Breve História da Documentação em Museus

Breve História da Documentação em Museus

A documentação em museus, tal como a conhecemos hoje, passou por uma longa evolução. Desde as primeiras coleções privadas até os sofisticados sistemas digitais atuais, o modo como os museus registam e gerem as suas coleções reflete mudanças culturais, tecnológicas e institucionais.

Neste post, vamos elencar apenas alguns momentos relevantes da história da documentação em museus e entender como chegámos ao atual estado de desenvolvimento.

Para uma história da documentação completa e muito mais informada do que este breve texto, aconselho o brilhante trabalho da Maria Teresa Marín Torres (Marín Torres, Maria Teresa. Historia de la documentación museológica: la gestión de la memoria artística. Gijón: Trea, 2002.) que percorre com detalhe os momentos essenciais do desenvolvimento desta áreanos museus. Podem também ver, em acesso aberto, um excelente texto sobre os “visionários da memória artística” na revista da Faculdade de Letras também da autoria da Maria Teresa.

Começamos, obviamente, pelo início:

1. As Origens: Gabinetes de Curiosidades

A documentação em museus tem as suas raízes nos gabinetes de curiosidades dos séculos XVI e XVII. Nessa época, colecionadores aristocráticos reuniam objetos exóticos e raros como entretenimento, mas também como demonstração do status social e intlectual. A documentação era limitada a inventários rudimentares, muitas vezes escritos à mão em diários pessoais sem critério que não fosse o registo pessoal. Esses registos serviam mais para manter o controle (uma espécie de cadastro) sobre os objetos recolhidos do que para fornecer informações detalhadas sobre sua origem ou significado.

A visão da documentação nesta altura concentrava-se em certificar a posse (ainda que pudesse ser duvidosa aos nossos olhos) e não reunir com detalhe toda a informação do contexto original do objeto. A motivação da recolha prendia-se mais com o belo e o exótico do que com a procura de conhecimento sobre o que os objetos ou espécies representavam.

2. O Surgimento dos Museus Públicos

Com a criação dos primeiros museus públicos no século XVIII, como o Museu Britânico (fundado em 1753), surgiu a necessidade de catalogar as coleções de forma mais sistemática. Inventários detalhados começaram a ser feitos, incluindo descrições básicas e informações sobre a proveniência das peças.

Nesta altura começaram a ser criados os primeiros sistemas de classificação e taxonomias para classificação de espécies que depois tiveram desenvolvimentos para as áreas da arte, arqueologia, etnologia, etc. O mais conhecido destes sistemas de classificação é o sistema lineano ou Sistema de Lineu para a classificação do mundo natural que fixou a divisão entre classes, ordens, géneros e espécies para a classificação das plantas criado pelo naturalista sueco Carl Nilsson Linnæus (1707 – 1778). Em Portugal um dos grandes disseminadores deste sistema, correspondente de Linnæus, foi Domenico Vandelli, lente da Universidade de Coimbra, e promotor do sistema no meio académico português.

No entanto, a normalização como hoje a conhecemos ainda era incipiente.

3. A Era da Catalogação Sistemática

No século XIX, com o crescimento exponencial das coleções e a profissionalização do campo museológico, surgiu a necessidade de uma catalogação mais organizada. Museus como o Louvre e o Smithsonian começaram a usar fichas catalográficas detalhadas, com informações sobre:

• Descrição física e técnica do objeto

• Datação e origem

• Classificação por categoria (arte, história natural, arqueologia, etc.)

Foi nesta época que o conceito de “número de inventário” foi consolidado, atribuindo a cada peça um código único para identificação inequívoca dentro do sistema de informação do museu. Sobre o número de inventário, podem consultar aqui no Mouseion, diversos textos e um episódio do “Conversas de Muzé” que refletem sobre o mesmo e sobre a sua evolução. No entanto, é importante perceber que a sua criação foi crucial para o desenvolvimento normativo na documentação das coleções.

Desde então, a discussão sobre normalização cresceu e foram criadas as primeiras normas, ainda que não globais, das quais encontramos ainda testemunho nas antigas fichas de inventário ou catalográficas que os museus detêm (uma nota para este que vos fala: escrever um post sobre a coleção de fichas de inventário que fui reunindo ao longo dos anos). Um longo período decorre até que chegamos à segunda metade do século XX.

4. O Impacto da Tecnologia: Primeiros Computadores

A partir da década de 1960, os museus começaram a explorar a utilização de computadores para a gestão de coleções. Um dos primeiros exemplos foi o da Museum Computer Network (MCN) nos EUA, que procurou normalizar as práticas de documentação e criar uma base de dados num sistema centralizado que serviria um conjunto de museus de Nova Iorque, que se juntaram para obter o financiamento necessário na altura para um computador (um mainframe, em boa verdade) com a capacidade de processamento necessária para o efeito. Esta mudança permitiu:

• Acesso mais rápido às informações das coleções;

• Maior segurança dos registros;

• Possibilidades de pesquisa mais avançadas.

Desde então, o desenvolvimento tecnológico, a massificação dos computadores e o crescimento da utilização de redes de intercâmbio de informação, empurrou os museus e os seus profissionais para uma vertiginosa e acelerada procura de soluções para a construção de um sistema de informação digital que responda eficientemente às solicitações internas e externas de infromação sobre o património guardado nestas instituições.

5. A Revolução Digital e a Documentação Online

O desenvolvimento tecnológico, nomeadamente com a criação e massificação da utilização da Internet, na década de 90, permitiu a disponibilização das coleções online, ampliando dessa forma a acessibilidade por parte do público e da comunidade académica. Nesta altura a pressão para a criação de sistemas normalizados, ou seja, para a criação de normas documentais dos museus, atingiu o ponto de ebulição.

Instituições como o CIDOC, a MDA (agora Collections Trust), a fundação Getty, entre outras, assumem nesta altura um papel fundamental na criação de normas como as Categorias de Informação do CIDOC, o CIDOC CRM (Conceptual Reference Model), a LIDO, a Spectrum, a CDWA (Categories for the Description of Works of Art), a Object ID, entre outras foram sendo criadas e dessiminadas, constituíndo um corpo normativo que tem vindo a ser consolidado no universo dos museus e que tem influenciado o desenvolvimento de normas no sector das instituições de memória.

Com base nesse desenvolvimento e no aparecimento de diversas aplicações de pesquisa nos museus, verificou-se também o desenvolvimento de plataformas digitais como o Europeana e o Google Arts & Culture permitiram que as instituições compartilhassem as suas coleções globalmente através de repositórios que reúnem no mesmo local metadados e objectos digitais de um conjunto cada vez maior de instituições.

Além destas plataformas a documentação das coleções através de sistemas digitais tem constituído um enorme apoio para o trabalho interno nos museus. Catalogação mais eficiente, implementação de procedimentos normalizados, extração de relatórios costumizados, elaboração de estatísticas, gestão de movimentos, de reservas, etc. são algumas das áreas onde a implementação de sistemas digitais constituiu uma enorme revolução para a gestão e preservação das coleções e da informação sobre as mesmas.

6. Tendências Atuais e Futuro da Documentação

Hoje, os museus utilizam sofisticados Sistemas de Gestão de Coleções (CMS), que permitem:

• Integração de dados multimédia (imagens de alta resolução, vídeos, modelos 3D)

• Conexão com redes sociais e plataformas interativas

• Utilização de inteligência artificial para catalogação e pesquisa

Além disso, novas abordagens, como a documentação colaborativa e a inclusão de narrativas comunitárias, estão a transformar a forma como registamos o património cultural.

Conclusão

A história da documentação em museus é um reflexo direto da evolução cultural e tecnológica da humanidade. Ao longo dos séculos, passámos de inventários manuscritos para bases de dados digitais interligadas, e o futuro promete ainda mais inovação com a utilização de tecnologias emergentes como blockchain e realidade aumentada.

No próximo post, vamos explorar os desafios atuais na documentação em museus, incluindo a digitalização de acervos antigos e a preservação de dados digitais.

Tipos de Documentação em Museus

Tipos de Documentação em Museus

O prometido é devido, já lha dizia o grande Rui Veloso na canção. Ora assim sendo, aqui vai o segundo post desta nova vida do Mouseion. Desta feitasobre os diferentes tipos de documentação que devemos encontrar nos museus sobre as suas coleções.

A documentação em museus é um processo abrangente e multifacetado que vai muito além do simples inventário ou cadastro de objetos. Para garantir a gestão eficiente das coleções, os museus utilizam diversos tipos de documentação. No post desta semana, exploraremos os principais tipos de documentação e como eles se complementam.

Inventário e/ou cadastro

Não há como começar por outro tipo de documentação. É uma lista exaustiva de todos, repito, todos os objetos que estão à guarda do museus em determinado momento. Desde que haja uma responsabilidade legal sobre determinado objeto, o museu terá que saber dar resposta a questões muito simples que devem fazer parte de qualquer inventário ou cadastro (o nome é indiferente e podem escolher o que melhor vos aprouver). As questões a que deve saber responder com este tipo de documentação são:

O que é? Onde está? Como é? Como está? De quem é?

Para o fazer o museu precisa de ter uma lista (um excel desta vida, senhores) com informação do número de identificação do objeto (número de inventário, número de cadastro, número de entrada, etc.), informação sobre a localização do objeto atualizada e credível, informação sobre as suas características fisícas (dimensões, materiais, informação intrínseca ao objeto, como marcas específicas e importantes para a sua identificação), informação sobre o estado de conservação e informação sobre a instituição que detém a propriedade do mesmo.

Ajuda imenso, claro está, ter o número de inventário no excel, mas não esquecer de o marcar no objeto, ok? E já agora, uma fotografia. Hoje em dia são baratas, simples de usar e como o código-postal, são “meio caminho andado”!

Depois deste (que deve ser condição obrigatória para uma instituição se chamar museu ou poder guardar património cultural, partimos para outros patamares.

Documentação de aquisição ou incorporação

Deve ser feita quando um objeto entra na coleção de um museu, ou melhor, no processo de entrada de um objeto num museu. Sempre. No entanto, e como bem sabemos, há museus que têm uma enorme lista de pendências para resolver sobre a documentação de incorporação das coleções existentes e por isso é necessário criar procedimentos para o que entra de novo e procedimentos e planos para o que já existe, mas a instituição não tem como provar a sua posse. Os procedimentos de aquisição e documentação retrospectiva podem ser encontrados na norma spectrum (ide e lede) que a versão 4 chega e está já em Português), mas é necessário procurar planear a recuperação das pendências e ter em conta que para as novas incorporações não nos esquecemos de guardar informação sobre:

• a origem do objeto (proveniência anterior)

• a data de aquisição/incorporação

• as condições de aquisição/incorporação, ou seja a descrição do tipo e incporação (compra, doação, escavação arqueológica, entre outros) e informação associada

• a documentação legal, como contratos ou termos de doação

Provar a posse das suas coleções é quase tão importante como o inventário, em termos de documentação! Não existindo informação sobre a incorporação das coleções, o museu sujeita-se a ter pedidos de herdeiros para devolução de objetos ou manter objetos com origem duvidosa na sua posse, para citar apenas dois exemplos.

Catalogação

A catalogação é o processo de organização da informação de uma coleção para a criação do seu catálogo. É o processo mais demorado e exigente da documentação em museus, na minha opinião. Procura combinar e organizar a informação intrínseca e extrínseca sobre cada objeto e sobre as entidades, eventos, documentos e procedimentos a ele associados. É essencial para permitir a construção de um sistema de conhecimento sobre cada coleção que possa ser utilizado para a gestão da coleção, para a criação de narrativas pelo museu, para a organização de exposições, entre muitas outras actividades museológicas.

São aqui registadas de forma detalhada informações como:

• Descrição física (tamanho, material, técnica)

• Autores e outras entidades relacionadas

• Função ou uso

• Datação e período histórico

• Local de origem

• Proveniências (as anteriores à de incorporação)

• Informação de contexto (arqueológico, produção, etc.)

• Fotografias do objeto

• Entre muitas outras informações que dependem do tipo de coleção

A catalogação implica atualização constante e, consequentemente, manutenção de histórico de informações e registos. É um instrumento fundamental para utilizar as coleções e para as colocar ao serviço dos profissinais de museus e da comunidade.

Documentação de conservação

A documentação sobre os processos de conservação (preventiva e curativa) e a informação sobre o estado de conservação das coleções é outro tipo de documentação que importa acautelar e planear cuidadosamente. Não o fazer é deixar ao acaso a manutenção e preservação do património cultural que guardamos nos nossos museus. Deve ser sempre encarada como prioritária nos planos de documentação e nas políticas ao de documentação estabelecidas pelos museus.

Um bom sistema de informação num museu tem sempre acautelada a documentação da actual condição física e funcional dos objetos e mantém um histórico de informação sobre a evolução do estado desde que um objeto é incorporado. O registo de todas as intervenções de restauro é também fundamental. Assim a documentação de conservação deve incluir:

• Condição atual do objeto (e histórico de estados)

• Intervenções de conservação realizadas (limpeza, restauro, etc.)

• Recomendações para armazenamento e exposição

Esses registros ajudam a monitorizar mudanças na condição do objeto ao longo do tempo e a tomar decisões que permitam uma eficaz gestão de riscos.

Documentação de utilização das coleções

É um tipo de documentação frequentemente inexistente e que provoca, na minha opinião, um vazio de conhecimento pouco reconhecido. A documentação de utilização das coleções diz respeito à gestão da informação gerada quando um objeto ou grupo de objetos são utilizados, por exemplo quando um objeto é utilizado numa exposição, num estudo científico, numa publicação ou num outro evento, é gerado um conjunto de informação que devemos guardar e organizar. Este tipo de documentação providência dados relativos a:

• Temas e narrativas de exposições ou outros eventos (palestras, aulas, visitas guiadas, etc.)

• Local e duração das mesmas

• Condições de iluminação e clima no espaço expositivo

• Créditos e acordos de empréstimo, no caso de exposições temporárias

• Referências bibliográficas

• Análises físicas (que podem ser destrutivas em alguns casos)

• Outras informações relacionadas com os eventos de utilização das coleções

Documentação jurídica

A documentação jurídica implica tudo aquilo que o museu deve registar e manter atualizado (incluindo aqui também a prova de posse legal de um objeto) que permita garantir que o museu esteja em conformidade com as leis e regulamentos. Este tipo de documentação cuida de registar e gerir informação sobre:

• Títulos de propriedade

• Direitos de autor, de propriedade intelectual, de imagem, etc.

• Acordos de empréstimo e transferência

• Certificados de exportação/importação de peças

Documentação digital

Todas anteriores tipologias de documentação podem ser digitais (eu diria devem ser ou usar ferramentas digitais), mas atualmente temos também um conjunto de informação digital que os museus devem gerir com regras específicas. A própria base de dados ou o sistema de gestão de informação digital usado deve ser documentado (facilita de sobremaneira atualizações ou migrações), mas objetos digitais como fotografias ou digitalizações dos objetos, representações 3D dos mesmos, obras de arte digitais, entre outros exemplos são alguns dos desafios que enfrentamos atualmente.

Além disso, documentar em formato digital tem um conjunto de vantagens que os sistemas analógicos não permitem.

A documentação digital permite e possibilita:

• Armazenar grandes volumes de dados

• Documentar objetos digitais

• Acesso remoto às informações

• Integração com plataformas online, permitindo que o público explore as coleções

A importância da integração

Os diferentes tipos de documentação não devem existir isoladamente. Sao engrenagens de um sistema complexo, mas fundamental para o museu atual. Formam aquilo que é um sistema de gestão e informação de coleções. Um sistema integrado que permite aos museus gerir as suas coleções, o seu arquivo e o seu centro de documentação de forma eficiente, transparente e acessível.

A documentação é o instrumento da verdade. Se os museus são das instituições mais confiáveis relativamente à informação e conhecimento que produzem e divulgam, em muito se deve a ela e aos sistemas de informação que os museus tem vindo a construir ao longo da sua história.

No próximo post abordarei a história da documentação em museus e como ela evoluiu ao longo do tempo.

Continue a acompanhar o Mouseion para mergulhar ainda mais no fascinante universo da documentação museológica.

CONVERSAS DE MUZÉ | 4º EPISÓDIO – Direito ao esquecimento

CONVERSAS DE MUZÉ | 4º EPISÓDIO – Direito ao esquecimento

Não publicávamos um episódio há 360 dias e ainda assim houve quem não nos tivesse esquecido. Mas… teríamos nós o direito a reclamar o esquecimento?

A apagar todo o registo e documentação do podcast mais irregular do universo?Neste episódio falamos do direito ao esquecimento a propósito da introdução do conceito na legislação europeia. Discutimos que implicações isto pode ter na gestão de informação nas instituições de memória e se queremos, ou devemos, conscientemente determinar o que deve ser esquecido.

Porque falamos de esquecimento, o chefe sugere que conheçam dois projetos maravilhosos que se propõe perpetuar a memória: o Arquivo de Memória promovido pela ACOA– Associação de Amigos do Parque e Museu do Coa e o Rohingya Cultural Memory Centre (RCMC) desenvolvido pela Organização Internacional das Migrações (OIM).

Sejam muito bem vindos de volta!

Imagem deste episódio: Mnemosyne, Mother of the Muses de  Frederic Leighton

Sobre tragédias anunciadas, museus e parques de diversão – Gabriel Moore Bevilacqua

Sobre tragédias anunciadas, museus e parques de diversão – Gabriel Moore Bevilacqua

Não queria ser mais um cidadão ou profissional de cultura a externar indignação sobre a tragédia do Museu Nacional, uma vez que muitos colegas já o fizeram adequadamente. Mas resolvi escrever como forma de compartilhar parte da culpa e da estranheza que continuo a carregar. Inicialmente, tocar fogo no museu mais importante do país no ano de seu bicentenário (sim, nós o fizemos) pode parecer incompreensível, até brutalmente surreal. No entanto, o choque inicial acaba por dar lugar a aceitação de algo anunciado, óbvio, esperado.

Museu Nacional UFRJ

Por Halley Pacheco de Oliveira [CC BY-SA 3.0 (https://creativecommons.org/licenses/by-sa/3.0)], via Wikimedia Commons

Na cidade ou país – o Rio continua sendo a mais maravilhosa das nossas metáforas pátrias – em que se gastam fortunas em novos museus e projetos culturais mirabolantes, enquanto instituições com acervos preciosos permanecem soterradas no descaso e esquecimento, a relação causa e efeito começa a encadear-se em uma lógica perversa e incontornável.Os próprios conceitos colocados na ordem do dia nos parecem confusos e obscuros. Museu é quase qualquer coisa, entidade, espaço ou conceito (perdão pela indiscrição tautológica) que tenha uma programação cultural ou algo que com isso se pareça. Para criá-lo, basta batizá-lo. Acervo é um elemento ultrapassado, custoso, quase desnecessário na nova, revolucionária e sustentável equação museológica cunhada em terras tupiniquins. Para quê conhecer e interpretar o passado se podemos pular o presente e visitar um amanhã cheio de traquitanas e luzes coloridas?

Mais interessante e groundbreaking ainda é inventar os não-museus do amanhã só com um pouquinho de dinheiro público, passar o resultado para os cuidados do Estado corrupto/falido e finalizar colocando a galera global para tomar conta do novo equipamento. Apesar do choramingo eterno pela falta de recursos, dinheiro não foi problema, foi solução. Quem disse que não vemos progresso cultural por essas bandas? Qual a Disneylândia, com uma boa propaganda na telinha e uma ampla fila na entrada, tudo se paga e se justifica. Então, se não conseguimos distinguir o fogo do Museu Nacional do fogo do Museu da Língua Portuguesa ou acervo de cenografia, qual é o problema afinal? Por que tamanha comoção? Não bastaria juntar um troco, mesmo que com certo atraso, para reconstruir a coleção e o museu? Infelizmente, não.

Como bradou nosso distinto Ulpiano Bezerra de Meneses, museu sem acervo é igual mula sem cabeça. Apesar de bonitinho, não passa de folklore. Sim, acervos podem e devem ser digitais se objetivamos documentar a experiência humana recente. Basta reconhecer que cópia digital não é acervo, backup não é política de preservação e atividade museológica não se encerra em umsite ou em uma galeria bem montada com os gadgets do momento. Apesar das inúmeras

iniciativas que continuam a pipocar (mesmo com a ausência de recursos) a mera digitalização aliada à pirotecnia tecnológica jamais substituirá a materialidade dos acervos. Já vociferei antes contra a digitalização selvagem e seus problemas para as instituições de memória, mas reconheço que se ao menos isso tivesse sido feito no Museu Nacional hoje nos restaria mais do que apenas cinzas.

Até podemos chamar um arquiteto famoso e refazer o edifício com ares internacionais pós- modernos a beira mar (a generosa oferta do BNDES daria para rabiscar o desenho), mas recheá- lo a contento seria deveras complicado. Tudo isso para dizer que no país do vale tudo, da fachada e do engodo, museu é curinga, vai de mausoléu a parque de diversões com caça níqueis/público, e conservação é aquela de jardim e condomínio, que vale terceirizar porque é mais em conta.

Dito isto, a tragédia anunciada passaria a fazer sentido, seria até um desdobramento lógico. Só que não…, como diria a geração XYZ, pois as consequências são muito grandes e devastadoras para serem reduzidas a uma cadeia de mera causalidade. Com o incêndio de domingo queimamos não só o resquício material de inúmeros passados, mas a possibilidade de construção de futuras memórias coletivas e individuais. Mutilamos também uma ciência já fragilizada, cuja pesquisa se destacava pela diversidade e preciosidade das coleções do museu. Culturas e espécies já extintas foram dizimadas mais uma vez, talvez definitivamente, agora pelo desaparecimento de seus únicos ou poucos vestígios materiais. Se juntarmos a esse quadro de devastação a situação atual das duas instituições máximas de memória remanescentes (Arquivo Nacional e Biblioteca Nacional) e da vasta maioria dos nossos outros museus, nossa perspectiva enquanto sociedade organizada e Estado de direito torna-se ainda mais débil e duvidosa do que aquela apontada pela eleição que se aproxima.

A violência inicial do ocorrido nos levou a apontar dedos em busca de culpados para dar vazão à nossa justa indignação, mas o abandono das nossas instituições não é de hoje ou de anos, mas sim de décadas ou talvez séculos. O descaso e a incompetência apontam facilmente para o governo, para a universidade e órgãos públicos envolvidos na confusa e burocrática gestão do patrimônio cultural brasileiro. Se o objetivo da reflexão acerca desse imenso trauma é sua superação, essa identificação fácil e imediata, apesar de óbvia e necessária, não nos ajuda a distinguir com clareza a complexidade do problema. Nós, enquanto sociedade, devemos assumir a responsabilidade pela destruição do Museu Nacional em todas as suas instâncias. Enquanto representantes políticos corruptos e gestores incapazes ou incoerentes. Enquanto pesquisadores e profissionais egoístas, incompetentes e passivos. Enquanto cidadãos e eleitores ignorantes e suscetíveis.

Retornando ao objetivo inicial de compartilhar minha culpa e estranhamento, gostaria de desenvolver mais profundamente a questão da responsabilidade enquanto gestor, pesquisador e profissional de museu. Falamos pouco. Gritamos pouco. E fizemos menos ainda. Nosso simbólico abraço foi post mortem. Fomos incapazes de entender a especificidade do museu e priorizar suas demandas mais essenciais. Cometemos inúmeros erros e ignoramos premissas básicas do trabalho museológico. Não existe pesquisa ou exposição se o acervo não estiver documentado ou deixar de existir. Uma ação de difusão nunca pode ter prioridade de recursos se questões cruciais de infraestrutura, conservação, segurança e documentação não estiverem superadas. A difusão pode ser postergada em detrimento da salvaguarda das coleções, jamais o contrário.

Conhecer e documentar aquilo que temos é uma obrigação. A preservação física e a permanência de sentido devem ser reconhecidas como obrigações básicas e elementares. Devemos nos lembrar sempre de que temos um compromisso com as gerações futuras e não respondemos somente a demandas e pressões imediatas. A pesquisa ou a curadoria que fazemos (infelizmente conceitos muito apartados hoje) são apenas algumas das interpretações possíveis, não são as únicas ou as derradeiras. Nosso maior desafio é garantir acesso qualificado para que a sociedade possa construir conhecimento e narrativas a partir do que preservamos e não se dedicar a elaboração de um discurso único ou definitivo a respeito de nossas coleções.

O acervo não pertence a um pesquisador ou funcionário específico, mas sim à instituição que tem por obrigação garantir seu acesso à sociedade. A exposição não deve ser mais a única forma ou a estratégia prioritária de difusão de acervos. A desproporção, via de regra, entre a capacidade e alcance expositivo e o tamanho dos acervos aponta, obrigatoriamente, para a priorização de instrumentos digitais de acesso e pesquisa. No entanto, é fundamental também reconhecer o papel central e preponderante da conservação preventiva e do profissional de conservação nas instituições de memória. Costumamos brincar, não sem um gigantesco fundo de verdade, que se a palavra final não é do conservador, a instituição não pode ser séria.

O jeitinho, o improviso e o personalismo devem dar lugar ao trabalho embasado em conhecimentos e procedimentos técnicos consolidados e validados pelas comunidades profissionais especializadas. A nossa ética enquanto profissionais de memória/preservação deve ser mais forte do que os interesses, relações e rixas pessoais, do que a insatisfação com o trabalho ou com o salário, ou a ausência de condições que consideramos básicas. Devemos nos manifestar sempre, e relatar tudo que julgamos inadequado ou fora do lugar. Não devemos nos calar. Nossa postura precisa ser menos reativa e imensamente mais proativa. Temos o direito de conhecer as condições e obter informações a respeito do nosso patrimônio cultural. A ausência de recursos materiais não pode ser uma justificativa para a inação e a acomodação. Esperar não é mais saber.

Só vemos comentários de reitores e professores. Onde estão os conservadores, museólogos, arquivistas e bibliotecários do museu? É preciso reconhecer que o trabalho no museu é técnico e especializado. Sua gestão não é atividade secundária ou hobby de docente, pesquisador ou curador. Muito infelizmente, o curador no sentido clássico enquanto “cuidador” de acervos quase que inexiste hoje. Já a prioridade do docente é sua produção científica e a formação de seus alunos e orientandos. E se não for isso, algo está muito errado na universidade brasileira. O quão revelador e triste é a dependência da contribuição de pesquisadores e visitantes para tentar reconstituir qualquer representação do acervo que se foi. Onde estão os sistemas de documentação das coleções do museu? Será que o Museu Nacional já foi algo mais do que um mero repositório de fontes e espécimes para a pesquisa científica realizada na universidade? Quanto desse antes massivo e inesgotável acervo (nacional e não meramente universitário ou da UFRJ) mereceu atenção dos pesquisadores da universidade? O que foi feito do restante? Museu não é feudo e curador não deveria ser senhor de nenhuma coleção. Acervos públicos pertencem a sociedade e os funcionários das instituições que os preservam têm por obrigação não só garantir sua conservação, mas também seu acesso e transparência em relação a sua gestão e situação patrimonial.

Tragédia Museu Nacional

Por Felipe Milanez (Sent by the photographer — OTRS-sent) [CC BY-SA 4.0 (https://creativecommons.org/licenses/by-sa/4.0)], via Wikimedia Commons

As associações profissionais devem trabalhar pelos interesses de seus campos profissionais e de suas instituições e não pela suposta garantia medíocre de emprego vislumbrado pela carteirinha de profissional reconhecido por uma legislação torta e antiquada, mas continuamente ignorado e maltratado pelo mercado de trabalho e pelas próprias instituições as quais dedica sua vida. Já nos perguntamos quanto ganha (ou deveria ganhar) um museólogo, bibliotecário, arquivista ou conservador no Brasil? Precisamos de mais profissionais e menos de empregados. Trabalhar em um museu precisa ser mais do que fazer exposições para os nossos pares juntando obras em torno de textos herméticos e insípidos, que ao final dizem mais sobre o curador e a disfuncionalidade das instituições do que sobre as obras. Precisamos de diagnósticos, indicadores e metas próprios para avaliar o que está acontecendo em nossas instituições de memória. O valor de um museu é muito mais amplo do que a quantidade de público que ele supostamente recebe e maior ainda do que a cobertura de uma imprensa supostamente especializada, que jamais se deu ao trabalho de entender o objeto de sua nota antes de definir, avaliar, julgar ou corroborar. O evento, a notícia e a visibilidade são, quase sempre, vazios e fugazes.

Restou algo dos milhões e milhões investidos nas exposições blockbusters com sobras de acervos de museus gringos? Mas é fundamental para a formação do olhar culto dos brasileiros, diriam uns. Mas e quanto ao nosso British Museum e Natural History Museum, que se foi da noite para o dia, sem ao menos sabermos o que guardava? Nem os inventários e catálogos das coleções que se foram conseguimos acessar? Será que existem? Queremos ser MoMA, Louvre e Metropolitan, mas sequer conseguimos dizer o que temos e para onde estamos indo. Reconhecemos facilmente as obras primas dos outros, mas as nossas merecem pouca atenção, se formos capazes de identificá-las. Nossos milionários, nossa magnânima elite ilustrada gosta de investir em museus estadunidenses, mas tem receio das nossas instituições. A síndrome do vira-latismo tropical continua a nos assombrar.

Precisamos rever e reposicionar o lugar de nossos museus e acervos. A resposta não é criar novos museus, seja do zero ou a partir de escombros e ruínas. Vamos cuidar do que sobrou, daquilo que já (ainda) existe e continuamos a desconhecer. Vamos dar nome aos bois. Devemos reconhecer o que é museu e qual é o seu negócio, ou core business, como insistem outros. Precisamos seguir os códigos de ética que nós mesmo inventamos. Museu é coisa séria. Se a intenção é brincar de qualquer outra coisa, que ao menos tenhamos a coragem de nomear a contento. Palavra também é coisa séria.

Assim quem sabe concentramos melhor o quase nada em algum lugar digno de investimento. A opção, como diriam alguns colegas, seria arrendar tudo para algum país sério de clima temperado ou para um canal televisivo qualquer, e singrar de vento em popa a transformação (já em andamento) do Rio-Brasil na nação cenográfica que tanto estimamos. Futebol, carnaval, copas, olimpíadas, caipirinhas, favelas, fio dental e belas paisagens. O turismo, a indústria cultural e os companheiros que podem se mudar para Miami ou Portugal agradecem.

10 de setembro de 2018. (Oito dias após a hecatombe da memória cultural e científica brasileira)

Gabriel Moore Forell Bevilacqua
Cidadão e profissional de museus e arquivos envergonhado

A documentação e os “falsos”!

A documentação e os “falsos”!

A exposição “A Cidade Global: Lisboa no Renascimento” que há tempos teve a cerimónia de inauguração no Museu Nacional de Arte Antiga teve mais destaque na imprensa do que é habitual nas exposições em Portugal, mas infelizmente pelos piores motivos. A questão dos “falsos” quadros que estão na origem da realização da exposição após a identificação dos mesmos por Annemarie Jordan Gschwend e Kate Lowe como uma “uma vista da Rua Nova dos Mercadores, destruída pelo Terramoto de 1755“, não deveria ser, na minha opinião, a questão central! Mas como tem sido, falemos da sua relação com um tema que me é caro: a documentação em museus.

A argumentação dos “falsos”

Eu não tenho conhecimentos para entrar na discussão sobre a veracidade das obras em causa. Não sou historiador, nem historiador de arte e não tive qualquer acesso às fontes ou às obras para me pronunciar sobre as mesmas e, ainda que o tivesse, escusava-me por completo dessa tarefa. No entanto, gosto de uma boa troca de argumentos quando ela é séria e me apresenta factos ou elementos que sustentem cientificamente uma opinião.

A questão é levantada por Diogo Ramada Curto neste artigo no Expresso onde se interroga “Lisboa era uma cidade global?” utilizando a questão das pinturas para, em meu entender, ligar a produção da exposição a uma visão da História que glorifica o passado imperial e descarta uma outra visão, em que se insere, que se insurge contra uma narrativa que vê como colonialista e centrada no umbigo do mundo representada pela metrópole. Eu percebo a questão e a argumentação, ainda que não concorde, mas voltemos aos “falsos”.

Na mesma edição do Expresso, Miguel Cadete, Alexandra Carita e Hugo Franco, publicam um extenso artigo sobre o assunto onde apresentam os argumentos de DRC, acrescentando algum contexto e outros dados, sob o título “Museu de Arte Antiga abre as portas a obras suspeitas”. Título que dava, por si, um tratado sobre o tema que aqui me traz, mas que, por agora me suscita apenas o seguinte comentário: digam-me um museu, um apenas, que não abre a porta a obras suspeitas? Se não abrir deixa de cumprir uma parte do seu trabalho de análise e investigação da cultura material, não?

Após aquele texto, somos brindados com outro intitulado “Conservadores do Museu de Arte Antiga não se entendem“. No mesmo, imagine-se, alerta-nos o Expresso, pela voz de Miguel Cadete, que há dois conservadores do MNAA que não têm a mesma opinião sobre as obras! Imagine-se o pecado mortal de ter na mesma instituição, dois especialistas com opiniões diversas! Coisa inédita, bem sei! Mas ainda assim feliz e que me parece um bom sinal.

Para que se eliminassem todas as questões, e de acordo com o Expresso uma vez mais, são pedidos exames laboratoriais pelas palavras do próprio Ministro da Cultura (não percebo porque teria de ser ele a fazer esta declaração), seguidos de uma declaração do director do MNAA a indicar que a decisão ainda não tinha sido tomada por causa das devidas autorizações e questões técnicas associadas.

No Expresso ainda sai pouco tempo depois um texto de Ramada Curto sobre a forma como aborda a polémica e sobre a intenção de aproveitamento de uma exposição como instrumento político ao serviço de uma ideia que condena e que me parece nada ter a ver com a questão da autenticidade desta ou daquela obra, mas sim com uma visão mais genérica da questões (não era preciso criticar a autenticidade, para defender a sua tese sobre o tema). Um dia depois Fernando Baptista Pereira publica também este texto onde afirma categoricamente que “os quadros não são falsos!”.

Chegados ao dia da inauguração temos casa cheia e uma notícia no expresso sobre a “Lisboa Global”: Uma polémica local. Um título que diz tudo sobre as questões levantadas e sobre a forma irritadiça que a discussão tomou, ao contrário do que deveria ter acontecido. Afinal o debate, a diferença, a argumentação e contraditório deveriam sempre caber no Museu e na Academia, não é?

E agora em que ficamos?

Passada a polémica, poeira bem assente no chão, ânimos mais calmos, esperamos e temos a notícia do resultado dos exames a um dos quadros, O “Chafariz d’El Rey”, pertença de José Berardo, que confirmam a sua autenticidade e, segundo o Expresso, sabemos que o relatório diz o seguinte:

No que diz respeito à análise dos materiais constituintes e da forma como estes são aplicados esta obra terá sido executada muito provavelmente por pintor de influência ou naturalidade do norte da Europa a partir da 2ª metade do século XVI, época em que se verifica o uso generalizado do pigmento azul de esmalte e se começam a utilizar imprimaduras coradas

Confirma-se então que a hipotese avançada por Ramada Curto e João Alves Dias estavam erradas e que a autenticidade da pintura vai de encontro ao que as comissárias e o museu esperavam.

É aqui que entra a importância da documentação. Havia diversos elementos que nos poderiam confirmar a autenticidade do quadro (ou pelo menos apontar para ela) sem recorrer a exames, como podemos ler no texto de Fernando Baptista Pereira, mas estavam eles documentados pelo museu ou pelo proprietário? E das diversas investigações feitas pelas comissárias para o livro e, mais tarde, pela equipa do museu, que dados existem, onde estão registados, podemos chegar a eles de forma simples?

Continuamos a ter um enorme fosso entre a informação que existe (e é tratada nos museus pelas suas equipas técnicas) e o acesso que é dado a especialistas e público de uma forma geral. Para que esse fosso se esbata ou, mesmo, deixe de existir é necessária uma mudança nas políticas museológicas que reflicta as necessidades da sociedade actual. Essa mudança de políticas não pode ser vista de forma circunstancial ou imediata, mas sim pensada para o médio e longo prazo. O acesso a um conjunto significativo de informação dos museus na Holanda e Reino Unido, para citar dois bons exemplos agora muito louvados, não aconteceu da noite para o dia. Exige anos de trabalho e investimento na aquisição de competências e meios. Esta mudança não a vemos debatida no Expresso, infelizmente.

Documentação e os "Falsos" - Rua Nova dos Mercadores

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Documentação e os "falsos" - o Chafariz d'el Rey

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