CONVERSAS DE MUZÉ | 4º EPISÓDIO – Direito ao esquecimento

CONVERSAS DE MUZÉ | 4º EPISÓDIO – Direito ao esquecimento

Não publicávamos um episódio há 360 dias e ainda assim houve quem não nos tivesse esquecido. Mas… teríamos nós o direito a reclamar o esquecimento?

A apagar todo o registo e documentação do podcast mais irregular do universo?Neste episódio falamos do direito ao esquecimento a propósito da introdução do conceito na legislação europeia. Discutimos que implicações isto pode ter na gestão de informação nas instituições de memória e se queremos, ou devemos, conscientemente determinar o que deve ser esquecido.

Porque falamos de esquecimento, o chefe sugere que conheçam dois projetos maravilhosos que se propõe perpetuar a memória: o Arquivo de Memória promovido pela ACOA– Associação de Amigos do Parque e Museu do Coa e o Rohingya Cultural Memory Centre (RCMC) desenvolvido pela Organização Internacional das Migrações (OIM).

Sejam muito bem vindos de volta!

Imagem deste episódio: Mnemosyne, Mother of the Muses de  Frederic Leighton

Sobre tragédias anunciadas, museus e parques de diversão – Gabriel Moore Bevilacqua

Sobre tragédias anunciadas, museus e parques de diversão – Gabriel Moore Bevilacqua

Não queria ser mais um cidadão ou profissional de cultura a externar indignação sobre a tragédia do Museu Nacional, uma vez que muitos colegas já o fizeram adequadamente. Mas resolvi escrever como forma de compartilhar parte da culpa e da estranheza que continuo a carregar. Inicialmente, tocar fogo no museu mais importante do país no ano de seu bicentenário (sim, nós o fizemos) pode parecer incompreensível, até brutalmente surreal. No entanto, o choque inicial acaba por dar lugar a aceitação de algo anunciado, óbvio, esperado.

Por Halley Pacheco de Oliveira [CC BY-SA 3.0 (https://creativecommons.org/licenses/by-sa/3.0)], via Wikimedia Commons

Na cidade ou país – o Rio continua sendo a mais maravilhosa das nossas metáforas pátrias – em que se gastam fortunas em novos museus e projetos culturais mirabolantes, enquanto instituições com acervos preciosos permanecem soterradas no descaso e esquecimento, a relação causa e efeito começa a encadear-se em uma lógica perversa e incontornável.Os próprios conceitos colocados na ordem do dia nos parecem confusos e obscuros. Museu é quase qualquer coisa, entidade, espaço ou conceito (perdão pela indiscrição tautológica) que tenha uma programação cultural ou algo que com isso se pareça. Para criá-lo, basta batizá-lo. Acervo é um elemento ultrapassado, custoso, quase desnecessário na nova, revolucionária e sustentável equação museológica cunhada em terras tupiniquins. Para quê conhecer e interpretar o passado se podemos pular o presente e visitar um amanhã cheio de traquitanas e luzes coloridas?

Mais interessante e groundbreaking ainda é inventar os não-museus do amanhã só com um pouquinho de dinheiro público, passar o resultado para os cuidados do Estado corrupto/falido e finalizar colocando a galera global para tomar conta do novo equipamento. Apesar do choramingo eterno pela falta de recursos, dinheiro não foi problema, foi solução. Quem disse que não vemos progresso cultural por essas bandas? Qual a Disneylândia, com uma boa propaganda na telinha e uma ampla fila na entrada, tudo se paga e se justifica. Então, se não conseguimos distinguir o fogo do Museu Nacional do fogo do Museu da Língua Portuguesa ou acervo de cenografia, qual é o problema afinal? Por que tamanha comoção? Não bastaria juntar um troco, mesmo que com certo atraso, para reconstruir a coleção e o museu? Infelizmente, não.

Como bradou nosso distinto Ulpiano Bezerra de Meneses, museu sem acervo é igual mula sem cabeça. Apesar de bonitinho, não passa de folklore. Sim, acervos podem e devem ser digitais se objetivamos documentar a experiência humana recente. Basta reconhecer que cópia digital não é acervo, backup não é política de preservação e atividade museológica não se encerra em umsite ou em uma galeria bem montada com os gadgets do momento. Apesar das inúmeras

iniciativas que continuam a pipocar (mesmo com a ausência de recursos) a mera digitalização aliada à pirotecnia tecnológica jamais substituirá a materialidade dos acervos. Já vociferei antes contra a digitalização selvagem e seus problemas para as instituições de memória, mas reconheço que se ao menos isso tivesse sido feito no Museu Nacional hoje nos restaria mais do que apenas cinzas.

Até podemos chamar um arquiteto famoso e refazer o edifício com ares internacionais pós- modernos a beira mar (a generosa oferta do BNDES daria para rabiscar o desenho), mas recheá- lo a contento seria deveras complicado. Tudo isso para dizer que no país do vale tudo, da fachada e do engodo, museu é curinga, vai de mausoléu a parque de diversões com caça níqueis/público, e conservação é aquela de jardim e condomínio, que vale terceirizar porque é mais em conta.

Dito isto, a tragédia anunciada passaria a fazer sentido, seria até um desdobramento lógico. Só que não…, como diria a geração XYZ, pois as consequências são muito grandes e devastadoras para serem reduzidas a uma cadeia de mera causalidade. Com o incêndio de domingo queimamos não só o resquício material de inúmeros passados, mas a possibilidade de construção de futuras memórias coletivas e individuais. Mutilamos também uma ciência já fragilizada, cuja pesquisa se destacava pela diversidade e preciosidade das coleções do museu. Culturas e espécies já extintas foram dizimadas mais uma vez, talvez definitivamente, agora pelo desaparecimento de seus únicos ou poucos vestígios materiais. Se juntarmos a esse quadro de devastação a situação atual das duas instituições máximas de memória remanescentes (Arquivo Nacional e Biblioteca Nacional) e da vasta maioria dos nossos outros museus, nossa perspectiva enquanto sociedade organizada e Estado de direito torna-se ainda mais débil e duvidosa do que aquela apontada pela eleição que se aproxima.

A violência inicial do ocorrido nos levou a apontar dedos em busca de culpados para dar vazão à nossa justa indignação, mas o abandono das nossas instituições não é de hoje ou de anos, mas sim de décadas ou talvez séculos. O descaso e a incompetência apontam facilmente para o governo, para a universidade e órgãos públicos envolvidos na confusa e burocrática gestão do patrimônio cultural brasileiro. Se o objetivo da reflexão acerca desse imenso trauma é sua superação, essa identificação fácil e imediata, apesar de óbvia e necessária, não nos ajuda a distinguir com clareza a complexidade do problema. Nós, enquanto sociedade, devemos assumir a responsabilidade pela destruição do Museu Nacional em todas as suas instâncias. Enquanto representantes políticos corruptos e gestores incapazes ou incoerentes. Enquanto pesquisadores e profissionais egoístas, incompetentes e passivos. Enquanto cidadãos e eleitores ignorantes e suscetíveis.

Retornando ao objetivo inicial de compartilhar minha culpa e estranhamento, gostaria de desenvolver mais profundamente a questão da responsabilidade enquanto gestor, pesquisador e profissional de museu. Falamos pouco. Gritamos pouco. E fizemos menos ainda. Nosso simbólico abraço foi post mortem. Fomos incapazes de entender a especificidade do museu e priorizar suas demandas mais essenciais. Cometemos inúmeros erros e ignoramos premissas básicas do trabalho museológico. Não existe pesquisa ou exposição se o acervo não estiver documentado ou deixar de existir. Uma ação de difusão nunca pode ter prioridade de recursos se questões cruciais de infraestrutura, conservação, segurança e documentação não estiverem superadas. A difusão pode ser postergada em detrimento da salvaguarda das coleções, jamais o contrário.

Conhecer e documentar aquilo que temos é uma obrigação. A preservação física e a permanência de sentido devem ser reconhecidas como obrigações básicas e elementares. Devemos nos lembrar sempre de que temos um compromisso com as gerações futuras e não respondemos somente a demandas e pressões imediatas. A pesquisa ou a curadoria que fazemos (infelizmente conceitos muito apartados hoje) são apenas algumas das interpretações possíveis, não são as únicas ou as derradeiras. Nosso maior desafio é garantir acesso qualificado para que a sociedade possa construir conhecimento e narrativas a partir do que preservamos e não se dedicar a elaboração de um discurso único ou definitivo a respeito de nossas coleções.

O acervo não pertence a um pesquisador ou funcionário específico, mas sim à instituição que tem por obrigação garantir seu acesso à sociedade. A exposição não deve ser mais a única forma ou a estratégia prioritária de difusão de acervos. A desproporção, via de regra, entre a capacidade e alcance expositivo e o tamanho dos acervos aponta, obrigatoriamente, para a priorização de instrumentos digitais de acesso e pesquisa. No entanto, é fundamental também reconhecer o papel central e preponderante da conservação preventiva e do profissional de conservação nas instituições de memória. Costumamos brincar, não sem um gigantesco fundo de verdade, que se a palavra final não é do conservador, a instituição não pode ser séria.

O jeitinho, o improviso e o personalismo devem dar lugar ao trabalho embasado em conhecimentos e procedimentos técnicos consolidados e validados pelas comunidades profissionais especializadas. A nossa ética enquanto profissionais de memória/preservação deve ser mais forte do que os interesses, relações e rixas pessoais, do que a insatisfação com o trabalho ou com o salário, ou a ausência de condições que consideramos básicas. Devemos nos manifestar sempre, e relatar tudo que julgamos inadequado ou fora do lugar. Não devemos nos calar. Nossa postura precisa ser menos reativa e imensamente mais proativa. Temos o direito de conhecer as condições e obter informações a respeito do nosso patrimônio cultural. A ausência de recursos materiais não pode ser uma justificativa para a inação e a acomodação. Esperar não é mais saber.

Só vemos comentários de reitores e professores. Onde estão os conservadores, museólogos, arquivistas e bibliotecários do museu? É preciso reconhecer que o trabalho no museu é técnico e especializado. Sua gestão não é atividade secundária ou hobby de docente, pesquisador ou curador. Muito infelizmente, o curador no sentido clássico enquanto “cuidador” de acervos quase que inexiste hoje. Já a prioridade do docente é sua produção científica e a formação de seus alunos e orientandos. E se não for isso, algo está muito errado na universidade brasileira. O quão revelador e triste é a dependência da contribuição de pesquisadores e visitantes para tentar reconstituir qualquer representação do acervo que se foi. Onde estão os sistemas de documentação das coleções do museu? Será que o Museu Nacional já foi algo mais do que um mero repositório de fontes e espécimes para a pesquisa científica realizada na universidade? Quanto desse antes massivo e inesgotável acervo (nacional e não meramente universitário ou da UFRJ) mereceu atenção dos pesquisadores da universidade? O que foi feito do restante? Museu não é feudo e curador não deveria ser senhor de nenhuma coleção. Acervos públicos pertencem a sociedade e os funcionários das instituições que os preservam têm por obrigação não só garantir sua conservação, mas também seu acesso e transparência em relação a sua gestão e situação patrimonial.

Tragédia Museu Nacional

Por Felipe Milanez (Sent by the photographer — OTRS-sent) [CC BY-SA 4.0 (https://creativecommons.org/licenses/by-sa/4.0)], via Wikimedia Commons

As associações profissionais devem trabalhar pelos interesses de seus campos profissionais e de suas instituições e não pela suposta garantia medíocre de emprego vislumbrado pela carteirinha de profissional reconhecido por uma legislação torta e antiquada, mas continuamente ignorado e maltratado pelo mercado de trabalho e pelas próprias instituições as quais dedica sua vida. Já nos perguntamos quanto ganha (ou deveria ganhar) um museólogo, bibliotecário, arquivista ou conservador no Brasil? Precisamos de mais profissionais e menos de empregados. Trabalhar em um museu precisa ser mais do que fazer exposições para os nossos pares juntando obras em torno de textos herméticos e insípidos, que ao final dizem mais sobre o curador e a disfuncionalidade das instituições do que sobre as obras. Precisamos de diagnósticos, indicadores e metas próprios para avaliar o que está acontecendo em nossas instituições de memória. O valor de um museu é muito mais amplo do que a quantidade de público que ele supostamente recebe e maior ainda do que a cobertura de uma imprensa supostamente especializada, que jamais se deu ao trabalho de entender o objeto de sua nota antes de definir, avaliar, julgar ou corroborar. O evento, a notícia e a visibilidade são, quase sempre, vazios e fugazes.

Restou algo dos milhões e milhões investidos nas exposições blockbusters com sobras de acervos de museus gringos? Mas é fundamental para a formação do olhar culto dos brasileiros, diriam uns. Mas e quanto ao nosso British Museum e Natural History Museum, que se foi da noite para o dia, sem ao menos sabermos o que guardava? Nem os inventários e catálogos das coleções que se foram conseguimos acessar? Será que existem? Queremos ser MoMA, Louvre e Metropolitan, mas sequer conseguimos dizer o que temos e para onde estamos indo. Reconhecemos facilmente as obras primas dos outros, mas as nossas merecem pouca atenção, se formos capazes de identificá-las. Nossos milionários, nossa magnânima elite ilustrada gosta de investir em museus estadunidenses, mas tem receio das nossas instituições. A síndrome do vira-latismo tropical continua a nos assombrar.

Precisamos rever e reposicionar o lugar de nossos museus e acervos. A resposta não é criar novos museus, seja do zero ou a partir de escombros e ruínas. Vamos cuidar do que sobrou, daquilo que já (ainda) existe e continuamos a desconhecer. Vamos dar nome aos bois. Devemos reconhecer o que é museu e qual é o seu negócio, ou core business, como insistem outros. Precisamos seguir os códigos de ética que nós mesmo inventamos. Museu é coisa séria. Se a intenção é brincar de qualquer outra coisa, que ao menos tenhamos a coragem de nomear a contento. Palavra também é coisa séria.

Assim quem sabe concentramos melhor o quase nada em algum lugar digno de investimento. A opção, como diriam alguns colegas, seria arrendar tudo para algum país sério de clima temperado ou para um canal televisivo qualquer, e singrar de vento em popa a transformação (já em andamento) do Rio-Brasil na nação cenográfica que tanto estimamos. Futebol, carnaval, copas, olimpíadas, caipirinhas, favelas, fio dental e belas paisagens. O turismo, a indústria cultural e os companheiros que podem se mudar para Miami ou Portugal agradecem.

10 de setembro de 2018. (Oito dias após a hecatombe da memória cultural e científica brasileira)

Gabriel Moore Forell Bevilacqua
Cidadão e profissional de museus e arquivos envergonhado

A documentação e os “falsos”!

A documentação e os “falsos”!

A exposição “A Cidade Global: Lisboa no Renascimento” que há tempos teve a cerimónia de inauguração no Museu Nacional de Arte Antiga teve mais destaque na imprensa do que é habitual nas exposições em Portugal, mas infelizmente pelos piores motivos. A questão dos “falsos” quadros que estão na origem da realização da exposição após a identificação dos mesmos por Annemarie Jordan Gschwend e Kate Lowe como uma “uma vista da Rua Nova dos Mercadores, destruída pelo Terramoto de 1755“, não deveria ser, na minha opinião, a questão central! Mas como tem sido, falemos da sua relação com um tema que me é caro: a documentação em museus.

A argumentação dos “falsos”

Eu não tenho conhecimentos para entrar na discussão sobre a veracidade das obras em causa. Não sou historiador, nem historiador de arte e não tive qualquer acesso às fontes ou às obras para me pronunciar sobre as mesmas e, ainda que o tivesse, escusava-me por completo dessa tarefa. No entanto, gosto de uma boa troca de argumentos quando ela é séria e me apresenta factos ou elementos que sustentem cientificamente uma opinião.

A questão é levantada por Diogo Ramada Curto neste artigo no Expresso onde se interroga “Lisboa era uma cidade global?” utilizando a questão das pinturas para, em meu entender, ligar a produção da exposição a uma visão da História que glorifica o passado imperial e descarta uma outra visão, em que se insere, que se insurge contra uma narrativa que vê como colonialista e centrada no umbigo do mundo representada pela metrópole. Eu percebo a questão e a argumentação, ainda que não concorde, mas voltemos aos “falsos”.

Na mesma edição do Expresso, Miguel Cadete, Alexandra Carita e Hugo Franco, publicam um extenso artigo sobre o assunto onde apresentam os argumentos de DRC, acrescentando algum contexto e outros dados, sob o título “Museu de Arte Antiga abre as portas a obras suspeitas”. Título que dava, por si, um tratado sobre o tema que aqui me traz, mas que, por agora me suscita apenas o seguinte comentário: digam-me um museu, um apenas, que não abre a porta a obras suspeitas? Se não abrir deixa de cumprir uma parte do seu trabalho de análise e investigação da cultura material, não?

Após aquele texto, somos brindados com outro intitulado “Conservadores do Museu de Arte Antiga não se entendem“. No mesmo, imagine-se, alerta-nos o Expresso, pela voz de Miguel Cadete, que há dois conservadores do MNAA que não têm a mesma opinião sobre as obras! Imagine-se o pecado mortal de ter na mesma instituição, dois especialistas com opiniões diversas! Coisa inédita, bem sei! Mas ainda assim feliz e que me parece um bom sinal.

Para que se eliminassem todas as questões, e de acordo com o Expresso uma vez mais, são pedidos exames laboratoriais pelas palavras do próprio Ministro da Cultura (não percebo porque teria de ser ele a fazer esta declaração), seguidos de uma declaração do director do MNAA a indicar que a decisão ainda não tinha sido tomada por causa das devidas autorizações e questões técnicas associadas.

No Expresso ainda sai pouco tempo depois um texto de Ramada Curto sobre a forma como aborda a polémica e sobre a intenção de aproveitamento de uma exposição como instrumento político ao serviço de uma ideia que condena e que me parece nada ter a ver com a questão da autenticidade desta ou daquela obra, mas sim com uma visão mais genérica da questões (não era preciso criticar a autenticidade, para defender a sua tese sobre o tema). Um dia depois Fernando Baptista Pereira publica também este texto onde afirma categoricamente que “os quadros não são falsos!”.

Chegados ao dia da inauguração temos casa cheia e uma notícia no expresso sobre a “Lisboa Global”: Uma polémica local. Um título que diz tudo sobre as questões levantadas e sobre a forma irritadiça que a discussão tomou, ao contrário do que deveria ter acontecido. Afinal o debate, a diferença, a argumentação e contraditório deveriam sempre caber no Museu e na Academia, não é?

E agora em que ficamos?

Passada a polémica, poeira bem assente no chão, ânimos mais calmos, esperamos e temos a notícia do resultado dos exames a um dos quadros, O “Chafariz d’El Rey”, pertença de José Berardo, que confirmam a sua autenticidade e, segundo o Expresso, sabemos que o relatório diz o seguinte:

No que diz respeito à análise dos materiais constituintes e da forma como estes são aplicados esta obra terá sido executada muito provavelmente por pintor de influência ou naturalidade do norte da Europa a partir da 2ª metade do século XVI, época em que se verifica o uso generalizado do pigmento azul de esmalte e se começam a utilizar imprimaduras coradas

Confirma-se então que a hipotese avançada por Ramada Curto e João Alves Dias estavam erradas e que a autenticidade da pintura vai de encontro ao que as comissárias e o museu esperavam.

É aqui que entra a importância da documentação. Havia diversos elementos que nos poderiam confirmar a autenticidade do quadro (ou pelo menos apontar para ela) sem recorrer a exames, como podemos ler no texto de Fernando Baptista Pereira, mas estavam eles documentados pelo museu ou pelo proprietário? E das diversas investigações feitas pelas comissárias para o livro e, mais tarde, pela equipa do museu, que dados existem, onde estão registados, podemos chegar a eles de forma simples?

Continuamos a ter um enorme fosso entre a informação que existe (e é tratada nos museus pelas suas equipas técnicas) e o acesso que é dado a especialistas e público de uma forma geral. Para que esse fosso se esbata ou, mesmo, deixe de existir é necessária uma mudança nas políticas museológicas que reflicta as necessidades da sociedade actual. Essa mudança de políticas não pode ser vista de forma circunstancial ou imediata, mas sim pensada para o médio e longo prazo. O acesso a um conjunto significativo de informação dos museus na Holanda e Reino Unido, para citar dois bons exemplos agora muito louvados, não aconteceu da noite para o dia. Exige anos de trabalho e investimento na aquisição de competências e meios. Esta mudança não a vemos debatida no Expresso, infelizmente.

Documentação e os "Falsos" - Rua Nova dos Mercadores

Rua Nova dos Mercadores See page for author [Public domain], via Wikimedia Commons

Documentação e os "falsos" - o Chafariz d'el Rey

Chafariz d’El Rey By Anonymous Flemish [Public domain], via Wikimedia Commons

 

Apresentação do diagnóstico aos sistemas de informação nos museus portugueses

Apresentação do diagnóstico aos sistemas de informação nos museus portugueses

Parece que foi ontem, mas na realidade já faz algum tempo, desde que discutimos na sede da BAD o que seria essencial tratar no âmbito do Grupo de Trabalho sobre Sistemas de Informação em Museus (GT-SIM) que a BAD decidiu criar, em 2012. No entanto, passaram já uns anos e começamos agora a colher o fruto de algumas boas decisões que foram tomadas nessa altura.

Na próxima segunda-feira será apresentado, em Lisboa, aquele que eu considero o maior contributo que este grupo dará ao sector dos museus na área da documentação: o “Diagnóstico aos sistemas de informação nos museus portugueses”. Um trabalho de recolha e análise de informação, com base num inquérito cuidadosamente elaborado por um conjunto de profissionais de museus, bibliotecas e arquivos, onde se procura traçar o retrato da realidade portuguesa sobre os sistemas de informação (não confundir com as aplicações usadas nos sistemas de informação de museus) das instituições museológicas portuguesas.

Este trabalho é um ponto de partida muito importante. É um dignóstico que permitirá informar as tutelas e os técnicos dos museus sobre a realidade nacional. Não pretende apontar caminhos, mas antes mostrar onde estamos e deixar ao cuidado da comunidade museológica as decisões estratégicas a tomar para que o futuro possa ser melhor do que a realidade.

Recordo que várias pessoas presentes naquela primeira reunião na BAD abraçaram este projecto com muita energia, mas o esforço do Jorge Santos e da Conceição Serôdio nesta hercúlea tarefa deve ser aqui registado com destaque, assim como deve ficar registado o trabalho voluntário deles e de um conjunto de colegas sem os quais este trabalho não seria possível.

Deixo-vos abaixo o texto de divulgação do evento que a BAD irá realizar na próxima segunda. Inscrevam-se e participem!

Programa


O Grupo de Trabalho Sistemas de Informação em Museus (GT-SIM), estrutura criada em 2012 no seio da Associação Portuguesa de Bibliotecários, Arquivistas e Documentalistas (BAD), irá realizar no dia 3 de abril de 2017, em Lisboa, no ISCTE-IUL – Auditório Caiano Pereira (Edifício I, Piso 0)  a sessão de apresentação dos resultados do “Diagnóstico aos sistemas de informação nos museus portugueses”.

O crescente interesse do público no conhecimento dos acervos museológicos, impulsiona a visão do museu como um sistema de informação e potencia o valor informacional do objeto museológico. Deste modo, o acervo do museu repartido pelos espaços expositivos, reservas, biblioteca/centro de documentação e arquivo exige equipas multidisciplinares, em especial formadas por profissionais de informação: museólogos(as), bibliotecários(as) e arquivistas numa articulação interna dos diferentes setores do museu. Este trabalho conjunto e pluridisciplinar dos(as) profissionais do museu, é a base para a concretização do sistema de informação integrado.

Nesta medida, reveste-se da maior relevância conhecer a realidade portuguesa nesta importante questão da gestão da informação dos acervos nos museus. Foi com este propósito que o Diagnóstico assumiu como objetivo o levantamento e caracterização no que diz respeito às áreas da gestão da informação sobre os seus vários tipos de bens patrimoniais, de forma a possibilitar o desenho de um quadro global desta realidade. Os resultados têm por base a aplicação, no decurso do ano de 2016, de um inquérito por questionário a um conjunto selecionado de museus.

Não deixe de participar!!

inscrição na Sessão de Apresentação é gratuita, mas obrigatória!

PROGRAMA
15h00 | Sessão de Abertura
João Sebastião (Diretor do CIES-IUL, ISCTE-IUL)
Alexandra Lourenço (Presidente da BAD)

15h20 | Apresentação do GT-SIM
Fernanda Ferreira (GT-SIM)

15h40 | Apresentação e discussão dos resultados do Diagnóstico
Moderadora: Conceição Serôdio (GT-SIM)
Jorge Santos (GT-SIM, CIES-IUL), coordenador do estudo
José Soares Neves (ISCTE-IUL, CIES-IUL), sociólogo convidado
Clara Frayão Camacho (DGPC), museóloga convidada

16h45 | Debate

17h00 | Encerramento
Maria José Moura (Sócia honorária fundadora da BAD)
Conceição Serôdio (GT-SIM)

Autor desconhecido, s/ título, algures em algum lado nos meados do século XIX

Autor desconhecido, s/ título, algures em algum lado nos meados do século XIX

Recorrentemente voltamos às questões da comunicação dos Museus (sobre as colecções) com as suas audiências. Seja a comunicação dentro de portas,  seja a comunicação com o exterior, física ou virtual (certamente teremos em breve de rever um pouco estes conceitos), o Museu tem assumido, fruto de diversas circunstâncias, o papel de replicador das disciplinas que sustentam a investigação sobre as suas colecções (arte, história, zoologia, botânica, etc.) na forma e conteúdo utilizados para a comunicação das colecções.

É um tema que tem suscitado, ainda que por motivos diferentes, textos muito interessantes da Maria Isabel Roque (aqui e aqui) e da Maria Vlachou (aproveito para destacar este a propósito do livro com as conversas entre Martin Gayford e Philippe de Montebello) e que me é particularmente caro, porque frequentemente estou nos dois lados da barricada: o de quem prepara a documentação sobre as colecções (que deveria sustentar a sua comunicação) e o de quem vai ao museu e procura conhecimento, admiração, reflexão, supresa, etc.

Esta dupla perspectiva é, devo assumir, uma chatice para quem me acompanha. Passo a explicar. Cada vez que visito um museu e vejo informação sobre as colecções, em folhetos, tabelas, etiquetas, folhas de sala, meios multimédia, aplicações, ou outro qualquer meio, o meu primeiro pensamento vai para as circunstâncias da criação, organização e publicação da informação que tenho disponível. Imaginam vocês o que acontece a quem vai a meu lado, quando começo a falar sobre a dificuldade que existe na sistematização dos dados nos museus, a qual é possível identificar, quase sempre, comparando informação básica, por exemplo medidas, ou datas, de dois objectos colocados numa mesma sala. Sim é isso mesmo… um sonoro bocejo!

Quando me apercebo do bocejar da companhia, o que acontece normalmente logo a seguir, tento desligar-me da “visão deturpada” pelos interesses profissionais e académicos (acreditem que é complicado) e procuro contexto, ou seja, e como bem diz a Maria Vlachou, estou “… à procura de algo que possa ter significado para nós, algo que possa deliciar-nos, surpreender-nos, fazer-nos sentir bem ou mais ricos ou mais conscientes de nós mesmos e do mundo”. Procuro retomar o momento em que vi, pela primeira vez, uma pedra lunar na exposição “A Aventura Humana” (apresentada, em 1988, no Museu Nacional de Etnologia) e pensei, na inconsciência própria da idade, “se conseguimos ir à lua, conseguiremos fazer tudo! Isto só tem como correr bem daqui para a frente!”

Devo dizer, antes de mais, que nem tudo depende da informação que o Museu dá a quem o frequenta. Não tenho a certeza se aquela pedra lunar teria mais alguma explicação para além do seu nome e proveniência (se bem me recordo tinha também informação sobre o seu proprietário), mas o projecto da exploração lunar  e as séries e filmes de ficção científica (Espaço 1999, Galactica, Guerra das Estrelas, etc.) exerciam, nos anos 80, um fascínio brutal sobre a nossa imaginação e aquela pedra aproximou-me do meu sonho de me tornar num explorador do espaço ou de ser o primeiro espinhense a cursar a academia dos Jedi. No entanto, quantas vezes é que este tipo de situações acontece? Quantas outras não ficamos desiludidos perante um objecto, por não termos o conhecimento, informação, contexto (ou até imaginação) necessários para nos maravilharmos?

Pode o Museu ficar descansado quanto a esta questão?

A resposta é óbvia. Não pode! Mas não é verdade que parece estar descansado? Não continuamos a ver, salvo muito honrosas e boas excepções, um conjunto de informação que não é muito mais do que autor, data de execução, técnicas, dimensões e origem? Não faz muito tempo que visitei uma exposição de um autor que me era (ainda é) completamente desconhecido, mas em nenhum local na exposição encontrei sequer a uma referência sobre a vida (reparem que não disse apenas percurso artístico, disse vida) daquela pessoa e em cada objecto que a exposição me mostrava (impecavelmente exposto), não tinha mais do que técnica, data e título (muitas vezes s/ título). Esteticamente foi um exercício agradável, mas não me fez pensar em mais nada, não acrescentou em mim nada sobre o autor ou sobre a sua obra, não me cativou a procurar mais. Se me tivessem dado um pouco de contexto sobre o autor e a obra (preferindo eu factos em vez de uma avaliação subjectiva da sua obra e vida, devo confessar), não seria mais fácil a aproximação pretendida com a exposição pública dos objectos? Eu, e pelo que li, a Maria Isabel Roque e a Maria Vlachou, concordamos que sim, no entanto, a(s) forma(s) utilizada(s) pelo Museu para o fazer é que são o verdadeiro desafio.

Desde logo, reafirmando as palavras da Maria Isabel Roque, julgo que “… urge uma reflexão crítica e teoricamente fundamentada acerca da informação pertinente e adequada, bem como acerca do papel inevitável dos recursos da informação digital, dentro e fora do espaço museológico” e acrescento que esta reflexão crítica terá que ser acompanhada com uma mudança urgente da prática e das políticas ou estratégias que a sustentam. Deixo então alguns pontos que poderiam, na minha opinião, contribuir para essa mudança:

  • Definir e implementar políticas que coloquem o inventário, catalogação, estudo e gestão de colecções como prioridade para os museus (não querendo com isto dizer que se neglicencie o restante, mas não se fazem omeletes sem ovos! Não se comunica bem aquilo que se desconhece ou conhece pela rama*);
  • Fazer com que essas políticas permitam implementar planos de documentação em que a normalização de processos, estruturas e terminologias possa contribuir para a disseminação real do conhecimento das colecções;
  • Fazer estudos de públicos centrados na expectativa e não na experiência, ou seja, procurar o que pretendem os públicos e não aquilo que eles sentem relativamente à sua visita a determinado museu ou colecção;
  • Definir um modelo de documentação de colecções centrado no conceito COPE (Create Once, Publish Everywhere) que permitiria, entre outras questões, a optimização dos recursos despendidos no processo;
  • Abraçar novas ferramentas como o “Storytelling“, por exemplo, na planificação da utilização e exposição das colecções (e pensar nelas nos processos de documentação e gestão de colecções também dava jeito, já agora);
  • Olhar, seriamente, para aquilo que é o poder da Rede Social que temos à nossa frente (ou no bolso) e utilizar, sem constrangimentos (a não ser os éticos, claro), esse poder em benefício da construção desta nova prática.

Que vos parece?

 

* Uma nota para recordar o elevado número de colecções que não estão convenientemente documentadas em Portugal (e não só).

© Imagem: Wikipedia