Expectante (a palavra vem, como muitas, do latim “exspectante” que dá título a este texto) é o meu estado de alma para este início de 2024. Expectante porque finalmente, depois de anos e anos de letargia, tivemos decisões importantes para o património cultural português e, também, para os museus e monumentos portugueses.
Há uns anos atrás este texto teria outro título. Se bem me recordo de mim na época, o título que lhe daria seria algo mais entusiasmado e esperançoso. Hoje é mais desconfiado, com as reservas de quem já viu várias reorganizações e reformas do sector (e dezenas de estudos para o efeito) cairem à primeira crítica ou na primeira mudança de governo. No entanto, é um título ainda esperançoso e ciente que temos capacidade de fazer uma mudança que é, desde há muito tempo, uma absoluta necessidade para a revitalização do sector. Há boas indicações que devem, a meu ver, ser mencionadas.
A primeira boa notícia é que, apesar da constante crise em que nos encontramos desde as revoluções liberais e das mudanças governativas em curso, parece que a reorganização do Estado no sector é mesmo para se manter e será concretizada. Não é uma mudança que agrade a todos e que esteja isenta de críticas e onde se verifiquem situações que importa olhar com maior cuidado (os dados que informaram as opções políticas e técnicas tomadas não são públicos, ao que me é dado a saber, mas deveriam ser), mas é uma mudança que vinha sendo pedida há muito por um largo consenso no sector que considerava a DGPC (o link para a bendita página agora só através do Arquivo.pt) um enorme “navio”, pesado, vagaroso, etc. que não conseguia, pelo seu porte e dimensão, aportar em todo lado onde era necessário. Para os museus que dela dependiam foram anos de estagnação e de restrições (impostas pela crise, pela burocracia, pela máquina pesada e centralizada que a DGPC se revelou) que a custo foram sendo debeladas com algumas boas notícias como o começo da autonomia de gestão vertida nas regras dos mais recentes concursos para as direções dessas instituições.
A segunda boa notícia, na minha opinião, é que se separa museus e monumentos do restante património cultural. Arqueologia, património arquitetónico, património paisagístico, património imaterial (sim… deixa a esfera dos museus, segundo o que vemos nas atribuições do novo IP – Património Cultural) ficam numa esfera distinta com a criação de um novo Instituto Público que terá as competências da extinta DGPC para estas áreas e assume, numa visão centralizadora a meu ver, as responsabilidades das anteriores Direções Regionais de Cultura agora integradas nas CCDRs.
A terceira boa notícia, na minha opinião, é a criação de uma empresa pública que me parece ser uma forma mais realista e com maior proximidade para tutelar instituições que se pretendem modernizar e dinamizar junto de públicos e comunidades com interesses muito amplos. Aliás se pensarmos nos desafios que estas instituições enfrentam e na velocidade das mudanças neste sector, dificilmente seria compreensível a manutenção ad eternum de uma estrutura organizacional como a da DGPC. Assim, uma gestão mais ágil, que possa dotar os museus e monumentos com pessoas qualificadas e com as competências necessárias (assim como a casa tutelar), que possibilite parcerias ágeis, que integre facilmente (e sem as burocracias demoradas) projectos internacionais, que agarre as oportunidades da transição digital (encarando-as, ao invés de ir com a corrente sem rumo), que dote os museus e monumentos com os recursos necessários para cumprirem as suas missões. Enfim que tenha um objetivos definidos e uma estratégia para os alcançar!
A quarta boa notícia (dada ontem) é a passagem da empresa para o Palácio Burnay1 (na Rua da Junqueira) que permitirá a recuperação do palácio, votado ao abandono desde há uns anos, e libertar o espaço ocupado na Ajuda (que certamente terá boa utilidade para o PNA ou para o IP agora criado. Esta novidade, apresentada ontem na cerimónia que o governo organizou para marcar a entrada em funcionamento das duas entidades acima mencionadas, é também um reflexo da intenção demonstrada de autonomizar seriamente a tutela dos museus e monumentos (o que me agrada profundamente).
No entanto, mantenho esta reserva e desconfiança (que normalmente não teria), perante as diversas vezes que tive (tivemos) esperança num futuro melhor para os museus portugueses, mas não o vi concretizado até agora. Espero, sinceramente, que esta reforma dê frutos e, quanto mais não seja pela acção, acho que podemos agradecer ao presente Ministro da Cultura (Pedro Adão e Silva) por este passo. Agora está nas mãos do Pedro Sobrado, da Cláudia Leite e da Maria de Jesus Monge colocar a máquina a andar. Espero que tenham o maior sucesso, a bem dos nossos museus e monumentos.
Há também algumas preocupações que mantenho. São várias, mas a que mais me inquieta é a relativa à forma da Rede Portuguesa de Museus.
Quando criada a RPM foi, para mim pelo menos, um sinal de enorme esperança. Não era só isso, mas constituiu-se como uma rede de entreajuda entre instituições, com programa de formação de profissionais e um sistema de avaliação e creditação de museus que alavancou o desenvolvimento destas instituições. Fê-lo através de programas de apoio e formação e acções de acompanhamento técnico asseguradas por uma equipa incrível que foi definhando ao longo dos anos, por falta de investimento e atenção ao papel fundamental que a RPM desempenhou nos primeiros anos de existência.
A RPM é hoje constituída por museus de diversas tutelas, da esfera pública e privada, que vão desde o estado central, até às fundações e empresas, passando pelos municípios e acabando nas universidades. É diversa nas tutelas, mas também na dimensão, tipologia e recursos (financeiros e humanos) dos museus que a integram. Herda uma metodologia de trabalho testada, no que diz respeito à creditação dos museus, mas que urge reavaliar, discutir e, sendo o caso, atualizar. Tem formado profissionais de museus em diferentes áreas ao longo dos anos, mas em determinadas áreas (a documentação, por exemplo) precisa de rever e atualizar currículos e conteúdos. Tem sido, desde a sua criação, fonte de inspiração para a criação, dispersas pelo território, de um conjunto de redes de museus regionais como a Rede de Museus do Baixo Alentejo, do Algarve ou do Douro (para citar apenas algumas) com benefícios evidentes para os museus e profissionais dessas regiões.
Por tudo isto, a RPM foi e é um elemento fundamental para o desenvolvimento dos museus em Portugal. Por isso a minha preocupação prende-se com o facto de manter a RPM na dependência da Museus e Monumentos, EPE com a seguinte menção no diploma legal que cria esta entidade:
Artigo 3º – alínea m:
O desenvolvimento da Rede Portuguesa de Museus (RPM), tendo em vista a operacionalização das orientações estratégicas para o trabalho em rede entre os museus que a integram, a qualificação do tecido museológico nacional, a implementação dos núcleos de apoio a museus, a promoção e a credenciação de museus, a articulação com outras redes nacionais e internacionais, a descentralização da oferta cultural e o envolvimento dos públicos;
Não me interpretem mal. Eu concordo que o papel da rede é o descrito na citação do Decreto-Lei n.º 79/2023, de 4 de setembro acima transcrita. O que eu não concordo é que a RPM se mantenha apenas como um “departamento” ou ramo dentro da EPE, quando deveria ser um organismo autónomo, ainda que dependente da administração central, com capacidade e meios para cumprir as funções atrás descritas. É certamente da minha pouca experiência em termos de administração pública, mas uma organização distinta, com possibilidade de participação de outras tutelas (públicas e privadas), de pequena dimensão e de responsabilidade partilhada (principalmente a financeira), com critérios de participação bem definidos (em termos de recursos financeiros e humanos e responsabilidades) e com um sistema representativo das diferentes áreas nos órgãos de gestão, teria mais força e capacidade do que um “departamento” dentro de uma empresa pública que, queiramos ou não, tem o seu futuro ligado à boa vontade e visão política do governo e facção política que conduzirá os destinos do país em determinada altura.
A existência de uma instituição independente da EPE e com participação activa de diversas tutelas permitiria, na minha opinião:
um sistema de credenciação completamente independente;
responsabilização e participação activa de todas as tutelas;
uma rede de distribuição de recursos eficiente;
a criação de núcleos de apoio diversificados;
uma maior sustentabilidade da própria RPM;
a descentralização e disseminação pelo território.
Enfrentaria alguns desafios e obstáculos, desde logo, o modelo de governação. A criação de uma instituição que representa diversas tutelas implicaria a definição de um modelo de governação mais complexo, mas ainda assim, não me parece que fosse uma empreitada impossível. Há exemplos de redes em que administração local e central (a Rede Nacional de Bibliotecas Públicas, por exemplo) estabelecem contratos programas com encargos e participação mútuos ou de projectos na área da cultura para os quais foram criadas fundações participadas por diferentes entidades, como são os casos da Casa da Música ou de Serralves. É possível seguir este caminho, diria eu.
Estou certo que haverá bons argumentos a favor da manutenção da RPM na Museus e Monumentos, mas os que vejo (sob uma perspectiva enviesada certamente) não fazem pender a minha balança para outra opinião que não esta.
Estou então cauteloso e expectante! A aguardar que 2024 seja um ano marcante (pelo menos já é um ano de acção) para os museus, monumentos e património cultural português. Para já fez-me voltar a escrever e a reflectir aqui.
Um Bom Ano para todos!
Uma nota para o sistema SIPA que falha sempre que se tenta abrir uma imagem e tem sido votado, como outros sistemas de documentação, a um abandono incompreensível. Falaremos nisso noutra altura. ↩︎
Começo por dizer o que acho que qualquer pessoa de bom senso e com conhecimento da realidade dos museus portugueses pensa da municipalização do Museu (antes Regional) de Arqueologia D. Diogo de Sousa: é uma decisão incompreensível e estúpida! Tentarei explicar, em seguida, porquê.
Não é necessário escrever aqui um resumo da história da criação do museu ou mencionar a sua importância para a arqueologia portuguesa e para outros museus que o procuram como referência no estudo, restauro e conservação de coleções arqueológicas. Tudo foi escrito, de forma muito clara, no texto da petição que subscrevi intitulada “Em defesa do Museu de Arqueologia D. Diogo de Sousa” e pelas vozes de colegas de museus e arqueólogos que têm dado o seu contributo sobre este assunto nos mais diversos canais.
No entanto, é necessário, aliás, essencial que se ouça a opinião de decisores políticos diretos neste processo – que não foram claramente ouvidos (aqui um outro caso) – e perceber que quando queremos resolver um problema, não o podemos passar sem mais para a responsabilidade de outrem, sem pensar nas consequências da nossa decisão.
Além de ouvir as instituições políticas interessadas, algo que me admira muito não ter sido feito (ler ironicamente), estranho muito que a decisão de municipalizar museus como o D. Diogo de Sousa (MDDS) não tenha sido apresentada à sua direção, à equipa do museu, desde logo, mas também às associações profissionais do sector e à academia, tendo em conta o perfil do museu e o seu reconhecido trabalho conjunto com a Universidade do Minho (já com décadas de boas experiências). Eu sei que não é necessário que o façam, mas parece-me que este tipo de decisões já deveriam ser mais participadas em Portugal. Se queremos municipalizar para chegar perto das pessoas, comecemos a chegar perto das pessoas chamando-as para participar numa decisão tão sensível como a de alterar a tutela do museu.
Um outro aspecto que me parece ter sido completamente negligenciado foi a avaliação de situações semelhantes. Já temos experiência de municipalização de outros museus que tiveram em tempos um caráter regional, um caso bastante conhecido é o do Museu de Aveiro. Se temos estes casos, não seria avisado procurar ter uma avaliação dessa mudança de tutela relativamente a alguns indicadores a definir (equipa, público, gestão das coleções, etc.), antes de pensar em municipalizar mais um museu com estas características? Há essa avaliação e não é conhecida? Posso ser eu que ando distraído, mas parece-me que não há. Não havendo, corremos o risco de tomar uma decisão desinformada.
Eu tive a oportunidade de estagiar no MDDS e de ter aprendido muito sobre museus, arqueologia, documentação e gestão de coleções com o Mário Brito, o Manuel Santos e com a Isabel Silva. Sei bem a importância que o Museu tem para Braga, para o Norte de Portugal e para o país no seu todo. Sei a importância que tem a nível da Arqueologia portuguesa e do conhecimento da nossa história enquanto território e país. Sei também que um museu municipal, por muito que o Município faça, tem responsabilidades diretas com a sua comunidade em primeiro lugar e não se lhe pode pedir/exigir o que se pode a um museu nacional ou regional. Por isso mesmo, acho irresponsável esta incompreensível decisão tomada nos corredores da Ajuda.
No início da pandemia, não sei bem se recordam, uma frase bonita cravou-se em desenhos de arco-íris feitos por crianças e que todos, inclusive lá por casa, colocamos na janela. Vai ficar tudo bem! era o que se dizia (e bem) numa altura em que fomos confrontados com uma situação de emergência dura e que obrigou a um confinamento duro e penoso, com consequências que ainda estamos por avaliar! Os museus, bem como muitas instituições na área da cultura, ficaram vazios e fechados, viram-se obrigados a mudar e procurar meios de estar com os seus públicos e de inovar, quase sem meios, para cumprir o seu propósito, no entanto, mesmo face a uma situação como a que vivemos nestes últimos anos, o que é que o sector utiliza ainda para avaliar os museus? Sim, adivinharam, o número de visitantes e o famigerado estudo da The Art Newspaper (que dá para jeito para fazer uma t-shirt catita com a frase “My museum have more visitors than yours!”) que tem ressonância por cá neste artigo do Expresso. Vai ficar… tudo na mesma! É o que é!
E porque acho que vai ficar… tudo na mesma!? É simples! Bater numa tecla que já era muito questionável antes da pandemia, e achar que podemos continuar, em pleno século XXI, a aferir a qualidade dos museus pelo número de visitantes, é parvo (desculpem mas não encontro termo mais simpático do que este). Eu sei que é uma forma simples, talvez a mais abrangente de o fazer. Não exige mais de nós, da comunidade de museus e dos seus profissionais, do que recolher os dados que nos pedem sobre a quantidade de visitantes que recebemos e para os jornais, sempre ávidos por mostrar estes números, é uma boa forma, como de resto são os “rankings” de forma geral, de ter uma notícia que obtém uma porrada de clicks e partilhas, sem questionar, por exemplo, porque é que não se encontram nestas listas museus que discutem temas pertinentes e actuais, como o racismo, as migrações, a descolonização, a equidade, a acessibilidade, ou, se preferirem, o papel dos que estão neste top 100 na discussão desses e de outros temas (a guerra seria um bom tema para se discutir, não só a da Ucrânia, mas todas), já que têm uma audiência tão vasta.
Vai ficar… tudo na mesma! É o que acho. Mantemos esta forma de avaliação, consequentemente de financiamento, e deixamos na penúria, porque não eram visitados em massa, um grande número de museus que cumprem um papel fundamental para a sua comunidade, com programação de proximidade, que funcionam como fóruns de partilha e discussão para muitas comunidades, que procuram aproximar gerações, que dão a conhecer o património local, que potenciam e suscitam a criatividade e a curiosidade, entre muitas outras actividades meritórias, porque continuamos, sem questionar seriamente o estado das coisas, a achar que o número de visitantes é que é.
E vai ficar… tudo na mesma… porque me parece que com a transformação digital que se prevê para os museus, passemos do número de visitantes (físico) para o número de clicks, interacções e partilhas, sem questionar também, o propósito e as formas como colocamos a informação das coleções, do património cultural online e de que forma podemos (e devemos) potenciar o esforço que os museus despendem nos processos de digitalização.
Podemos refletir, se quisermos, como dar a volta e usar este número a nosso favor, procurar perceber como estes estudos são feitos e o que privilegiam (as exposições temporárias, como nota bem o Luís Raposo no comentário ao Expresso) ou perceber o que motiva os acréscimos de visitantes (de que o José Soares Neves dá um bom exemplo com a pirâmide do Louvre também ao expresso) e intervir nesse sentido, entrando como o fizemos várias vezes, no percurso das grandes exposições internacionais ou construindo museus icónicos. Mas não seria melhor, mais eficiente para a maioria dos museus (mesmo estes do actual top 100), procurar novos modelos de avaliação, novos modelos de “rankings”, uma refundação da forma como nos vemos, como nos questionamos, pensar criticamente como queremos verdadeiramente ser avaliados e financiados (ou dar conta do financiamento que temos) para um novo século?
Há uma promessa que é sagrada nas diversas campanhas eleitorais desde que comecei a trabalhar em museus: 1% para a Cultura. Ora, a bem dizer, eu já comecei a trabalhar em museus, na área da cultura, no século passado, corria o belo ano de 1996. Vai daí, se a matemática não me falha, pelo menos há 26 anos que temos alguém a prometer 1% para a Cultura!
A despesa em Cultura em percentagem do PIB é continuadamente baixa, mesmo contando com o investimento em Cultura feito noutras esferas, como as Câmaras Municipais, aquilo que o Estado, ou seja todos nós, investimos em Cultura, está longe de ser o desejável num país onde os partidos todos apresentam frases pomposas sobre a nossa cultura como:
“Porque a cultura deve ser inclusiva, abrangente e envolvente, promoveremos políticas públicas orien- tadas para a acessibilidade e participação alarga- da de públicos e a sua ligação às instituições, às obras e aos criadores.”
Programa eleitoral do PS
“A cultura foi um dos setores mais afetados pela pandemia, com as medidas sanitárias a impedirem ou condicionarem fortemente ati- vidades ao longo do tempo.”
Programa eleitoral do BE
“A Cultura é um pilar da democracia. Exige uma política de forte responsabilidade e capacidade de acção pública. Requer a existência de um Ministério da Cultura digno desse nome, invertendo e rectificando a linha de esvaziamento e desresponsabilização da Administração Central.”
Programa eleitoral do PCP
“Entendemos a cultura na sua dimensão integradora, capaz de superar a divisão entre produtores e consumidores e de transbordar para além dos acanhados limites sociais das elites, como são elementos essenciais ao Homem para a compreensão do Outro (da riqueza da diversidade) e do Mundo”
Programa eleitoral do PSD
“Respeitar o nosso património. Reabilitar e conservar os edifícios de interesse nacional.”
Programa eleitoral do CDS
“A iniciativa liberal defende que a cultura faz parte de uma sociedade saudável, e que a preservação do património comum, a exploração de identidades comunitárias, e a criação artísticas têm de fazer parte da vida de pessoas livres.”
Programa eleitoral da Iniciativa liberal
“Para o PAN, Arte, Cultura e Educação são conceitos que não se devem separar, uma vez que ligam o mundo ideal ao real, mudando deste modo a nossa percepção sobre nós próprios e o que nos rodeia.”
Programa eleitoral do PAN
Sei bem que há outros sectores que têm maior prioridade na distribuição da nossa riqueza. A educação, a saúde, a área social, por exemplo, precisam cada vez mais da nossa atenção e de um forte investimento, quando percebemos, por causa desta pandemia, quão frágil pode ser o nosso sistema de saúde se necessitar de direcionar uma quantidade significativa de recursos para um só problema, quando percebemos os escassos recursos que temos nas escolas para garantir um acesso continuado e eficiente aos mais desprotegidos e a quantidade de pessoas afetadas, de uma ou outra forma, pelo resultado dos confinamentos necessários para evitar males maiores.
No entanto, a Cultura podia, devia, em minha opinião, ser um dos eixos estruturais de uma política para o futuro, de longo prazo, juntamente com a educação, a ciência e o meio ambiente. Para o ser, a visão dos partidos sobre ela precisa de ser mais abrangente. Temos que a deixar de enquadrar esta área como um sector individualizado e olhar para ela, sem pudores, como um eixo de desenvolvimento económico, social e científico que permita melhorar as condições de vida das pessoas através do seu próprio desenvolvimento e, consequentemente, do desenvolvimento do país.
Investir nestas áreas é garantir o futuro das gerações que nos seguem e o futuro do País. Alicerçar o futuro na educação, na ciência, no meio ambiente juntamente com a cultura representa uma mudança necessária e urgente, mas desconfio que ninguém a queira fazer. Não conseguimos cumprir ou fazer cumprir uma promessa antiga e mantemos este 1% para a Cultura como uma miragem que, pelo menos a mim, me parece inatingível nos próximos anos.
Enquanto não o fizermos os museus (e não só) definham.
Não há qualquer autonomia real na sua gestão, precisando sempre do apoio dos seus grupos de amigos e de autorizações estapafúrdias da Ajuda (que nome apropriado para a alojar o MC) para a compra do essencial. Não temos como definir planos estratégicos para o desenvolvimento do trabalho nos museus com as suas coleções e com os públicos. Não há trabalho em rede, porque aquilo que foi para a minha geração um farol de esperança, a Rede Portuguesa de Museus, hoje em dia é uma inexistência, desconsiderada até no programa do PS (e em grande parte dos outros partidos), que merecia uma atenção de todos nós para uma refundação mais participativa e ativa. Enquanto mantivermos o estado atual da situação, mantemos os museus a operar com equipas envelhecidas, sem rejuvenescimento, sem a passagem de testemunho essencial para o conhecimento sobre as coleções e a instituição, sem novas competências essenciais para enfrentar os desafios tecnológicos que agora se apresentam. Enquanto assim estivermos manteremos não só os museus, mas as bibliotecas, os arquivos, os teatros, as companhias de dança, as indústrias culturais, todo um sector refém de migalhas e incapacitado de procurar, pelos próprios meios, o financiamento necessário para o seu desenvolvimento. A revisão de uma lei de mecenato capaz e adaptada à nossa realidade é também outra das promessas continuadamente adiadas.
Nestas eleições, pela primeira vez em muito tempo, estou desiludido e sem vontade de votar em nenhum dos senhores do 1% para a Cultura. Dei-lhes, demos-lhes, todas as oportunidades de cumprir a promessa e não o fizeram. Irei votar, como sempre, mas pela primeira vez desde 1990, votarei sem qualquer convicção a não ser a de cumprir um direito que me foi entregue pelos que me antecederam e que não devo negligenciar.
Já há algum tempo que ando a pensar sobre os desafios que temos pela frente (os já visíveis e os que podemos prever) no âmbito da documentação em museus. A exploração deste tema é, a meu ver, importante ou mesmo essencial para que nos preparemos para o futuro, dotando os museus e os seus profissionais das ferramentas necessárias para agir quando confrontados com um desses desafios, mesmo que isso signifique estar quieto, sem acção – que por vezes é o mais avisado.
Esta exploração começou, de certa forma com o projecto Mu.SA e com a reflexão que fizemos para o projecto e para o desenvolvimento do percurso formativo aí criado, no entanto, há desafios técnicos e éticos que não se resumem só às competências a adquirir. Há políticas, procedimentos, avaliações, etc., sobre as quais precisamos de focar a nossa atenção e discutir abertamente como podemos, enquanto comunidade, enfrentar os novos desafios, presentes e futuros, que nos serão (ou estão a ser já, em muitos casos) colocados. No seminário que apresentarei com a Acesso Cultura é exatamente isso que pretendo discutir e trazer à liça! Descrevi-o assim:
A documentação em museus é uma das tarefas mais relevantes e necessárias face à transformação da sociedade e aos desafios que esta enfrenta com a transformação digital. Neste seminário abordamos os desafios que se colocam aos profissionais de informação e documentação nos museus face às questões técnicas, como a normalização, a evolução tecnológica, a massificação da procura e a diversidade de meios existentes e, da mesma forma, face às questões éticas como a acessibilidade, a inclusão, a equidade, a polifonia, o legado colonial e as minorias.
Espero estar à altura deste desafio e convido todos a juntarem-se a mim online (Zoom) no próximo dia 4 de Abril, das 18h às 21h. Todas as informações sobre o seminário estão disponíveis na página da Acesso Cultura.
Há uns tempos, nos anos da crise financeira, comecei a escrever um texto aqui para o Mouseion que rezava o seguinte:
Esta semana voltei a dar aulas no mestrado de museologia da Universidade do Porto e fiquei surpreso com a quantidade de alunos (segundo me disseram são 29 ao todo) matriculados. Pode ser engano meu, mas nos últimos anos tinha notado um decréscimo acentuado no número de alunos no mestrado que, sem ter grandes dados para analisar, atribuía às dificuldades financeiras sentidas pelas famílias e pelos profissionais de museus e ao peso que tinham na decisão de continuar os estudos nesta área, relativamente a outras prioridades da vida. Compreenderão certamente o porquê do meu espanto com uma sala cheia, numa altura em que, convenhamos, a saúde financeira geral não teve significativas melhorias.
Durante a sessão fiquei contente, confesso. Em primeiro lugar, e de forma egoísta, porque é bem melhor ter uma aula com uma sala cheia, mesmo que mais caótica e barulhenta (que não foi o caso), em que há interesse nos assuntos discutidos e onde a direcção da aula não é só professor-aluno! Em segundo, porque foi um interesse real em diversos aspectos da documentação.
Uns dias mais tarde, já depois de falar com colegas e família sobre esta minha admiração, vieram-me à cabeça as conversas tidas no último evento do ICOM Portugal com diversos amigos e colegas de profissão sobre o estado da profissão no nosso país e apoderou-se de mim um sentimento de preocupação enorme que se pode expressar assim: “Temos muita gente nova a ser formada, ninguém a ser contratado pelos museus, os quadros dos museus a envelhecer e a chegar à reforma, não tarda nada perderemos muito, mesmo muito, com esta quebra entre gerações, esta continua aprendizagem que foi existindo durante alguns tempos e de que a minha geração ainda usufruiu!”
O evento que ali falo foi o Encontro de Outono de 2016 sobre o tema Museus, Comunidade e Turismo: um triângulo virtuoso? e lá a conversa sobre este tema surgiu na sequência da notícia da reforma de um colega e sobre a ausência de um processo de substituição que permitisse uma passagem de testemunho desempoeirada e eficiente dos assuntos do museu e coleções que estavam ao seu cuidado. Uma situação que considero deveras preocupante para os museus em Portugal. Perde-se a passagem de informações importantes, a discussão entre gerações, a aprendizagem e a confrontação (que se espera sadia), perde-se muito e com este hiato, não se ganha nada.
De 2016 até agora pouco mudou. Não contratamos, salvo raras excepções. Os museus continuam a ser vistos, na maior parte dos casos, como instituições que dão prestígio e relevo, por vezes até vantagem política, mas são raros os casos de um investimento continuado, sério, com estratégia, com políticas de coleções com reflexão e estudo de temas recentes, sustentados por coleções estudadas e desenvolvidas com cabeça, tronco e membros, com equipas sólidas, com formação apropriada (e já agora diversificada, sem a prisão da coleção) e continuada. A nível central, se retirarmos a boa intenção do relatório do Grupo de Projeto Museus no Futuro, muito bem conduzido pela Clara Camacho, e a conclusão de alguns dos concursos para diretores de museus, esta legislatura caminha (de novo) para ser um desperdício (de tempo, de pessoas, de recursos).
No entanto, agora anunciam-nos que vem aí uma enorme bazuca, dinheiro a rodos que chegará a todos. Que teremos recuperação de edifícios, novos recursos, equipamentos, transição digital, wifi e mais… mas nem uma menção aos que terão que lidar com a transição digital (e com outras) estando dentro da estrutura ou ao cuidado que devemos ter na substituição atempada das equipas com novos profissionais, com outras ou mais qualificações, que possam receber a preciosa ajuda de quem conhece os cantos à casa. Será mais um ponto a agravar a falha intergeracional nos museus, em meu entender.
Ainda que seja para mudar a casa totalmente, é importante que este intervalo de gerações que eu sinto, diminua. Espero que as tutelas percebam isso e renovem as suas equipas a tempo.