O porta-chaves do meu pai e o paradoxo do Museu da Acrópole – Maria José de Almeida

O porta-chaves do meu pai e o paradoxo do Museu da Acrópole – Maria José de Almeida

O meu pai usou sempre o mesmo porta-chaves. Daqueles de bolso, em cabedal, que se fecham com duas molas e lá dentro têm um suporte metálico para vários ganchos, dispostos lado a lado. Sabem a que me estou a referir, sobretudo se forem da minha ou da geração anterior.

Lembro-me muito bem dos gestos do meu pai associados a esse porta-chaves. Ao aproximar-se da porta, tirava-o do bolso, abria, escolhia a chave pretendida e puxava o respetivo gancho na vertical para a  destacar das outras. Enfiava a chave na fechadura, rodava e, já do outro lado da porta, repetia os mesmos passos por ordem inversa. Mas com variantes nos gestos: para voltar a colocar a chave no sítio, o meu pai dava um pequeno golpe de pulso e a chave saltava para a posição original, batendo nas outras e nos ganchos metálicos com um som muito característico. Só depois pressionava as molas, com um pequeno estalido, para fechar e guardar novamente no bolso. Esta é uma memória visual mas também auditiva. O som do porta-chaves do meu pai era muito diferente do som do grande molho de chaves da minha mãe (presas todas à mesma argola) a ser atirado para cima da arca do hall de entrada. Não precisava de ver, bastava ouvir o som das chaves para saber quem tinha chegado a casa.

Quando os meus pais morreram, no doloroso processo de “desmanchar a casa”, dei com o porta-chaves do meu pai e resolvi ficar com ele. Pus-lhe as minhas chaves e uso-o todos os dias. E todos os dias repito os gestos e os sons do meu pai ao usar aquele objeto.

Porta chaves do Pai da Zé
Porta chaves do Pai da Zé

Acontece que já passou algum tempo, a fadiga dos materiais não perdoa e o porta-chaves está a desfazer-se.

Quando dei conta dos primeiros sinais de degradação (além de me lembrar do conceito de fadiga dos materiais, que certamente aprendi com o meu pai) fiquei triste e comecei a pensar como podia travar o processo ou reparar os danos. Mas trata-se de um objeto de uso quotidiano e os fenómenos físicos são inevitáveis: o porta-chaves, mais tarde ou mais cedo, vai desfazer-se. Outra das coisas que aprendi com o meu pai foi a analisar problemas e encontrar soluções. Este problema tem uma solução simples: vou comprar um porta-chaves novo.

Um porta-chaves de bolso, em cabedal, que se fecha com duas molas e tem lá dentro tem um suporte metálico para vários ganchos, dispostos lado a lado. Um porta-chaves que vou continuar a usar com os mesmos gestos e os mesmos sons e, por isso, o objeto novo vai continuar a ser o porta-chaves do meu pai. Aliás, revendo o que escrevi no primeiro parágrafo, o meu pai não “usou sempre o mesmo porta-chaves”:  aquele que eu tenho agora dificilmente será o mesmo objeto ao qual associo as minhas memórias de infância. O objeto que guardei foi o só o último que ele usou.

Vem o porta-chaves a propósito do necessário debate sobre a restituição de património cultural deslocado, que voltou a ser tema no final de 2018 depois da divulgação de um relatório encomendado pelo presidente francês. Por razões óbvias, este é um tema que não pode ser ignorado pelos museus portugueses e que, também pelas mesmas razões óbvias, se presta a servir de arma de arremesso entre grupos ideologicamente distintos. Naturalmente que neste debate não podemos fazer de conta que somos imunes à ideologia, e muito menos ao contexto sócio-cultural em que vivemos, mas acho que temos obrigação profissional de refletir para além da ideologia.

E, nesse sentido, a minha proposta é começar o debate com uma pergunta: “o que é que valorizamos nos objetos?” Ou, se preferirem, “porque é que é tão importante para mim ter este objeto?” Porque é isso que está em causa quando se discute a posse e, consequentemente, o lugar onde se guarda – e expõe e interpreta – o património de alguém ou de uma comunidade de alguéns.

Podia escolher muitos exemplos para fazer o exercício que me leva à resposta a esta pergunta. Podia escolher a arte africana trazida para Portugal durante o período colonial ou a arte portuguesa levada para o Brasil e para França durante o período das invasões napoleónicas. Se quisesse ficar no universo português. Mas não quero. Vou escolher um caso, literalmente, clássico: os frisos do Pártenon. Até porque, também recentemente, o diretor do Museu Britânico juntou à discussão um novo argumento no mínimo… criativo, vamos-lhe chamar assim.

Vi os frisos do Pártenon  duas vezes: no Museu Britânico em Londres há muitos anos (demasiados!, tenho que voltar) e no verão passado no Museu da Acrópole em Atenas. Para ser rigorosa, vi duas partes distintas de um conjunto que já não existe. E também visitei o local onde o conjunto estava quando existia.

São três experiências muito distintas. A que mais dificuldade tenho em reconstituir é a do Museu Britânico mas, mesmo que a recordasse como se fosse ontem… não foi ontem. Quem viu os frisos do Pártenon em Londres também é uma pessoa que já não existe. Como me lembro pouco, resolvi explorar as ferramentas que hoje estão ao meu dispor para avivar a memória. As imagens correspondem ao que no fundo da memória tinha guardado: espaços amplos e despojados onde as esculturas são valorizadas na sua dimensão estética. Na altura em que visitei o Museu Britânico duvido que desse grande atenção ao contexto, mas se o fizesse agora e quisesse ter essa informação, a história toda está lá explicada. Contudo, quando lá voltar, parece-me que vou novamente ficar mais esmagada pelo impacto visual das peças e do espaço em que estão expostas do que pela história e contexto da coleção.

No Museu da Acrópole a dimensão visual das esculturas e do espaço em que estão expostas voltou a ser um fator determinante na experiência de visita. É um museu do meu tempo, da minha estética, do meu discurso sobre o espaço e o tempo (mais do que me recordo do Museu Britânico). É também, e sobretudo, um museu de sítio. Contaram-me a história da Acrópole, que tem muito mais que se lhe diga que a deslocação dos frisos, e eu gostei muito. Ter visitado o museu no mesmo dia que visitei a Acrópole não foi indiferente: foi mesmo determinante no impacto da visita. Cheguei cedo à Acrópole, à hora da luz bonita, passeei devagar entre as ruínas, senti o vento e o cheiro, ouvi os sons da cidade lá em baixo e dos outros turistas à minha volta. E de lá vi o edifício do museu, que se destaca de uma forma impressionante na malha urbana. Umas horas mais tarde, almocei na cafetaria do museu com vista para a Acrópole, que se destaca de uma forma impressionante na malha urbana.

A minha experiência no Museu da Acrópole teria sido muito diferente se lá estivessem os 47% de friso que estão no Museu Britânico? Provavelmente não. Teria sido muito diferente se o museu fosse noutro lugar? Garantidamente sim.

No Museu da Acrópole o que eu valorizei nos objetos expostos, das esculturas ao modelo da Acrópole em peças de Lego que estava(á?) junto da cafetaria, passando pelos objetos arqueológicos sob o chão de vidro da galeria de entrada, foi muito para além da materialidade dos mesmos. Sim, fiquei arrebatada pela qualidade visual das esculturas mas o que eu gostei mesmo foi de percorrer aquelas galerias de betão a ver o friso como nenhum grego antigo o viu, ao nível dos olhos. E isso até podia ter sido conseguido com uma réplica integral, se calhar com vantagem porque assim podia acrescentar à experiência visual a do tato, passando as mãos por cima daquilo tudo (e garanto que me apeteceu!). Mas a alternância dos originais com as réplicas também me contou uma história – a dos interesses britânicos no mediterrâneo oriental no séc. XIX – assim como a cariátide incompleta montada sobre um suporte de betão me contou outra – a dos violentos confrontos entre gregos e turcos sobre os quais se funda boa parte da identidade grega contemporânea.

Já a deslocalização do museu para outro local transformaria completamente a experiência. O vento, a luz, o cheiro, o som, a textura dos materiais de um sítio não são os mesmos de um outro. A quantidade de fatores que compõem essa materialidade é tão vasta que dificilmente se consegue, noutro local, repetir a combinação que os define. E, definitivamente, a história da Acrópole contada na base da colina da Acrópole fica mais bem contada ali do que noutro lugar. Porque é contada a quem acabou de sentir o vento, a luz, o cheiro, o som, a textura dos materiais… da colina da Acrópole.

O Museu da Acrópole encerra em si um paradoxo: é um projeto do governo grego para acabar de vez com o argumento que os frisos que estão em Londres não podiam regressar a Atenas por não haver condições dignas de exposição e interpretação; ao mesmo tempo, a execução do projeto mostra que os frisos “em falta” não fazem falta para expor e interpretar a história da Acrópole em excelentes condições. Ou pelo menos assim eu achei.

A deslocação de parte dos frisos do Pártenon e a sua integração em diferentes coleções de arte (além do Museu Britânico há outras partes do conjunto original em Paris, no Vaticano, em Copenhaga, Viena,  Würzburg e Munique) é um episódio da história europeia que não desaparece com a devolução e merece ser contado. Está contado no Museu da Acrópole e no Museu Britânico, pelo menos, e a história não fica mais completa nem melhor contada se houver devolução à Grécia dos objetos: a acontecer é mais um episódio que também merece ser contado e, sobretudo, contextualizado. Como os objetos mas também para além deles.

Este exercício, e o porta-chaves do meu pai, demonstram-me que o que eu valorizo mesmo nos objetos são as sensações e a informação que me transmitem. E isso interceta a sua materialidade mas não se esgota nela. Ou, dito de outra forma, a informação e as sensações não dependem tanto do objeto como do observador e do contexto. Ou, ainda mais uma forma!, o objeto não tem um valor absoluto indissociável da dimensão material.

Voltando a uma das formulações da pergunta inicial – porque é que é tão importante para mim ter este objeto? – só posso mesmo responder que… não é. Ou só é importante se eu depender exclusivamente do objeto para ter certa informação ou sensação. Haverá alguns casos em que isso pode acontecer, mas arrisco afirmar que não é frequente. E certamente não é o caso dos objetos que são alvo das recentes polémicas de restituição que tanta emoção têm causado.

Aqui há uns tempos, a propósito da alteração da definição de museu pelo ICOM, escrevia o meu amigo Luís Raposo que “o museu é o domínio do material”. Pois, como lhe respondi na mesma publicação, para mim os museus são o domínio do conhecimento e das emoções. Fundadas em informação e sensações que, volto a repetir, não se esgotam na materialidade dos objetos que expõem. Mas também admito que não é difícil argumentar em sentido contrário. É essa a natureza dos paradoxos.

Metaphysics: Ship of Theseus

https://www.khanacademy.org/partner-content/wi-phi/wiphi-metaphysics-epistemology/wiphi-metaphysics/v/ship-of-theseus

Conteúdo disponível na Khan Academy online

Atenas e novos perfis de trabalho nos museus

Atenas e novos perfis de trabalho nos museus

Voltar a Atenas é um privilégio. Voltar a Atenas numa data em que os gregos decidiam o seu futuro como nação é uma oportunidade única e imperdível, por isso, devo confessar, estive em alerta durante a semana anterior à viagem para certificar que não ficaria em terra por overbooking, greves e demais problemas que as companhias aéreas costumeiramente nos levantam.

A viagem aconteceu, como calculam, há já algum tempo, mas só agora consegui tempo e disponibilidade para vos contar. A motivação foi profissional, tem sido quase sempre, mas já meti na cabeça que a próxima ida à Grécia, espero que com Atenas pelo meio, seja em férias para que possa aproveitar aquele mar e praias fabulosas que o amigo Ika tem postado frequentemente no Facebook. A motivação profissional prende-se com um convite que me foi endereçado pela Mapa das Ideias, há uns tempos atrás, que em boa hora aceitei, para participar no “advisory board” de um projecto europeu que tinha como propósito definir perfis de competência para as novas profissões que a ligação entre a Cultura e o Digital está a criar.

eCultSkills

O projecto designa-se eCult Skills, é um projecto co-financiado pela União Europeia, de transferência de inovação que procurou, através da investigação em 6 países europeus, empregos novos e emergentes que envolvam a utilização de tecnologia na área cultural para definir novos perfis profissionais que pudessem ser aplicados no contexto nacional e europeu tendo como perspectiva a integração deste novo tipo de profissões no contexto dos objectivos definidos pela União para 2020. O projecto é apresentado pelos responsáveis da seguinte forma:

Culture Industry development policies need to place strategic goals of a broader context, seeking enhanced quality of service that will enforce the existing workforce and eventually attract young people to the profession. In addition, European Training systems have to adapt and to anticipate actual and future employment opportunities in Cultural Jobs as they will represent an important and growing number of jobs over the coming years. In parallel, the use of ICT for access to cultural heritage is a societal demand supported by European policy makers. Existing professional and new recruits need to acquire ICT skills and attitudes of the ideal eCulture professional such as the abilities to be creative, versatile, able to manage digital knowledge, quality and excellence, technical and humanistic training. Thus Culture Jobs need to be enhanced with eSkills to become eCulture Jobs.

O resultado do projecto são os perfis de especialistas no sector cultural e as linhas orientadoras para a formação de profissionais nestes perfis que permitirão, no contexto europeu, a definição de programas de formação, comparação de currículos e de competências profissionais para processos de contratação nas entidades deste sector. Uns e outros resultados podem ser encontrados na página dos resultados do projecto e estão disponíveis em diversas línguas.

Estes resultados foram apresentados na reunião final do projecto, em formato de conferência internacional, onde também foram discutidos, de forma bem alargada por diversos profissionais do sector, os desafios digitais que se colocam actualmente aos profissionais de museus. O tema da conferência era “Digital Challenges for Museum Experts” e o programa, apesar de muito extenso para o pouco tempo, foi muito interessante e estimulou um conjunto de tópicos de discussão muito relevantes relativamente à indefinição que se sente existir sobre a aplicação da tecnologia (que tecnologia, quando aplicar, que papel deve ter nas instituições, que competências são necessários, etc.) no sector cultural.

Eu tive o prazer de apresentar (e depois discutir) uma comunicação intitulada “Museum Documentation: New Skills for a Digital World” e de presidir a uma mesa que discutia novas tendências e desafios nas competências necessárias para a cultura face ao desenvolvimento tecnológico. Numa e outra oportunidade a experiência foi muito enriquecedora e permitiu confirmar e conhecer desafios emergentes colocados, principalmente, pela definição do papel da tecnologia nas instituições, ou seja, a velha discussão sobre a visão da tecnologia como um instrumento e não um fim em si mesmo. Fiquei com a ideia que a primeira está, felizmente, a ganhar cada vez mais terreno!

Julgo que a organização ficou bem contente com os resultados da conferência. O nível de participação foi muito alto e, como poderão ver pelas caras de algumas das fotos, julgo que a satisfação dos participantes também foi alta.

O Museu da Acrópole

Selfie em Atenas

Selfie com as meninas Atenienses

Além da conferência tive, desta vez, a oportunidade de visitar o Museu da Acrópole que ainda estava em construção (ou em projecto) da última vez que visitei Atenas. O museu tem uma ligação espacial com a Acrópole que é muito bem conseguida. Em qualquer momento vemos o local de origem das peças que temos à nossa frente e quando isso não acontece, damos alguns passos e temos essa sensação de pertença. A parte em que me emocionei (gosto sempre de me emocionar num museu) foi quando estive ao lado das Cariátides (do Erecteion) que quase me fizeram chumbar numa oral de História de Arte por ter a pior memória do mundo para nomes (este nunca mais esqueci)! Tirei uma selfie para mais tarde recordar e partilho-a com vocês agora!

Embora tivesse gostado muito do museu, da organização da exposição (um pouco caótica, mas interessante) e de algumas soluções de museografia, não gostei nada, mesmo nada, da ausência de informação nas tabelas de cada objecto. Apenas continham nome, data, local de origem e pouco mais… muito pouco para quem, como eu, tem um conhecimento mínimo do contexto e história do local.

Uma nota final para três coisas: pessoas, comida e bebida! Cada vez mais fã da gastronomia grega e fã, por completo, do bom vinho que por lá se bebe. As pessoas, já o sabia, são determinadas, trabalhadoras, inteligentes e merecedoras do nosso apoio… não é por culpa do povo Grego que o país está naquela situação!