expresso (vertido aqui), o artigo do Paulo Jorge Sousa Pinto no Público, um outro artigo do Pedro Lains e, até uma edição do podcast do Observador Conversas à Quinta, com a visão de Jaime Gama e de Jaime Nogueira Pinto, moderados por José Manuel Fernandes, para a qual fui alertado pelo Luís Raposo na Museum já depois de ter começado este post. São muitas opiniões (o que é bom) a que se junta a Carta Aberta, assinada por um conjunto significativo de investigadores, que se opõem ao nome “Museu das Descobertas”.

Em todos eles, sem excepção, encontro argumentos válidos para a utilização ou negação do nome. Em alguns daqueles textos, nomeadamente o do Luís Raposo e da Maria Vlachou, encontro argumentos com que me identifico claramente para questionar a criação de um novo museu (que aliás me parece ser entendido como mais um entreposto turístico do que um museu) numa altura em que os museus portugueses, públicos ou privados, sofrem dificuldades agonizantes para conseguir manter as portas abertas apesar das constantes subidas nas estatísticas de visitantes.

Em todos eles vejo também a preocupação de lidar com os aspectos positivos e negativos de uma época em que Portugal teve um papel de destaque no mundo porque, fruto de um conjunto de circunstâncias muito específicas, se virou para onde percebeu ser possível crescer e competir com as nações europeias mais fortes. Aspectos positivos e negativos que podem muito bem, independentemente do nome de um museu que os pretenda debater e questionar, ser contados sem pudores e usados para tratar dos mesmos temas (principalmente os negativos) que ainda prevalecem no seio da nossa sociedade sem qualquer debate.

Vejo também, na maior parte deles, ideias excelentes, propostas concretas, visões de museologia contemporânea com que me identifico, nomeadamente a seguinte proposta da Maria Vlachou:

Sei que esta é uma história que se inicia no século XV, cujas consequências, boas e más, chegam aos nossos dias. É o presente e o futuro que se deve debater, olhando para o que foi o passado. É o presente e o futuro que se deve discutir com todos os que se sentem tocados pela história e pela actualidade.

Mas também me revejo, por completo, nesta afirmação da Maria Isabel Roque:

Mais do que a criação de um novo museu e da discussão acerca do nome, importa dar aos museus existentes os meios humanos e financeiros necessários para que possam apresentar e comunicar as respetivas coleções, articulando-se com a investigação académica na elaboração dos discursos; dar-lhes os meios necessários para repensar os modelos de musealização, definir redes e conexões entre espaços museológicos e reabilitar os espólios ignorados ou esquecidos.

E no mesmo sentido, parece-me que a criação deste museu, ou melhor, de um qualquer museu que pretenda, com a melhor das intenções, explorar o contexto dos Descobrimentos é completamente extemporânea. E tenho dois argumentos que me fazem pensar desta forma.

 

Dois argumentos a considerar

O primeiro prende-se com a actual situação dos museus em Portugal. Vivemos, apesar das promessas eleitorais do actual Primeiro Ministro, um dos momentos mais infelizes do sector. Há, apesar do que se vê nas estatísticas de visitantes, um desinteresse completo na resolução dos problemas dos museus. São orçamentos ridículos, quadros de pessoal insuficientes, fechados e envelhecidos, uma lei quadro sem aplicabilidade, a Rede Portuguesa de Museus reduzida a nada e um Ministério da Cultura que não tem, não expressa, nem tem a intenção de criar, muito menos executar, uma Política Museológica Nacional, resumindo-se a tratar de forma esporádica e errática de alguns dossiers mais prementes.

Esclarecendo, ou melhor, definindo esta política poderiamos pensar na criação de museus. Até na criação de um museus dos descobrimentos, da expansão, ou como lhe quiserem chamar, mas poderíamos pensar não num museu municipal (sim que este será um museu da câmara, não é) e sim num museu de âmbito nacional ou mesmo internacional. E já agora, pensar em colocar este museu, não em Lisboa (que já tem museus suficientes na minha opinião), mas sim no Algarve que apesar do esforço de um conjunto de museus municipais muito relevantes, mesmo a nível internacional, e do trabalho notável da Rede de Museus daquela região, não tem qualquer Museu Nacional e tem uma ligação umbilical com o tema.

Desembarque de Cabral em Porto Seguro

Desembarque de Cabral em Porto Seguro (óleo sobre tela), autor: Oscar Pereira da Silva, 1904. Acervo do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
[Public domain], from Wikimedia Commons

O segundo tem a ver com uma questão mais prática. Assim de momento, para contar a(s) história(s) dos Descobrimentos, precisaríamos de contar com as colecções de um conjunto significativo de instituições. Não só as do MNAA, como o seu director faz questão de lembrar, mas também as que estão na Universidade de Coimbra (no Museu da Ciência), no Museu do Azulejo, no Museu de Lisboa, no  Museu dos Coches, na Torre do Tombo, na Casa do Infante, nos Jerónimos, bem como noutros museus do país e em museus de outros países, desde logo do Brasil, Angola, Moçambique, S. Tomé, e outros da Lusofonia, mas também em museus na Índia, Japão e muitos outros países a que viagem nos levou.

Sem elas, mas também sem o “contemporary collecting”, que a Maria refere e muito bem, isto é, as colecções criadas/coletadas/incorporadas na actualidade que se cruzam com a herança dos descobrimentos, não seria possível contar uma história verdadeiramente global, com diversas visões, a partir de diversas culturas e não só da “portuguesa” (se é que isso ainda possa existir num mundo em que as culturas são tão influenciadas entre si) onde todos os intervenientes pudessem sentir reflectidas as suas conquistas, angústias, derrotas, confrontos, retrocessos, etc. Um museu com lado A e lado B que nos daria a possibilidade de ouvir cada lado e aprender ou acrescentar conhecimento e mais lados, ou seja, não um museu diplomático, mas sim um museu de narrativas. Não de compromissos, mas sim da verdade baseada em factos científicos e provas documentais (as colecções que o suportariam e a sua documentação, lá está).

Ora neste segundo ponto, a grande dificuldade que antevejo, para este Museu das Descobertas, ou lá como o queiram chamar, é a constituição da sua colecção. Como se faria? Seria apenas constituída por representações digitais dos objectos originais, contextualizadas por narrativas digitais construídas pela investigação, ou dadas a construír ao público? Ou passaria por um processo de depósitos, empréstimos, compra e outras formas de incorporação na C. M. de Lisboa? Será que queremos fazer isto? Será que os Museus atrás referenciados e outros, estariam na disponibilidade de “perder” algumas das suas melhores peças para este? Constituiria a CML uma nova colecção com base no “contemporary collecting” atrás referido? E a narrativa histórica contextual? Não é claro para mim como o fazer e por isso este argumento para ser contrário à proposta.

 

A importância do debate

No entanto, julgo que o debate é estimulante e pode trazer para o sector uma visibilidade que há muito não nos é dada, mesmo quando, e insisto no mesmo ponto, alertamos para os efeitos graves dos últimos tempos de governação sem qualquer atenção por parte dos media ou dos “opinion makers” com mais voz.

Acho, concordando com o já dito pelo Luís Raposo, que é tempo de todos nós profissionais do sector, expressarmos de forma audível a nossa opinião relativamente a estes temas. Não ter voz num debate com o impacto que este tem no momento, é contribuir para enfraquecer a qualidade das decisões que virão a ser tomadas, tendo em conta o contributo informado e científico que podemos dar.

Almada, museu e a criançada

Almada, museu e a criançada

No fim de semana passado tive um inesperado, mas muito bom, pedido da minha filha mais nova. Queria ir ao museu, a um museu! Sem que tivesse saído da nossa cabeça qualquer sugestão! Excelente, não é? Ora como um pedido destes não se recusa, toca de escolher o museu para pegar na criançada e passar um bom tempo de qualidade com eles!

A escolha recaiu no Museu Nacional Soares dos Reis. Já todos lá fomos (e temos muitos por perto que eles não conhecem), mas estava de olho na exposição “José de Almada Negreiros: desenho em movimento” e, além disso, estes hábitos de repetição de museus são bons para a criançada. Ficam mais próximos com toda a certeza! Vou contar-vos a experiência em três actos: antes, durante e depois!

O antes

 

A ida ao MNSR foi decidida com uma consulta na web (onde vi a informação sobre a exposição), mas se não fosse o Facebook do MNSR e a informação da Gulbenkian, não tinha encontrado nada no site do Museu (onde aliás fui direccionado para o FB do mesmo). Em todo o caso, várias notícias falavam sobre a exposição na breve pesquisa que fiz. Apenas deixo esta nota, porque vejo que o site precisa de acompanhar o enorme esforço de comunicação que o museu faz.

Decidido o museu, caminho percorrido de carro, ultrapassadas as dificuldades de estacionamento naquela zona da cidade (mesmo ao domingo é um castigo) com o recurso a um parque pago, somos confrontados com um problema crónico para o MNSR, a “praça” em frente ao museu é tudo menos amigável para quem ali chega! Se bem se recordam, a intervenção feita ali, com a saída do túnel de Ceuta, causou polémica na altura e foi mesmo embargada pela Ministra da Cultura, no entanto, e como bem recordava a Maria João Vasconcelos, já em 2013, o túnel é um perigo para os visitantes e para a colecção do museu. Em tempos de saída da crise seria bom pensar em minimizar aquele problema, pelo menos!

O durante

 

Entrados no museu (a criançada não pagou) e café tomado na cafetaria, seguimos mais ou menos apressados pela exposição permanente (o acesso às temporárias é sempre feito por aí), parando em algumas obras que despertaram o interesse aos mais novos, até que chegamos à galeria de exposições temporárias.

Visita ao MNSR

Eu desci as escadas, mas eles seguiram, como seria de esperar, pela rampa de acesso em correria desenfreada (nada como uma rampa para lhes despertar a vontade). Vai daí, pai em alerta e o pessoal do museu, alertado pelo barulho da correria, a ver discretamente o que vinha por ali. Um ponto a favor do MNSR nesta situação. Atentos, mas sem qualquer chamada de atenção à criançada, porque perceberam a atenção dos pais e o local onde estavam a brincar (a rampa não tinha qualquer obra exposta).

Mais do que a minha opinião sobre a exposição (bastante positiva, devo dizer), queria aqui deixar-vos a deles. Interessados nos desenhos do Almada, atentos a diferentes pormenores das obras (a museografia permitia que as apreciassem, embora com alguma dificuldade para as obras em vitrines horizontais), interessados na técnica de desenho (principalmente o mais velho), nas formas geométricas, nas histórias contadas pelo Almada, entre outros aspectos, acabaram a visita a dizer que tinham gostado muito da ida ao museu. Estiveram com a mãe sentados durante um bom tempo a ouvir a gravação da Gulbenkian de uma obra escrita por um artista que não me recordo agora, ilustrada por Almada na sua passagem por Madrid (se não estou enganado) e cujas ilustrações estavam a ser projectadas em frente! Divertidos com a bruxa e o gato.

Saídos da exposição do Almada, tivemos ainda tempo para percorrer as restantes salas do MNSR vagarosamente, procurando algumas histórias na excelente colecção do museu, inventando outras, esperando que a curiosidade seja sempre uma das suas qualidades mais preciosas e apreciadas. A mãe documentou dois olhares deles que ilustram isso e deixo-os aqui para memória futura.

 

À saída e em resposta à questão: Então, gostaram? Tivemos um “Sim… gostamos muito!” Sincero que a criançada não mente!

O depois

 

Não fosse o pedido da princesa lá de casa, teria passado umas boas horas de brincadeira caseira com eles, mas entre isso e umas boas horas de brincadeira e aprendizagem no museu (ou outro sítio interessante), tenho cada vez mais certeza, teremos que escolher sempre a segunda. Mesmo que o conforto da nossa casa, o chamamento do sofá, nos tente de forma diabólica a passar a tarde de domingo chuvosa em casa, temos que nos lembrar sempre que sair, conhecer outros locais, ver obras de arte, questionar, suscitar a curiosidade, etc.

Este passeio valeu aos pais um obrigado após a visita, mas, em boa verdade, quem lhes devia agradecer era eu.

Da “mercantilização da Cultura” (ou dos jantares no Panteão)

Da “mercantilização da Cultura” (ou dos jantares no Panteão)

A velocidade das reacções, nos dias que vivemos, é marcada quase exclusivamente pela necessidade de afirmação da voz própria num mundo de milhões de vozes que a net propicia. É desavisada para alguns, mas ainda assim insistem continuamente no erro mostrando indignação com tudo e mais alguma coisa. O jantar no Panteão, ou melhor, os jantares no Panteão são mais um caso que demonstra a necessidade de uma reflexão mais profunda sobre os temas envolvidos.

Em primeiro lugar, e para que fique bem claro, parece-me completamente desajustado que se possam fazer jantares de qualquer espécie no Panteão (mesmo que a sala específica não tenha restos mortais). É um local de homenagem aos melhores da Nação e deve ser respeitado enquanto tal. Pode até parecer obtusa esta minha opinião, mas a simbologia de locais como este é importante para a nossa cultura e identidade e julgo que isso deveria merecer uma análise mais cuidada sobre a autorização de eventos em locais como aquele.

Uma outra situação que me enerva profundamente é ler, na imensidão de comentários e publicações e posts e twitter, a indignação de uma quantidade considerável de pessoas, a maior parte delas que certamente visita o Panteão diariamente, aliás da mesma forma que vai frequentemente a museus e monumentos, batendo no peito e clamando contra a situação e que raramente vejo a falar sobre os fracos recursos financeiros que as instituições na área da cultura têm disponíveis e que as obrigam a “vender” espaços para a realização de eventos de toda a espécie. Se calhar era bom pensar um pouco mais sobre o assunto antes destes momentos de indignação.

By Carlos Luis M C da Cruz (Own work) [Public domain], via Wikimedia Commons

Aliás, é sobre este último ponto que gostaria de reflectir um pouco. Eu não sou contra, por princípio, que se aluguem espaços em monumentos, palácios, museus e afins. Reconheço que são locais procurados para tal exactamente pela simbologia e pela beleza que encerram e, como tal, ajustam-se ao que o mercado procura em termos de prestígio de determinado evento. No entanto, o rendimento que este tipo de aluguer representa deveria ser, em sentido restrito, uma fonte de receita adicional para que os museus, monumentos, palácios e afins possam ter os meios para concretizar projectos específicos de investigação, educação, acessibilidade, etc. e não, tal como tem acontecido, como suporte ao exíguo orçamento que têm para o seu funcionamento regular, ou seja, para manter as portas abertas. Não me parece que isto seja propriamente “mercantilização da cultura” como também vejo agora apregoado, mas enfim!

Quero com isto dizer que a discussão a ter, que é bem maior, vai de encontro ao mítico 1% de orçamento para a Cultura (que ainda assim me parece curto). Se assumimos a indignidade de ter eventos como este no Panteão, temos que perceber que o problema não está num despacho que não autoriza directamente estes eventos, mas sim que a autorização deles depende (em parte) do valor que eles representam para estas instituições e de uma análise casuística que é da responsabilidade de quem tutela (no caso específico da DGPC e do Ministério da Cultura que não ficam muito bem na fotografia neste caso).

Por último, e para todos os que só se preocuparam com este assunto por razões de arremesso político (de todos os lados), por parecer estar na moda criticar a Web Summit e os eventos paralelos, por não ter mais nada que fazer e razões semelhantes, fica aqui o meu singelo conselho: arrumem uma vidinha!