Da decência nas cedências

Da decência nas cedências

Comecei a escrever este texto após as primeiras notícias sobre o caso da cedência das obras do Museu Nacional dos Cohces para o hotel em Alter do Chão e muito antes de se despoletar todo o drama relativo ao COVID-19. Ainda assim, pela importância do tema, resolvi voltar a ele e deixar aqui escrita a minha opinião sobre o tema.

Da profícua capacidade legislativa que os nossos parlamentares e governos têm demonstrado ao longo das últimas décadas, haverá poucas leis aprovadas por unanimidade. É normal que assim seja! Em democracia, a diferença e as formas distintas de encarar a construção da sociedade são muito salutares, no entanto, é de louvar que uma dessas poucas leis, aprovadas de forma unânime por todos os partidos então representados na Assembleia da República, seja a Lei-quadro dos Museus Portugueses.

Corria o ano de 2004, era Presidente da República Jorge Sampaio e Pedro Santana Lopes Primeiro Ministro, e a 9 de Julho de 2004 foi então votado e aprovado o diploma que daria início a um dos melhores períodos para o sector dos museus em Portugal. Para a minha geração, era um tempo de esperança, devo dizer. Todos nós, que iniciávamos a carreira ou estávamos nos primeiros anos de trabalho nos museus, a lei dos museus portugueses vinha dar consistência a um sector que não é tido, normalmente, como uma prioridade política e, portanto, é bastante permissivo em relação à vontade do poder político. Vimos todos ali a criação de instrumentos que permitiriam aos museus reclamar mais recursos, mais independência, melhores condições para se desenvolverem e cumprirem os seus propósitos. Foram bons tempos devo dizer…

Passaram entretanto 16 anos! E a questão que se coloca, face às notícias recentes sobre as cedências de obras da colecção de um Museu Nacional para decorar um espaço de um hotel (não entro em conversas sobre a aquisição da referida colecção pelo Estado, porque não me sinto capacitado para o fazer), entre outras do género, é exactamente esta: estão os museus portugueses em melhor situação do que em 2004?

Colecção de selas do historiador luso-alemão Rainer Daehnhard
Colecção de selas do historiador luso-alemão Rainer Daehnhard – © Imagem

Eu respondo, ainda que triste, mas sem grande problema: não estão, não senhora! E se quisermos juntar mais perguntas, como por exemplo: são os museus realmente autónomos? E a política museológica nacional? Onde anda esta bendita? A resposta é ainda mais simples, mas na negativa na mesma. Não são nada autónomos e a política museológica nacional não está em lado nenhum, anda desaparecida como as notas de 500 euros!

Sei bem que o tempo que corre e que tivemos, nestes últimos 16 anos, diversos desafios, uma crise, muitas mudanças, alterações à vida das instituições, novos governos e tudo o mais que acontece normalmente neste tempo, mas não haveria forma de nos mantermos, pelo menos duas décadas, unidos com alguns propósitos comuns?

Eu acho que sim, que há forma de o fazermos! Devemos isso aos que nos seguem e a quem, antes de nós, conseguiu atingir objectivos comuns como a criação de uma lei importante e a de iniciar o processo de construção da rede de museus, por exemplo. Aliás, acho que o devíamos fazer em alguns sectores estruturais como a Cultura, a Saúde (como é notória a importância do SNS nestes tempos), a Educação e a Segurança Social.

No entanto, o que fizemos no passado, com uma lei exemplar, foi neste caso particular completamente negligenciado pelos responsáveis políticos, contra pareceres técnicos muito informados e sérios do Museu e da DGPC, com base numa visão puramente economicista do património.

Eu não sou, por princípio, contra a utilização/consignação de património cultural por privados. Acho que se tivermos um programa em que Estado, particulares e empresas usem recursos comuns para benefício de ambas as partes (e recordo que o Estado somos todos nós), pode ser útil para a recuperação do património e para a continuidade da sua utilização.

Temos em Portugal um conjunto de edifícios e monumentos que não tendo utilização pelo Estado, podem muito bem ser recuperados para outro uso em que a sua integridade, manutenção e conservação sejam asseguradas, permitindo a quem assume esses encargos retirar contrapartidas do investimento que ali faz. Prefiro isto do que ver diversos monumentos e edifícios em estado de ruína e abandono, assim como acho que nos casos contrários (os de abandono de património edificado com interesse relevante por privados, como o Palácio Rosa Pena, na minha terra natal, por exemplo) o estado deve poder assumir, após os procedimentos legais necessários, assumir a posse e investir neles para os devolver à esfera de utilização pública, nalguns casos, ou mesmo privada, noutros.

O mesmo diria, com as devidas diferenças, para as nossas colecções, para o nosso património móvel. Em boa verdade já o fazemos. São mais do que conhecidos os empréstimos de objectos dos nossos museus para outros museus e instituições, privadas ou não, que os solicitam com determinados motivos, isto é, para estudo, exposições e outras utilizações semelhantes. Para o fazermos, tal como no património imóvel, temos que respeitar um conjunto de regras, vertidas na lei e em diversos regulamentos, que procuram garantir a salvaguarda e segurança desses bens, assim como a sua utilização devida, independentemente da instituição e local. É muito simples de perceber, certo? Não são precisos pareceres técnicos muito elaborados, pois não? Era o que pensávamos até há bem pouco tempo.

Assim, em minha opinião, é chegada a hora em que todos nós, profissionais de museus, precisamos de ser intransigentes, como o foi a directora do Museu Nacional dos Coches, Silvana Bessone (a quem agradeço muito pela coragem), e dizer não são cumpridas ordens que atentam contra a ética e lei.

Sei que o problema está ultrapassado e que a cadeia de hotéis já prescindiu do empréstimo e também sei que nos tempos de pandemia que vivemos este pode parecer um problema menor e sem qualquer interesse, mas é nestas alturas, em que estes problemas são colocados lá longe na gaveta das coisas que de vez em quando voltam se não formos firmes!

O que há num nome?

O que há num nome?

O que é aquilo? Como é que eu identifico aquele objecto? O que lhe devo chamar? Como devemos chamar aos objectos que temos nas nossas colecções? Para que é que isto interessa? A quem é que isto interessa?

Há muito tempo atrás, ainda trabalhava no Museu de Aveiro, ouvi pela primeira vez a palavra “cibório”. Se não me atraiçoa a memória, foi nas reservas do Museu, à procura de um outro objecto qualquer para uma exposição, e foi um comentário de um colega, muito conhecedor da colecção, sobre a beleza de um cibório, que vendo a minha cara de ignorância logo completou… “a píxide… aí à tua frente!”. Na altura respondi-lhe “Santinho”! Fica sempre bem para disfarce de ignorância, mas na realidade não fazia a mínima ideia do que era um cibório. Para os que estão sintonizados com o meu eu da altura, deixo abaixo o significado de cibório no dicionário da Priberam:

ci·bó·ri·o
(latim ciborium, -ii, do grego kibórion, -ou, vaso de sementes, taça)
substantivo masculino

  1. Vaso sagrado, com tampa, em que se guardam as hóstias ou partículas consagradas. = PÍXIDE
  2. Vaso para mantimentos.
  3. [Arquitectura]  Baldaquino com que se cobria altares ou estátuas.Confrontar: zimbório.

Palavras relacionadas: píxidezimbóriosacrário.

“cibório”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2020, https://dicionario.priberam.org/cib%C3%B3rio [consultado em 24-01-2020].

Tirando esta, aprendi mais umas quantas centenas de nomes (ou designações de objectos, ou designações comuns ou nomes comuns para deixar algumas das formas que usamos para identificar este tipo de informação), desde então até agora, com dezenas de amigos e colegas que trabalham em museus.

Entre elas, lembro-me, por exemplo de tric-li-trac, agogô, almotolia, arcabuz, chambaril, cofió, polvorinho, reque-reque, selha, etc. Mas perdi a conta à quantidade de nomes interessantes que damos às coisas. Uns mais eruditos, outros mais óbvios, outros estranhos, os nomes (designações, nome comum, etc.) que damos aos objectos são a forma mais óbvia de encontrar a informação sobre um objecto, ou conjunto de objectos, dentro de um sistema de informação e gestão de colecções. É por isto que é relevante, no momento do seu cadastro, inventário ou catalogação, escolher o nome correcto a atribuir a cada objecto. Não pode ser, não deve ser, assim como noutras categorias de informação, uma escolha leviana, mas em muitos casos é uma escolha que se revela complicada e, em determinados casos, exige a ajuda de especialistas de determinada área científica.

Para melhor exemplificar o que digo, peço-vos uma ajuda, digam-me lá o que chamariam a este objecto?

Imagem de instrumento científico

Alguém sabe? Eu confesso que nem imaginava antes de procurar um exemplo para este texto. Isto é um Sifão de Reiselius, um instrumento científico utilizado em Física, mecânica de fluídos, para ser mais exacto sobre o qual podem saber mais no Museu da Ciência da Universidade de Coimbra e cuja definição encontram no Thesaurus de Acervos Científicos em Língua Portuguesa. Pesquisei no google (apenas uma referência ao thesaurus e uma outra a um texto do MAST no Rio de Janeiro) e Wikipedia (0 artigos em Português e Inglês) para perceber se encontrava alguma coisa, mas nada!

Como este objecto e nos mais diversos tipos de colecções que possam imaginar, há seguramente um conjunto de objectos que não conseguimos nomear facilmente. Desde objectos originários de culturas distintas, objectos usados em contextos locais, instrumentos de áreas científicas muito específicas, objectos que não são comuns ou que foram comuns em determinadas épocas, mas caíram em desuso, entre outros, são muitos os casos onde a dificuldade em encontrar o nome certo é grande para quem necessita de os inventariar ou catalogar correctamente.

Neste sentido, é imperativo que existam ferramentas como os vocabulários controlados, listas de termos, thesaurus, ao dispor dos museus e dos seus profissionais, através das quais seja possível escolher, entre os diversos termos, o mais apropriado para atribuir o nome (ou outra categoria de informação que deva recorrer a vocabulários controlados) a cada objecto. O Thesaurus de Acervos Científicos em Língua Portuguesa é um excelente exemplo destas ferramentas, mas infelizmente é um dos poucos casos existentes em português que serve os museus da lusofonia (há outros, mas são curtos).

Chego a este tema, porque hoje recebi a notícia que o thesaurus Nomenclature for Museum Cataloging, criado em 1978, por Robert G. Chenhall, está agora disponível como Linked Open Data (LOD) e para download, em Inglês e Francês, por cortesia da Canadian Heritage Information Network (e outros parceiros).

Nomenclature for Museum Cataloging é uma lista estruturada e controlada de termos organizados num sistema de classificação para fornecer uma base de indexação e catalogação de coleções de objetos feitos pelo homem, conforme afirmam no site da norma. É utilizada frequentemente por museus da América do Norte, mas tem sido citada como um excelente exemplo por museus e profissionais em diversos países e contextos.

Na minha opinião, poderia ser um dos muitos e bons thesaurus a traduzir para português ou, pelo menos, a servir de exemplo para criar em Portugal um projecto de criação/adaptação de ferramentas de suporte na área dos vocabulários (e já agora, porque não, de outras normas) que pudesse criar ou adaptar normas existentes na área do património cultural.

Um projecto destes teria, obrigatoriamente, de ter o suporte de uma organização forte na área dos museus. A Rede Portuguesas de Museus seria, evidentemente a minha primeira (única) escolha, se a tivéssemos sabido estimar e engrandecer com o contributo de todos os museus parceiros, mas não existindo a rede, julgo que teria que ser a Direção Geral do Património Cultural a assumir as despesas de um projecto com esta dimensão e complexidade.

Não me parece, a avaliar pelo que se conhece, que a DGPC se aventure a fazê-lo. Mas se o fizesse com todos os museus, de forma estruturada e aberta, seria o primeiro da fila a bater palmas!

Entretanto vou usando as luvas para aquecer as mãos!

A colecção (meia) desaparecida

A colecção (meia) desaparecida

Trabalho com questões de inventário e gestão de colecções há mais de 20 anos. Sim, eu sei, estou velho! Mas esta velhice, dá-me um pouco de experiência e conhecimento de terreno para vos dizer que a colecção (meia) desaparecida, ou melhor, as 170 obras da colecção SEC cuja localização exacta é desconhecida, não é de todo caso único no país (ou mesmo no estrangeiro, esse local onde tudo é uma delícia de tão avançado que vai)!

Mas vamos por partes. A Colecção SEC, ou melhor, a Colecção de Arte Contemporânea do Ministério da Cultura (a sigla SEC vem dos tempos da Secretaria de Estado da Cultura) é o resultado de várias aquisições do Estado, com o objectivo de criar uma colecção de arte contemporânea que pudesse mexer com um mercado de arte parado e sem grande apoio para os artistas no pós revolução. Quase tudo que me recordo de ler sobre a colecção SEC veio a público quando da polémica da passagem da colecção para a tutela da DGPC e da reversão dessa decisão, ambas feitas pelo Secretário de Estado da Cultura do anterior governo, e que ainda se pode consultar no Público de 25 de Julho de 2015.

As lutas de 2015 pela tutela da Colecção SEC

Em 2015, ao contrário de agora, não se sabia muito bem quantas obras estavam “perdidas”. Agora são 170, mas 170 de quantas? Das 1271 que em 2007 haviam sido registadas quando Isabel Pires de Lima se debruçou sobre o assunto, ou as 1115 que Carlos Moura-Carvalho (director-geral das artes empossado em 2015) indicava à Lusa ser o registo existente e datado de 1992? (ainda segundo o artigo do Público de 25-06-2015). Não me levem a mal, mas não deveríamos todos saber exactamente qual o número total das obras desta colecção?

Deixando de lado estas coisas do número total de obras e das 170, sem localização exacta, lembro-me ainda de uma pergunta que me parece óbvia e que só a Inês Fialho Brandão coloca num brilhante post no Facebook: então e o arquivo de documentação desta colecção não deveria acompanhar a mesma quando da passagem para uma nova tutela? Quando, em 2015, a colecção passou para a DGPC e voltou para a DGA isso aconteceu? E o quando a DGA, antes disso, assumiu a responsabilidade da colecção, houve essa passagem do arquivo e documentação de gestão da colecção para essa nova tutela? Não é só a mim que me parece óbvio que essa documentação deve sempre acompanhar a colecção, pois não? Ou se calhar é…

Estamos naquele momento em que a DGPC, claramente a entidade que deve ter a responsabilidade desta colecção em meu entender, está a recuperar a informação perdida e a actualizar os registos sobre a colecção e sobre o seu paradeiro. A Inês, como poderão ver a seguir, mostra como o trabalho deve ser feito, com a transparência necessária, com as consequências devidas se provado algum ílicito e com a ideia maravilhosa de criar um “procura a colecção SEC” online para que o cidadão dê uma ajudinha… vejam lá aqui o post:

Eu, subscrevendo o post da Inês, acrescento ainda uma outra medida que o Ministério da Cultura deve concretizar (na minha opinião tem a obrigação de concretizar). A criação de um website com toda a informação sobre a colecção SEC, ou seja, um site com a informação sobre as obras incorporadas na colecção, a sua história, autor, contexto, proveniência, estado e localização (pelo menos a instituição responsável) actualizadas que permita a todos, daqui em diante, saber exactamente as informações relevantes sobre o nosso património.

Além desta informação sobre a colecção existente, seria este site o local ideial para nos informar qual o futuro desta colecção e como (ou se) o Estado se quer posicionar no complexo mercado da criação artística, criando uma política para esta colecção que definisse, claramente, a política de desenvolvimento (incorporações e desincorporações, portanto), de documentação, de conservação e salvaguarda e de acesso à mesma. Um sonho não era?

Reparem que não se trata aqui de criar uma nova entidade de gestão desta colecção, nada disso. Apenas criar, dentro da DGPC que tem gente bem capaz para esta tarefa, uma pequena estrutura que pudesse assegurar a gestão da colecção a médio e longo prazo. Se assim não for, daqui a uns anos, após vários pedidos do Sr. Ministro tal e do Sr. Embaixador tal, teremos, novamente, a necessidade de “localizar” com exactidão as benditas obras.

E já agora, partilhar com outros ministérios, embaixadas, câmaras, empresas públicas, etc. que usufruam desta colecção (ou que tutelem ou detenham a responsabilidade por quaisquer colecções públicas) os manuais de boas práticas já criados e, quase sempre, esquecidos (tão esquecido que reparo agora que nunca foi actualizado), outros instrumentos e algumas regras que estamos (o Estado também), por via da lei, obrigados a cumprir. Se precisarem de outros bons exemplos, actualizados o ano passado têm aqui o SPECTRUM e outros recursos da Collections Trust por onde começar a explorar.

Simples ou temos que chamar um Héctor Feliciano?

Porque é impossível NÃO gostar de museus!

Porque é impossível NÃO gostar de museus!

Por vezes, raras devo dizer, pergunto-me porque raio escolhi trabalhar em museus? A Cultura, todos sabemos, não é um sector fácil. Não é uma actividade que nos permita, pelo menos à maioria, ter rendimentos elevados. Exige estudo, contínua actualização, horas de volta de documentos em arquivos ou de objectos em reserva, preocupação e interacção directa com o público, conhecimentos de gestão, de comunicação, etc., mas na realidade todas as vezes que me pergunto sobre o porquê desta escolha a resposta é sempre a mesma: Porque é impossível não gostar de museus! E comigo foi amor à primeira vista!

No entanto, há momentos em que a dúvida nos assalta, não é? Pensamos que estaríamos melhor a vender casas, a trabalhar numa Google, aos comandos de uma grua qualquer, na City londrina preocupados com as consequências do Brexit ou, ainda, a produzir uma belo vinho no Douro. Acho que o mesmo acontece em todas as áreas e é legítimo que assim seja, mas nesses momentos é importante ter guardados alguns links que nos lembrem porque continuamos na luta.

Hoje guardei aqui nos favoritos mais um link que me irá ajudar num desses momentos. É um link com o feed de uma batalha épica entre dois dos museus museus favoritos, o Science Museum e o Natural History Museum de Londres! Uma batalha iniciada com um tweet de @bednarz durante o evento #askacurator do Natural History Museum sobre quem ganharia uma batalha entre as equipas dos dois museus e como as colecções as ajudariam na contenda. O tweet é o seguinte:

A batalha que se seguiu entre os museus é épica e, pelo menos a mim, lembra-me porque gosto de trabalhar em museus. A batalha, como diz no link que a apresenta, é muito educativa. É feita com as armas (objectos) de cada colecção de forma inspirada e despida da linguagem institucional que ainda vemos utilizada por muitos museus nas redes sociais. Utiliza os objectos mais antigos, mas chega também às mais recentes impressões 3D.

Mostra a diversidade e complexidade de duas grandes colecções e fez-me – acho que isso é o mais interessante – pesquisar um pouco mais para perceber melhor as respostas a alguns dos ataques. É brilhante, não vos parece?

É impossível não gostar de museus, não é?

A documentação e os “falsos”!

A documentação e os “falsos”!

A exposição “A Cidade Global: Lisboa no Renascimento” que há tempos teve a cerimónia de inauguração no Museu Nacional de Arte Antiga teve mais destaque na imprensa do que é habitual nas exposições em Portugal, mas infelizmente pelos piores motivos. A questão dos “falsos” quadros que estão na origem da realização da exposição após a identificação dos mesmos por Annemarie Jordan Gschwend e Kate Lowe como uma “uma vista da Rua Nova dos Mercadores, destruída pelo Terramoto de 1755“, não deveria ser, na minha opinião, a questão central! Mas como tem sido, falemos da sua relação com um tema que me é caro: a documentação em museus.

A argumentação dos “falsos”

Eu não tenho conhecimentos para entrar na discussão sobre a veracidade das obras em causa. Não sou historiador, nem historiador de arte e não tive qualquer acesso às fontes ou às obras para me pronunciar sobre as mesmas e, ainda que o tivesse, escusava-me por completo dessa tarefa. No entanto, gosto de uma boa troca de argumentos quando ela é séria e me apresenta factos ou elementos que sustentem cientificamente uma opinião.

A questão é levantada por Diogo Ramada Curto neste artigo no Expresso onde se interroga “Lisboa era uma cidade global?” utilizando a questão das pinturas para, em meu entender, ligar a produção da exposição a uma visão da História que glorifica o passado imperial e descarta uma outra visão, em que se insere, que se insurge contra uma narrativa que vê como colonialista e centrada no umbigo do mundo representada pela metrópole. Eu percebo a questão e a argumentação, ainda que não concorde, mas voltemos aos “falsos”.

Na mesma edição do Expresso, Miguel Cadete, Alexandra Carita e Hugo Franco, publicam um extenso artigo sobre o assunto onde apresentam os argumentos de DRC, acrescentando algum contexto e outros dados, sob o título “Museu de Arte Antiga abre as portas a obras suspeitas”. Título que dava, por si, um tratado sobre o tema que aqui me traz, mas que, por agora me suscita apenas o seguinte comentário: digam-me um museu, um apenas, que não abre a porta a obras suspeitas? Se não abrir deixa de cumprir uma parte do seu trabalho de análise e investigação da cultura material, não?

Após aquele texto, somos brindados com outro intitulado “Conservadores do Museu de Arte Antiga não se entendem“. No mesmo, imagine-se, alerta-nos o Expresso, pela voz de Miguel Cadete, que há dois conservadores do MNAA que não têm a mesma opinião sobre as obras! Imagine-se o pecado mortal de ter na mesma instituição, dois especialistas com opiniões diversas! Coisa inédita, bem sei! Mas ainda assim feliz e que me parece um bom sinal.

Para que se eliminassem todas as questões, e de acordo com o Expresso uma vez mais, são pedidos exames laboratoriais pelas palavras do próprio Ministro da Cultura (não percebo porque teria de ser ele a fazer esta declaração), seguidos de uma declaração do director do MNAA a indicar que a decisão ainda não tinha sido tomada por causa das devidas autorizações e questões técnicas associadas.

No Expresso ainda sai pouco tempo depois um texto de Ramada Curto sobre a forma como aborda a polémica e sobre a intenção de aproveitamento de uma exposição como instrumento político ao serviço de uma ideia que condena e que me parece nada ter a ver com a questão da autenticidade desta ou daquela obra, mas sim com uma visão mais genérica da questões (não era preciso criticar a autenticidade, para defender a sua tese sobre o tema). Um dia depois Fernando Baptista Pereira publica também este texto onde afirma categoricamente que “os quadros não são falsos!”.

Chegados ao dia da inauguração temos casa cheia e uma notícia no expresso sobre a “Lisboa Global”: Uma polémica local. Um título que diz tudo sobre as questões levantadas e sobre a forma irritadiça que a discussão tomou, ao contrário do que deveria ter acontecido. Afinal o debate, a diferença, a argumentação e contraditório deveriam sempre caber no Museu e na Academia, não é?

E agora em que ficamos?

Passada a polémica, poeira bem assente no chão, ânimos mais calmos, esperamos e temos a notícia do resultado dos exames a um dos quadros, O “Chafariz d’El Rey”, pertença de José Berardo, que confirmam a sua autenticidade e, segundo o Expresso, sabemos que o relatório diz o seguinte:

No que diz respeito à análise dos materiais constituintes e da forma como estes são aplicados esta obra terá sido executada muito provavelmente por pintor de influência ou naturalidade do norte da Europa a partir da 2ª metade do século XVI, época em que se verifica o uso generalizado do pigmento azul de esmalte e se começam a utilizar imprimaduras coradas

Confirma-se então que a hipotese avançada por Ramada Curto e João Alves Dias estavam erradas e que a autenticidade da pintura vai de encontro ao que as comissárias e o museu esperavam.

É aqui que entra a importância da documentação. Havia diversos elementos que nos poderiam confirmar a autenticidade do quadro (ou pelo menos apontar para ela) sem recorrer a exames, como podemos ler no texto de Fernando Baptista Pereira, mas estavam eles documentados pelo museu ou pelo proprietário? E das diversas investigações feitas pelas comissárias para o livro e, mais tarde, pela equipa do museu, que dados existem, onde estão registados, podemos chegar a eles de forma simples?

Continuamos a ter um enorme fosso entre a informação que existe (e é tratada nos museus pelas suas equipas técnicas) e o acesso que é dado a especialistas e público de uma forma geral. Para que esse fosso se esbata ou, mesmo, deixe de existir é necessária uma mudança nas políticas museológicas que reflicta as necessidades da sociedade actual. Essa mudança de políticas não pode ser vista de forma circunstancial ou imediata, mas sim pensada para o médio e longo prazo. O acesso a um conjunto significativo de informação dos museus na Holanda e Reino Unido, para citar dois bons exemplos agora muito louvados, não aconteceu da noite para o dia. Exige anos de trabalho e investimento na aquisição de competências e meios. Esta mudança não a vemos debatida no Expresso, infelizmente.

Documentação e os "Falsos" - Rua Nova dos Mercadores

Rua Nova dos Mercadores See page for author [Public domain], via Wikimedia Commons

Documentação e os "falsos" - o Chafariz d'el Rey

Chafariz d’El Rey By Anonymous Flemish [Public domain], via Wikimedia Commons

 

Ferramentas para a documentação em museus

Ferramentas para a documentação em museus

Diariamente, ou quase, sou confrontado com pedidos de ajuda sobre ferramentas para a documentação em museus ou, de forma mais genérica, para inventário e documentação de património cultural. Ao longo de quase 20 anos de trabalho nesta área tenho respondido a quase todos estes pedidos com diversas informações, quase sempre em inglês, que vou recolhendo das pesquisas na net e bibliotecas. Livros, artigos, sites, projectos, normas, boas práticas, entre muitas outras fontes de informação interessantes que me vão servindo de apoio para as mais diversas questões. No entanto, o panorama tem mudado recentemente, senão vejamos.

O que tem mudado?

Nestes últimos anos temos assistido a um conjunto de iniciativas muito interessantes no panorama da documentação de museus na comunidade de países de língua portuguesa. Desde os seminários que têm sido organizados no Brasil por diversas instituições e colegas em 2010, 2012, 2014, entre outros (basta googlar se quiserem), passando para a publicação do SPECTRUM em Português, em 2013, disponível no site do projecto SPECTRUM PT, até a um conjunto de iniciativas felizes de que são exemplo os Encontros Documentais de Vila de Rei, que marcam também a iniciativa de diversas entidades a nível local e nacional em Portugal, são diversos os motivos que me levam a pensar, ou melhor, a saber que estamos melhor do que estávamos há uns anos.

Uma destas iniciativas, na minha opinião a mais importante no panorama nacional, foi a criação do Grupo de Trabalho de Sistemas de Informação em Museus no seio da BAD. É um grupo de trabalho nascido em 2012 e que tem como objectivo principal reflectir e trabalhar para melhorar os meios que os profissionais de informação têm ao seu dispor nos museus. É descrito da seguinte forma no site da BAD:

O GT de Sistemas de Informação em Museus procura pensar o Museu como um centro de produção de conhecimento ao assumir o objeto de museu como documento e o acervo da instituição museológica, existente nas Reservas, Arquivo, Biblioteca ou Centro de Documentação como um todo unitário nas suas inter-relações informacionais. A visão integradora do acervo do Museu implica um maior enfoque nas potencialidades informativas do acervo, contribuindo assim para uma mais eficiente gestão de toda a informação sobre património produzida em contexto museológico.

O GT-SIM tem várias linhas de acção sobre as quais podem ler mais na página de Facebook criada para a divulgação das actividades. No entanto, nesta data queria falar-vos dos resultado de algumas dessas iniciativas que foram agora dados a conhecer.

 

O Diagnóstico aos sistemas de informação nos museus portugueses

Este será, estou certo, um dos maiores contributos que o GT-SIM dará à comunidade museológica nacional e aos profissionais da documentação nos museus portugueses. É um retrato daquilo que os museus são actualmente no que diz respeito aos seus sistemas de informação e permitirá debater e reflectir sobre políticas nesta área com base em informação fidedigna. Além de ser este instrumento importante, será também a base para futuros estudos nesta área, porque os dados apresentados levantam uma série de questões interessantes que poderão ser alvo de estudos mais finos.

 

Ferramentas para a documentação em museus - Vocabulários Controlados

Os vocabulários controlados na organização e gestão do património cultural: orientações práticas

É um trabalho fundamental para a documentação das colecções. Saber criar e manter um vocabulário controlado é uma das tarefas mais exigentes nesta área de trabalho nos museus que é agora facilitada pela criação deste interessante e muito bem escrito documento pelas colegas (e amigas) Natália Jorge, Filipa Medeiros, Juliana Rodrigues Alves e Susana Medina.

 

Os Guias Técnicos de implementação da SPECTRUM PT

Ferramentas para a documentação em museus - Guias Técnicos

Por fim, os guias técnicos são um conjunto de documentos de auxílio à implementação da norma SPECTRUM que procuram facilitar a forma como os procedimentos são introduzidos no dia-a-dia das actividades de gestão das colecções museológicas, baseados nos SPECTRUM Advices, que foram traduzidos e adaptados para a realidade nacional por mim e pelos colegas (e amigos) Ana Braga, Catarina Serafim, Cristina Cortês, Eugénia Correia, Juliana Rodrigues Alves, Leonor Calvão Borges, Olga Silva, Paula Moura, Paula Aparício e Rafael António.

 

E no futuro?

Como vêm julgo que temos motivos para sorrir. Começamos a ter disponível um conjunto de ferramentas essenciais para a formação de novos profissionais e para o trabalho dos actuais profissionais de documentação em museus. É certo que algumas delas já as tínhamos, mas agora temos em Português, adaptadas à nossa realidade, sem barreiras nas linguagens técnicas.

Além disso, temos agora um panorama real sobre os sistemas de informação dos museus que nos obrigará, espero eu, a reflectir sobre o actual ponto de situação e a pensar onde pretendemos estar daqui a 10 ou mais anos, procurando influenciar positivamente as tutelas e as políticas a seguir (isto acreditando ainda que serão criadas e implementadas de forma consequente).

É um desafio contínuo, bem sei, mas também o foi a criação do GT-SIM e a definição de um conjunto de tarefas agora concluídas.